Eutanásia: como lidar com ela?

Por Samia Malas

Eutanásia: como lidar com ela?

Infelizmente, ela faz parte da rotina do médico-veterinário e envolve muitos fatores, desde a decisão até a lida com o tutor do animal, exigindo preparo de toda a equipe

A psicóloga e médica-veterinária Mestranda em Medicina e Bem-Estar Animal, Renata Bottura, de São Paulo, SP, é conhecida no meio veterinário por ser palestrante de um tema que, infelizmente, é recorrente em atendimento clínico em todas as especialidades veterinária: a eutanásia. E falar sobre o assunto é de extrema importância. A eutanásia requer preparo emocional, pois é reconhecidamente um dos grandes motivadores de estresse na rotina veterinária. A seguir, confira entrevista exclusiva que Renata concedeu à revista Medicina Veterinária em foco. 

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Revista Medicina Veterinária em foco: A hora da eutanásia engloba muitos fatores. Desde a decisão até a comunicação com os tutores. Que dicas daria aos veterinários para que esse comunicado, essa conversa com o tutor, seja a mais correta e confortadora possível?

Renata Bottura: Podemos dizer, de modo geral, que quase toda despedida tende a ser um momento muito delicado, seja para a família responsável pelo animal, como para a equipe que acompanhou este paciente ao longo de todo o tratamento – se foi este o caso. Deste modo, a melhor maneira para enfrentar estas situações é agir preventivamente, sendo necessário pensar nas várias etapas do processo, para que todos possam ser acolhidos e tratados com o respeito merecido: paciente, tutores e equipe veterinária.

Cabe lembrar que nas últimas três décadas, mais notadamente nas sociedades ocidentais (FARACO, 2008), os animais de estimação passaram a conquistar status de membros da família, agora denominadas “multiespécie”. Com essa mudança de status é preciso compreender que os profissionais não recebem mais em seus consultórios “apenas” um cão ou gato, mas um membro daquele núcleo familiar; e se ele evoluir para a fase terminal de uma doença crônica, ou por qualquer outro quadro agudo, houver necessidade da indicação da eutanásia, o médico-veterinário e toda a equipe da instituição, deverão estar preparados para prosseguir com o processo adequadamente. As palavras e conversas conduzidas, o local designado, o tempo dedicado para a família: tudo deve ser considerado.

Em relação aos tutores, devemos levar em conta que estes, a depender do grau de apego e afeto dedicado àquele animal em especial, estarão vivenciando um processo de luto antecipado; neste sentido, cabe-nos uma porção de empatia para compreendermos a dor alheia.

Qual a visão que o tutor possui acerca da eutanásia? ele é a favor ou contra a técnica? A eutanásia é um procedimento legalizado e regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), atualizado na resolução n°1.000 de 11.05.2012, diferentemente do que ocorre na Medicina Humana – com exceção de alguns países, em que a prática do Suicídio Assistido é permitida (na Colômbia, Canadá, Suíça, alguns estados americanos, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e um estado Australiano, por exemplo).

Sendo assim, o que para nós, profissionais, faz parte do rol de tratamentos a ser dispensados, para muitos tutores ainda é tema de muitos conflitos – ainda mais neste novo contexto da família multiespécie. Como aponta Goldberg (2018), a eutanásia deveria ser vista como um instrumento a ser considerado, e não como um procedimento que “devemos” fazer, já que as pessoas não estão habituadas a realizar a eutanásia de seus entes queridos, e acabam transferindo esses dilemas para o campo da Medicina Veterinária, transferindo suas experiências das relações com os humanos perante casos de doenças crônicas ou mesmo quadros agudos para os animais de estimação, e assumem, muitas vezes, estas mesmas posturas com estes.

Insisto em reforçar que este cuidado e tipo de orientação deve ser compartilhado por toda equipe, incluindo desde os colaboradores da recepção, até o pessoal da enfermagem veterinária – o atendimento se inicia com a chegada do animal à clínica, portanto, todos devem receber treinamento adequado.

