Dermóide corneal em felino

Por Annalú Pinton Ferreira, Sueli Aparecida de Souza, Luiza Christophano Martins, Alana Lucena Oliveira e Inajara Nakamura Hirota

INTRODUÇÃO

Dermóide ou coristoma é uma má-formação congênita, caracterizada pelo crescimento de tecido dérmico saudável, ectópico e de origem embriológica, predominantemente mesodérmica e ectodérmica e que frequentemente acomete a região temporal da córnea. É possível ser denominado como um tumor benigno de crescimento lento e sua morfologia é caracterizada por uma massa elevada e bem circunscrita, com a presença de folículos que podem ou não conter pelos.
Esses pelos, quando presentes e estão em contato com a superfície ocular, podem causar irritação, epífora e ceratite ulcerativa levando a dor aos pacientes. Esta afecção pode afetar pálpebras, conjuntiva, limbo e córnea,podendo levar ao aparecimento de úlceras que podem comprometer a sua transparência, ou até mesmo ocasionar perfuração corneana. O presente relato tem como objetivo descrever a conduta clínica e cirúrgica de um dermóidecorneal em felino, afecção rara nessa espécie que pode comprometer a saúde visual do animal quando não tratado rapidamente e comprometer a qualidade de vida do animal.
{PAYWALL_INICIO}

RELATO DE CASO

Foi atendido no serviço particular de oftalmologia veterinária na cidade de Botucatu/SP, um animal da espécie felina, macho, com aproximadamente 11 meses de idade, castrado, de pelagem na coloração cinza, sem raça definida (SRD). A queixa principal apresentada foi o crescimento de um tecido com pelos em região de limbo e córnea do olho esquerdo (OE) (Figura 1), presença de blefaroespasmo, fotofobia, secreção e muito desconforto na manipulação.  Ao exame físico, o animal apresentava todos os parâmetros dentro da normalidade da espécie. No exame oftalmológico, o paciente não apresentava déficit visual, e também possuía reflexo pupilar direto e consensual, bem como o ofuscamento presentes durante a avaliação. Não foi realizado teste de Schirmer, pois este, possivelmente estaria aumentado devido ao estímulo dos pelos na superfície corneana. Realizado colírio anestésico (Oxinest, laboratório Cristália) para mensuração da pressão intraocular com o Tonovet e a mesma estava dentro dos parâmetros. No teste com a fluoresceína, o dermóide foi avaliado com o auxílio da biomicroscopia de fenda e do filtro com a luz de cobalto e foi verificado pequenas lesões ao redor do dermóide e formação de microvasos devido ao atrito dos pelos na córnea. Com base nas alterações oftalmológicas encontradas, foi recomendada a remoção do tecido e avaliação histopatológica do fragmento, para isso, foram coletados exames pré-operatórios como: hemograma, função renal e hepática, nos quais, não apresentaram nenhuma alteração nos valores. Dessa forma,o paciente estava apto para realizar o procedimento cirúrgico de ceratectomia lamelar superficial, com intuito de remover o tecido dérmico. Após o procedimento cirúrgico, foi feita tarsorrafia temporária, técnica que consiste no fechamento temporário das pálpebras e tem como a finalidade de obter maior conforto ao paciente e a minimização da sua dor (Figura 2), sendo assim, os colírios deveriam ser realizados na abertura lateral do olho, inclinando a cabeça do animal para a gota escoar por toda a superfície. No exame histopatológico, foi observado presença de tecido adiposo, conjuntivo, anexos epidérmicos, sendo revestido por um epitélio escamoso estratificado queratinizado, confirmando assim o diagnóstico de dermóide. Após a cirurgia, foi prescrito tratamento tópico para a úlcera formada com uma gota no olho esquerdo de Tobramicina e EDTA dissódico 0,35% a cada 6 horas (totalizando 4 vezes ao dia) respeitando um intervalo de no mínimo 15 minutos entre a aplicação de cada colírio. Os pontos da pálpebra deveriam ser higienizados e limpos com solução fisiológica e gaze, minimizando contaminação. O paciente também precisou ser mantido com colar protetor e separado do contactante que havia em casa até o retorno. De medicação oral, foi utilizado Meloxican (0,05mg/kg) uma vez ao dia durante 3 dias. No retorno (dia 10), a tarsorrafia foi removida e isso possibilitou uma avaliação mais adequada, sendo evidenciado epitelização da úlcera formada após a retirada do dermóide, apresentando uma boa resposta cicatricial, porém, havia presença de hiperemia e congestão episcleral leve. Com o objetivo de minimizar os sinais clínicos de inflamação, foi adicionado ao tratamento Acetato de Prednisolona 1% a cada 6 horas, uma gota no olho esquerdo por 15 dias aumentando a transparência da córnea afetada pela neovascularização após sua cicatrização. Em sequência, no segundo retorno (dia 25), o paciente já não apresentava mais irritação, hiperemia, congestão e não possuía leucoma cicatricial. Desta forma,o tratamento foi satisfatório e o paciente teve alta médica, sem apresentar nenhuma sequela.

