O avanço da medicina clínica de felinos: cuidado paliativo

Por: Dra. Rochana Rodrigues Fett

O avanço da medicina clínica de felinos: cuidado paliativo

THE ADVANCEMENT OF FELINE CLINICAL MEDICINE: PALLIATIVE CARE

Resumo

Até o início dos anos 2000, era muito comum a eutanásia ser recomendada como tratamento final na rotina médica veterinária de clínicos de felinos. A partir da conexão que se estabeleceu entre tutor e gatos, a abordagem ideal é aquela que melhora a qualidade de vida dos pacientes que enfrentam doenças com risco iminente de fim da vida, por meio da prevenção e, claro, do alívio do sofrimento, incluindo tratamento da dor, problemas físicos, tratamento psicossocial e adiando a morte sem sofrimento.

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Palavra-chave: Gato; Cuidado paliativo; tutor; eutanásia.

Abstract

Until the early 2000s, euthanasia was very commonly recommended as a final treatment in the veterinary medical routine of feline clinicians. From the connection that has been established between tutor and cats, the ideal approach is the one that improves the quality of life of patients facing diseases with imminent risk of end of life through prevention and, of course, relief from suffering, including treatment of pain, physical problems, psychosocial treatment and postponing that outcome.

Keywords: Cat; Palliative care; tutor; euthanasia.

1 INTRODUÇÃO

Até o início dos anos 2000, era muito comum a eutanásia ser recomendada como tratamento final na rotina médica veterinária de clínicos de felinos. Esse procedimento era visto como aceitável em muitas doenças crônicas e debilitantes, como é o caso da doença renal crônica, leucemia viral felina e linfoma1. Porém, a medicina veterinária evoluiu muito nas últimas décadas, principalmente com o surgimento de especialidades que tornaram o cuidado com o gato mais amigável, bem como ajudaram a construir as diretrizes de como conduzir a espécie. Somado a isso, a adoção de felinos como animais de estimação cresceu consideravelmente. Uma pesquisa feita em lares brasileiros mostrou que 72% dos entrevistados consideram seus animais de estimação como membros da família2.

2 CUIDADO PALIATIVO: DEFINIÇÃO E HISTÓRIA (MEDICINA X VETERINÁRIA)

A World Health Organization3 define o cuidado paliativo como uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes, assim como de suas famílias que enfrentam doenças com risco iminente de fim da vida por intermédio da prevenção e, claro, alívio do sofrimento, incluindo tratamento da dor, problemas físicos, tratamento psicossocial e adiando a morte indolor. Na medicina humana, os cuidados paliativos começaram na década de 60, no Reino Unido, com a pioneira médica, Dra. Cicely Saunders, que se dedicou ao cuidado, ensino e pesquisa do assunto. Já no Brasil, os cuidados paliativos datam do final da década de 904,5.

Na medicina veterinária, os cuidados paliativos começaram na década de 1980 nos Estados Unidos. O termo hospice representa uma filosofia no programa do cuidado direcionado às necessidades físicas, sociais e emocionais dos animais nos estágios avançados de uma doença ou incapacidade progressiva que limita a vida. Hospice care é fornecida para pacientes no momento do diagnóstico até a morte do animal6. O hospice care inclui a atenção aos cuidadores, fornecendo suporte, emocional e espiritual para prepará-los para a morte do animal e para a experiência do luto. A equipe que trabalha com hospice deve ser multidisciplinar7.

Os cuidados paliativos objetivam promover o cuidado com o paciente promovendo conforto especialmente em situações em que a cura não é possível e a condição clínica do paciente é avançada e progressiva8.

Não se deve restringir os cuidados paliativos àqueles pacientes que se encontram no estado de terminalidade (definição daqueles pacientes cuja expectativa de vida está em menos de um mês). Os pacientes podem ser encaminhados para o serviço de cuidados paliativos desde o momento do diagnóstico de doenças que mudem o curso da vida, como a doença renal crônica e os tumores9.

3 ESCALA DE QUALIDADE DE VIDA

A escala de qualidade de vida é uma ferramenta desenvolvida pela médica veterinária Alice E. Villa Lobos para auxiliar veterinários e tutores nas decisões relacionadas à vida e à morte. Essa escala é conhecida por “5H2M”, a qual avalia o paciente por meio dos parâmetros dor, fome, hidratação, higiene, felicidade, mobilidade e contabiliza os dias bons e ruins. O nome vem das siglas desses parâmetros em inglês10.