“Na correria da rotina, na demanda por tantos atendimentos, na preocupação com os protocolos e técnicas, podemos nos esquecer do ‘óbvio’; porém, se lembrarmos nossas próprias experiências diante da perda e da dor, saberemos ser cuidadoso com a dor alheia, da maneira respeitosa que o momento exige”, Renata Bottura, médica-veterinária e psicóloga – Foto arquivo pessoal

RMVF: Então, o que deve ser feito, em termos práticos?

Renata: Em termos práticos, muito há que se fazer (BAILE et al., 2000). Quando de fato é chegado o momento da realização do procedimento, ou pelo menos da conversa com a família sobre sua possibilidade, algumas medidas podem ser adotadas pela equipe:

– Reserve tempo para estar com o tutor, para este momento, e ofereça uma escuta sincera para a conversa;

– Prepare-se, pois provavelmente não será uma tarefa fácil…;

– Atente-se para sua postura corporal, para a disposição dos móveis da sala (entre a equipe e o tutor) e dos membros da equipe e tutores – tente equilibrar a distribuição, para que não fique tutores de um lado, profissionais do outro (pode ficar um ambiente “frio” para o que o momento exige);

– Fale olhando nos olhos do tutor, mantendo um tom de voz firme e constante. Isso tende a acalmar o ouvinte;

– Ofereça, se necessário, um copo de água e lenços de papel. Isso é gentil e confortante;

– Deixe o celular no modo vibratório. Isso é ser respeitoso;

– Se possível, já tenha estabelecido na Instituição uma sala reservada somente para esta conversa/realização do procedimento; é necessário que o tutor tenha privacidade para a vivência do luto, das despedidas, com privacidade, sem o “entra-e-sai” da equipe;

– Quando o procedimento estiver para ser iniciado, permita que a família tenha o tempo necessário para as despedidas. Isso é ter empatia;

– Tente evitar comentários do tipo: “mas ele já viveu bastante” (nunca é suficiente quando amamos, correto?), “você ainda pode ter outro animal de estimação” (no momento da perda, nunca cabe substituição…), “ele está em um lugar muito melhor” (não sabemos a crença religiosa daquele tutor, sabemos?), “infelizmente” ou “sinto muito” no início das frases (pode dar a impressão de que não fizemos o nosso melhor como profissionais);

São cuidados que exigem preparo por parte de toda equipe antes mesmo da chegada do paciente, mas quando adotados trazem benefícios a todos os envolvidos: uma recepção acolhedora para os tutores, um tratamento digno para aquele animal e o sentimento de “missão cumprida” para os profissionais.

RMVF: Existem alguns protocolos internacionais e até nacionais, para esse tema. Existe algum que considera mais apropriado ou mais completo para sugerir aos veterinários?

Renata: Os protocolos descrevem rotinas e cuidados a serem adotados por uma equipe de um determinado serviço e servem para dar diretrizes em relação aos fluxos, condutas e procedimentos clínicos destes trabalhadores. De modo geral, cada instituição acaba escolhendo seus próprios protocolos, embasados evidentemente nas orientações das respectivas entidades em questão.

Em relação aos cuidados com a realização da eutanásia, a classe médica veterinária deve seguir a resolução n°1.000 de 11.05.12 do CFMV, que aborda principalmente os métodos a serem utilizados, aceitáveis e não aceitáveis.

Existe um manual de 2017 redigido pela The International Companion Animal Management Coalition (ICAM), uma parceria entre membros da World Society for the Protection of Animals (WSPA), the Humane Society International (HSI), the International Fund for the Animal Welfare (IFAW), the international arm of the Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA International), the World Small Animals Veterinary Association (WSAVA) and the Alliance for Rabies Control  entitulado “The welfare basis for euthanasia of dogs and cats and policy development”, que disponibiliza, além de todo conteúdo deveras relevante, três tipos de algoritmos a serem utilizados que auxiliam o médico-veterinário na tomada de decisão pela eutanásia (para animais que possuem algum tipo de problema de saúde, problema comportamental ou vivendo em condições passível de maus-tratos). Este material está disponível em: https://www.icam-coalition.org/wp-content/uploads/2017/03/The-welfare-basis-for-euthanasia-of-dogs-and-cats-and-policy-development.pdf (acesso em 27.12.2020).