Figura 1. Consulta inicial: Dermoíde corneal em região temporal em olho esquerdo.
Figura 2. Pós-cirúrgico: Córnea após procedimento de ceratectomia lamelar superficial com transparência desejada e ausência do dermóide (Dia 25).

DISCUSSÃO

Dermóides podem acometer diferentes espécies animais, inclusive humanos; no entanto, nos felinos ainda é pouco descrito (Zhong et al.,2018). Se trata de uma afecção benigna, congênita e, por isso, possui maior incidência nos animais mais jovens, além disso, o crescimento do dermóide é lento, sendo também facilmente diagnosticados em animais jovens, como no presente relato em que o paciente possuía apenas 11 meses de idade (Levin et al.,1986; Gross,1992). Em gato birmanês, o dermóide é descrito como uma característica genética hereditária para o aparecimento dessa alteração (Koch et al., 1979). Gelat descreve que o coristoma pode ser uni ou bilateral e que sua localização pode ser variada (conjuntiva bulbar e palpebral), porém, é mais frequentemente encontrado em região temporal sobre o limbo.
Os sinais clínicos incluem blefaroespasmo, epífora, congestão episcleral, e isso vai depender da sua localização e da presença ou não de pelos, podendo levar a irritações oculares, deposição de pigmentos em córnea, ulcerações, comprometendo a saúde ocular do paciente (Gellat et al., 2021). Um fator determinante para o surgimento e severidade dos sinais clínicos é a presença ou ausência de pelos (Slatter, 2005; Otoo, 1991; Wappler, 2002). Como consequência disso, os pelos são os principais responsáveis pelas lesões oculares, o que resulta em uma inflamação crônica da córnea e da conjuntiva, podendo acarretar lesões ulcerativas na superfície da córnea (Whitley, 1999; BarkyoumbSd, 1984). O diagnóstico é clínico, porém, morfologicamente, o dermóide pode apresentar algumas variações e podem ser confundidos com outras patologias oftálmicas, como: cistos epidermóides, cisto de inclusão epitelial e neoplasias oculares (Gross et al., 1992). Desta forma, o exame histopatológico possibilita a diferenciação e identificação das células e estruturas ali presentese se torna uma importante ferramenta para comprovar seu diagnóstico e definirmos o tratamento adequado e seu prognóstico (Albuquerque  et  al., 2012).

O tratamento consiste na remoção cirúrgica (ceratectomia lamelar superficial) e o pós é feito com colírios que auxiliam na cicatrização da lesão remanescente. Na maioria das vezes, por ser uma formação superficial, não tem a necessidade de recobrimento conjuntival ou colocação de membrana para cicatrização sendo assim, o processo cicatricial ocorre por segunda intenção. A tarsorrafia ou colocação de lentes de contato favorece a cicatrização e proteção da lesão, ajuda também na minimização da dor do paciente (Gellat et al., 2021). Nosso tratamento foi baseado na literatura com o uso de antibioticoterapia (Tobramicina) para evitar infecções secundárias, midriático (Mydriacyl) para o controle de dor e inibidor das enzimas proteolíticas (EDTA dissódico 0,35%) e, após a sua completa cicatrização, foi realizado anti-inflamatório (Acetato de Prednisolona 1%) (Albuquerque  et  al., 2012). O anti-inflamatório age reduzindo a neovascularização formada com o processo cicatricial e isso permite uma maior transparência da córnea (Gellat et al., 2021). Optamos pela tarsorrafia ao invés da lente de contato terapêutica, pois, normalmente a lente pode sair com mais facilidade devido à terceira pálpebra e ao ressecamento da lente na córnea. Desta forma, a tarsorrafia mostrou-se mais estável, econômica, sendo eficiente no controle da dor do animal, pois a tutora conseguiu realizar a aplicação dos colírios sem nenhuma dificuldade. O tratamento foi bem sucedido e permitiu que o paciente mantivesse o olho visual, sem desconforto e nenhuma opacidade corneal, possibilitando uma melhor qualidade de vida ao paciente.

CONCLUSÃO

É possível concluir que por mais que o dermóide seja uma alteração frequentemente encontrada na rotina clínica oftalmológica, em gatos, ainda não é muito relatado, porém não deve ser negligenciado, já que pode causar complicações oftálmicas pela sua permanência no bulbo ocular. O intuito do relato foi demonstrar a importância do exame histopatológico, associado a um profissional capacitado que saiba a conduta correta a ser seguida. Dessa maneira, o tratamento terapêutico adotado foi efetivo e direcionado, afetando diretamente ao seu prognóstico, e como consequência trazendo a melhora e a manutenção da qualidade de vida do paciente, visto que a demora no início do tratamento pode prejudicar a saúde ocular do animal.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, L. D. F, et al. Dermóide ocular-revisão de literatura. Medvep-Revista Cientifica de Medicina Veterinária-Pequenos Animais e Animais de Estimação; volume 10, n. 32, p. 44-47, 2012.