Essa escala serve para avaliar o nível de relacionamento do proprietário e seu animal como a devoção (a quantidade de tempo, esforço e interação contínua com o animal), valor (emocional e financeiro), preocupação sobre o bem-estar do felino enfermo, evitando o sofrimento), responsabilidade (ou seja, o respeito que a sociedade deve a todos os animais para manter os ecossistemas, a saúde pública, a conservação)10.

A autora adaptou uma tabela para sua rotina clínica com perguntas de resposta do tutor e que ao final devem ter um maior número de respostas com escore inferior a 5 temos um paciente mais crítico (Anexo A).

3.1 DOENÇAS CRÔNICAS, DEBILITANTE E AVALIAÇÃO DE DOR EM GATOS

Os felinos são animais peculiares. Quando doentes, geralmente, conseguem esconder por um tempo o sofrimento. Portanto, quando diagnosticada alguma doença, em muitos casos, o problema já está bastante avançado. É sabido que o gato é um ser exótico que esconde, muitas vezes, o sofrimento, por isso é importante que o médico veterinário esteja atento a essa particularidade da espécie, para que nenhum sofrimento seja negligenciado8.

3.1.1 Cuidados paliativos na medicina felina

• Comunicação

A comunicação entre tutor e médico veterinário responsável pelo cuidado paliativo deve ser transparente e permanente. Na primeira consulta, deve-se abordar e conhecer o temperamento, preferências de distrações, hábitos alimentares e rotinas desse paciente. Essa primeira consulta é o momento em que o responsável refere toda história de vida desse felino. É muito importante que o veterinário não faça julgamentos e tenha sempre um canal de comunicação fácil com esse tutor9.

• Local

Os serviços de cuidados paliativos podem ser feitos no ambiente veterinário e na residência do paciente felino. A avaliação é individual e deve respeitar a decisão e objetivos do proprietário8.

Figura 1 — Paciente oncológica com sonda esofágica em tratamento no lar. Fonte: arquivo pessoal e autorizada pelos tutores.

• Manejo terapêutico

O controle da dor constitui um aspecto muito importante do cuidado paliativo, o médico veterinário deve fornecer ao proprietário um kit de emergência para ser utilizado em casos de dor aguda, além de instruir sobre os sinais clínicos de dor e quanto à manipulação e à aplicação do fármaco8.

Na maioria das vezes, a dor em cuidados paliativos originam-se de traumas, cirurgia, osteoartrite, doença periodontal grave, neoplasia maligna, insuficiência cardíaca congestiva, doença pulmonar. Deve ser considerado um ensaio terapêutico de analgésicos, mesmo sem sinais evidentes de dor11.

A analgesia normalmente é multimodal, com a administração de anti-inflamatórios não esteroidais e adjuvantes como gabapentina, opioides entre outros11.

• Manejo nutricional

A alimentação é considerada um desafio em muitos casos. É importante fornecer alimentos saborosos, aquecidos e usar de estimulantes do apetite. A alimentação enteral por tubo esofágico deve ser considerada em casos dessas medidas não serem eficazes10.

• Higiene

Outro ponto importante a ser considerado é manter a higiene do paciente. É possível usar um pano com solução apropriada para higienizar a região perianal do paciente, além dos coxins e face. Essa ação é semelhante à “língua materna” e ajuda a higienizar a pele enquanto acalma o gato10.

• O momento da decisão

É necessário avaliar se há mais dias bons que ruins. A qualidade de vida pode estar comprometida quando há mais dias ruins do que bons. São considerados dias ruins os que têm distúrbios, como: náuseas, vômitos, diarreia, convulsões, apatia.

A decisão pela eutanásia ou morte natural deve ser sempre dos proprietários do paciente, com o auxílio do médico veterinário. O Médico veterinário deve respeitar os desejos da família. O papel do profissional de saúde é aliviar o sofrimento do paciente veterinário até o dia de sua morte10.

É muito difícil para as famílias optarem pela eutanásia de um querido animal. A dificuldade é ainda maior quando existem entraves baseadas em suas crenças religiosas. Pode ser mais claro para eles se a escala padrão da qualidade de vida é explicada semanalmente ou quinzenalmente, dependendo do quadro clínico do animal10.

Quando um animal de estimação está doente, inevitavelmente, há o envolvimento emocional dos proprietários, variando de intensidade de acordo com o tipo de relacionamento existente entre eles. Da mesma forma, cuidar demais pode magoar. Profissionais de cuidados paliativos tendem a ter fadiga da compaixão que é gerada pelo estresse físico e mental do ato de cuidar12.