Além destes, a escala 5H2M da médica-veterinária oncologista Alice E. Villalobos vai ajudar a estabelecer, juntamente com o tutor, o momento do tratamento no qual o paciente se encontra, pois, ela consegue delimitar de modo mais objetivo se o animal pode, por exemplo, ser encaminhado para os cuidados paliativos, no caso de uma doença crônica que se agravou, ou se de fato é chegada a hora da realização da eutanásia, se os parâmetros medidos por este instrumento (no caso, dor, fome, hidratação, higiene, felicidade, mobilidade, dias bons/dias ruins) estiverem muito insatisfatórios.

São materiais que podem servir de “ponto de partida” de consulta para os médicos veterinários, mas as trocas de experiências com os colegas são muito bem-vindas e costumam ser benéficas para o serviço.

RMVF: As diretrizes feitas pelo CFMV para a eutanásia em animais, feita por meio de resolução, sofreram atualizações em 2008 e 2012. Saberia dizer que tipo de alteração foi feita? O que era recomendado e que hoje não é mais, por exemplo?

Renata: A resolução n°714 de 20.06.2002 determinava os métodos aceitáveis e aceitos sob restrição nas várias espécies animais, mas ainda não levava em consideração na sua redação princípios de Bem-Estar Animal. Todas as resoluções possuem estas tabelas dos métodos permitidos ou não, mas as atuais têm ficado cada vez mais detalhadas. Uma alteração relevante da resolução n°876 de 25.02.2008 foi a proibição do uso de CO e CO2 para a eutanásia de cães e gatos, método que ainda era utilizado nos Centros de Controle de Zoonoses (CCZs). Isso também demonstrou preocupação com os profissionais envolvidos, que sofriam risco de intoxicação e desenvolvimento de distúrbios psicológicos ao trabalharem neste tipo de ambiente, onde o sofrimento animal era patente.

Já a resolução n°1.000 de 11.05.2012 apresenta ao longo de todo seu texto uma clara preocupação com o Bem Estar Animal, uma tendência mundial, e também específica mais claramente questões relativas ao uso de animais em pesquisas e laboratórios. Uma outra questão fundamental foi o cuidado com a saúde mental dos profissionais que executam o procedimento de modo rotineiro, solicitando o rodízio sempre que possível. De modo geral, ao longo de todo o texto, pode-se perceber a tentativa em se preservar ao máximo a integridade física e psíquica do técnico.

RMVF: Como o próprio vet pode se preparar emocionalmente para decidir e realizar eutanásia?

Renata: Um bom começo pode ser o médico-veterinário ter claro para si quais são suas próprias convicções acerca da morte, da eutanásia e do que considera um tratamento “exitoso”.

Muitos médicos acreditam que sua única missão é a “cura”, sendo esta a total remissão dos sintomas… Se este for o caso, a possibilidade de indicação do procedimento para um paciente provavelmente será fonte de conflitos e dilemas internos, pois terá percebido seu trabalho com esta família como um fracasso – o que sabemos ser incorreto.

Esta reflexão pode ser feita através de um processo psicoterapêutico, onde o profissional falará não só de suas questões pessoais que o afligem, mas poderá também discutir temas do trabalho que o incomodam – para isto também serve a terapia; uma outra maneira de se preparar é através da capacitação técnica sobre o assunto, seja com cursos presenciais ou on-line, workshops, leitura de artigos e livros sobre o tema e afins. Tudo que lhe capacite sobre o assunto deverá ajudá-lo no momento real com o tutor e seu paciente.

Aqui farei um adendo: por vezes surge na rotina um dilema ético, situação em que existem interesses de peso moral equivalentes em competição, e não parece haver solução óbvia para se priorizar um sem detrimento do outro (KIPPERMAN, MORRIS e ROLLIN, 2018). Rollin ainda descreve um tipo especial de dilema ético, definido como estresse moral: a tensão que surge daquilo que o profissional acredita que deveria estar fazendo, e o que “de fato” faz… Me refiro a isto pois uma pesquisa conduzida com médicos veterinários de Edinburgh, via questionário on-line enviado por e-mail, revelou que das quatros principais causas apontadas geradoras de dilemas éticos, duas estavam relacionadas à eutanásia (KIPPERMAN, MORRIS e ROLLIN, 2018). Uma outra pesquisa, conduzida de modo similar mas com profissionais americanos, apontou resultados semelhantes em relação às causas de dilemas éticos (BOYD, MALOWNEY e MOSES, 2018) e chamou a atenção o fato destes se queixarem da falta de preparo na graduação em temas como “resolução de conflitos” e “auto-cuidados”.