BARKYOUMB, S.D., LEIPOLD, H. W. Nature and cause of bilateral ocular dermoids in hereford cattle. Veterinary Pathology; n. 21(3), p. 316-324, 1984.

GELLAT, K.N., et al. Veterinary Ophothalmology. John Willey & Sons;6ª edição, volume 1, p,22-26.2, 2021.

GROSS, T. L., IHRKE, P. J., WALDER, E. J. A., Macroscopic and microscopic evaluation of canine and feline skin disease. Veterinary Dermatology; Saint Louis: Mosby; 1ª edição, p. 435- 442, 1992.

KOCH,S. A. Congenital ophthalmic abnormalities in the Burmese cat.Journal of the American Veterinary Medical Association; n. 174(1), p. 90-91, 1979.

LEVIN, M. L., et al. Congenital orbital teratomas. American Journal of Ophthalmology; n102(4):476-81, 1986.

OTOO, G., LIPMAN, N. S., MURPHY, J. C. Corneal dermoid in a hairless guinea pig. Journal of Laboratory Animal Science and Practices;n41(2):171-1, 1991.

SLATTER S. Córnea e Esclera. In: Fundamentos de Oftalmologia Veterinária; São Paulo: Roca; 3ª edição, p.283- 338, 2005.

STELMANN, U. J. P., et al. Cisto dermoide em equino: relato de caso. Revista Científica Eletrônica de Medicina Veterinária; v. 13, p. 1-9, 2009.

WAPPLER, O., ALLGOEWER, I., SCHAEFFER, E. H. Conjunctival dermóide in two guinea pigs: a case report. Veterinary Ophthalmology; 5(3): 245- 248, 2002.

ZHONG, J. et al. New grading system for limbal dermoid: a retrospective analysis of 261 cases over a 10-year period. Cornea; n:37(1):66–71, 2018.

Alana Lucena Oliveira

Graduação em medicina veterinária pela Universidade Federal de Goiás – Campus Jataí (2014); Aprimoramento profissional em clínica cirúrgica de pequenos animais pelo Centro Universitário de Rio Preto (2015-2017); Especialização lato sensu em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais pelo Centro Universitário de Rio Preto (2015-2017); Especialização lato sensu em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais pela Faculdade Qualittas (2015-2016); Pós-graduação lato sensu em dermatologia veterinária - Universidade Anhembi Morumbi - UAM (2018-2019); Mestrado em medicina veterinária com ênfase em micologia pela UNESP/ FMVZ (2018-2020); Doutorado em andamento em medicina veterinária com ênfase em oncologia pela UNESP/ FMVZ; Atualização em otologia avançada pela Anclivepa-SP (2023); Realiza atendimento volante em dermatologia veterinária na cidade de Botucatu há mais de 5 anos.

Annalú Pinton Ferreira

Graduação em medicina veterinária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - FMVZ Botucatu (2014); Aprimoramento profissional em clínica cirúrgica de pequenos animais pelo Centro Universitário de Rio Preto (2015-2017); Especialização lato sensu em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais pelo Centro Universitário de Rio Preto (2015-2017); Pós-graduação lato sensu em oncologia veterinária pela FAJ/ Instituto Bioethicus-SP (2016); Mestrado em biotecnologia animal com ênfase em oftalmologia veterinária pela UNESP/ FMVZ. Pós-graduação lato sensu pela ANCLIVEPA - SP em andamento (2023 - atual).

Inajara Nakamura Hirota

Graduação em medicina veterinária pela Universidade de Marília (2011); Residência em medicina veterinária na área de clínica cirúrgica de pequenos animais pela Universidade de Marília (2013-2014); Mestrado em biotecnologia animal com ênfase em oftalmologia veterinária pela UNESP/ FMVZ (2015-2017); Doutorado em animais selvagens com ênfase em oftalmologia veterinária pela UNESP/ FMVZ (2017-2020); Pós-graduação lato sensu pela ANCLIVEPA-SP (2017-2018); Proprietária da clínica “CLINOV Oftalmologia Veterinária” em Marília-SP.

Luiza Christophano Martins

Graduação em andamento em medicina veterinária pelo Centro Universitário Sudoeste Paulista – UniFSP Avaré (2021 - atual); Bolsista PIBIC de iniciação científica na área de radiologia pela UNESP/ FMVZ (2023 - atual); Trainee na clínica “Conceito Vet” em Botucatu (2022 – atual).

Sueli Aparecida de Souza

Graduação em medicina veterinária pelo Centro Universitário Anhanguera – Unifian Leme (2009); Pós-graduação lato sensu em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais pela Faculdade Qualittas (2014); Aperfeiçoamento em cirurgia de cães e gatos pelo PRATICA – Educação Continuada em Medicina Veterinária (2018); Pós-graduação lato sensu pela ANCLIVEPA-SP em andamento (2023 - atual); Proprietária da clínica veterinária Patas e Pelos, em Guapiaçu-SP.

{PAYWALL_FIM}