O médico veterinário tem o dever de orientar os clientes quanto à disponibilidade dos cuidados paliativos como opção de tratamento no caso de diagnóstico incurável8. Até um tempo atrás, esses casos se resolveriam com a eutanásia, porém, atualmente, com o vínculo, cada vez maior, entre humanos e animais surge maior demanda ao cuidado paliativo13.

Figura 2 — Vínculo médico veterinário paciente

4 CONCLUSÃO

Os cuidados paliativos têm como maior premissa o fim da vida com qualidade e, para isso, o controle da dor é um dos principais alicerces, devendo ser tratada, mesmo sem sinais evidentes8.

É muito apropriado que seja organizado um plano de tratamento ao paciente terminal que inclua, além de cuidados físicos. O auxílio psicológico ao tutor é responsabilidade ética e moral do médico veterinário, bem como deixar o tutor sempre com a informação clara e honesta, porém sem tirar a esperança14.

REFERÊNCIAS

1. FOLGER, W. R.; CHSERCK, M. The veterinarian’s responsibilities at the end of a cat’s life. J Feline Med Surg, [s.l.], v. 12, n. 5, p. 365-366, 2010.

2. INSTITUTO QUALIBEST. Universo pet: pense no cão como um membro da família. Instituto Qualibest, São Paulo, 17 ago. 2017. Disponível em: https://www.institutoqualibest.com/universo-pet/universo-pet-caes-como-membros-da- familia/. Acesso em: 10 jul. 2022.

3. WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Definition of Palliative Care. World Health Organization, [s.l.], 2022. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/. Acesso em: 25 jul. 2022.

4. DU BOULAY, S. Changing the face of death. The story of Cicely Saunders. 2.ed. Great Britain: Brightsea Press. 2007.

5.GOMES, A. L. Z.; OTHERO, M.B. Cuidados paliativos. Estudos avançados, [s.l.], v. 30, n. 88, 2016.

6. AMERICAN ASSOCIATION OF FELINE PRACTTIONERS. End of Life Educational Toolkit. AAFP, [s.l.], 2021. Disponível em: catvets.com/endoflife. Acesso em: 23 fev. 2022.

7. SHANAN, A. et al. AAHA/IAAHPC End-of-life care guidelines. Journal of da American Animal Hospital Association, Lakewood, v. 52, n. 6, p. 341-356, set. 2016.

8. SHANAN, A. et al. Animal Hospice and Palliative Care Guidelines. The International Association of Animal Hospice and Palliative Care, [s.l.], mar. 2014. Disponível em: https://iaahpc.org/. Acesso em: 20 jul. 2022.

9. SHEARER, T. S. Pet Hospice and Palliative Care Protocols. Veterinary Clinics Of North America: Small Animal Practice, Philadelphia, v. 41, n. 3, p. 507-518, maio 2011.

10. VILLALOBOS, Alice et al. Molecular Biology of Cancer and Aging. In: VILLALOBOS, Alice; KAPLAN, Laurie. Canine and Felina Geriatric Oncology: honoring the human- animal bond. 2. ed. Hoboken: Wiley Blackwell, 2018. p. 3-28.

11. DOWNING, Robins; ADAMS, Valarie Hajek; MCCLENAGHAN, Ann P. Comfort, Hygiene, and Safety in Veterinary Palliative Care and Hospice. Veterinary Clinics Of North America: Small Animal Practice, Philadelphia, v. 41, n. 3, p. 619-634, maio 2011.

12. IAGO, K. C. Fadiga por compaixão: quando ajudar dói. 2008. 210 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2008.

13. MAROCCHINO, K. D. In the shadow of a rainbow: the history of animal hospice. Veterinay Clinics of North America: Small Animal Practice, Philadelphia, v. 41, n.3, p. 477-498, maio 2011.

14. ROLLIN, B. E. Ethical issues in geriatric feline medicine. J Feline Med Surg, [s.l.], v. 9, p. 326-334, 2007.

Rochana Rodrigues Fett

Médica veterinária graduada na UFRGS, Mestre e Doutora em ciências veterinárias. Especialista em medicina de felinos. Membro da diretoria da Academia Brasileira de Clínicos de Felinos - Abfel, da International Cat Care - ISFM e da American Association of Feline Practitioners - AAFP Professora e coordenadora do pos em medicina de felinos do IBM VET. Sócia e idealizadora da Chatterie Centro de Saúde do Gato.

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