Os currículos das faculdades brasileiras carecem de preparo neste sentido também, e parece ser urgente uma revisão dos mesmos, no sentido de incluir matérias que priorizem as técnicas de comunicação, princípios da Psicologia e Tanatologia, por exemplo. Seria uma outra maneira, a longo prazo, de começar a preparar melhor os nossos profissionais para o mercado de trabalho atual, em constante evolução.

RMVF: Em suas palestras, que dúvidas são mais comuns sobre o tema?

Renata: Tenho percebido que muito do que envolve o tutor, e as formas de se comunicar com o mesmo, ainda gera bastante dúvida e receio: como abordar o cliente em relação à eutanásia? Quem deve iniciar esta conversa, o médico-veterinário ou o tutor? Como saber quando é o momento de fazer a eutanásia? São algumas das perguntas mais frequentes.

RMVF: Os veterinários ainda têm muita dúvida de quando é a hora de considerar a eutanásia? Por quê? Nesses casos, que conselhos dá ao profissional para que ele tenha mais certeza na sua decisão?

Renata: Não é de se estranhar que o momento de considerar a eutanásia gere dúvidas ou apreensão, afinal de contas trata-se de dar fim a vida.

Para que isto seja feito da maneira mais harmoniosa possível é que citamos acima alguns dos referidos manuais e resoluções a serem seguidos, e as possibilidades de intervenções a serem realizadas, como os treinamentos e a própria psicoterapia – todos estes recursos deverão lhe prover suficiente suporte e confiança quando o momento exigir.

Além do mais, espera-se que a organização forneça apoio para sua equipe, seja através de discussão de casos feita quinzenalmente, por exemplo, ou da possibilidade de troca de experiências entre os profissionais (grupos de Whatsapp são uma realidade atualmente) ou qualquer outro formato a ser criado que funcione melhor para determinado serviço.

Nós, médicos-veterinários, temos um compromisso assumido com a saúde animal, com a saúde humana e com o meio ambiente. Não será diferente quando for chegada a hora da eutanásia.

Podemos tomar nossas decisões somente baseadas nos parâmetros do animal, se apresentando sinais de melhora ou piora clínica, com bem estar animal ou ausência deste; entretanto, ainda mais com o advento das novas relações psicossociais, a família multiespécie, devemos olhar também para o modo como a família e/ou tutor está enfrentando o processo de adoecimento daquele paciente: a devoção aplicada (a quantidade de tempo, esforço e a interação contínua com o pet); o valor que este possui, emocional e financeiro, e o quanto a família ainda consegue prover de ambos quesitos; a preocupação que está sendo gerada, e o impacto na saúde dos envolvidos; sem contar nossa responsabilidade com questões que envolvam doenças de caráter zoonótico e Saúde Pública – todos estes fatores deverão ser ponderados pelo médico veterinário ao se considerar a indicação da eutanásia. Para tanto, ele deverá ter estabelecido para si mesmo suas concepções acerca do seu papel e tipo de atendimento que oferta, se em prol do melhor interesse do paciente, bastante comum nos países europeus de língua alemã, ou que adota uma abordagem ética equilibrada, cujos interesses dos tutores e paciente, possam ser devidamente levados em consideração (PERSSON et al., 2020). Isso o ajudará a tomar decisões com mais discernimento e, muito provavelmente, menos angústias. De qualquer modo, não podemos nos esquecer que a palavra final é sempre do cliente.

RMVF: O que o veterinário precisa ter em mente para lidar melhor com tais situações?

Renata: Empatia, compaixão – capacitado tecnicamente provavelmente ele já estará. Essa fase do atendimento demanda isso. Como bem diz o famoso analista Carl Gustav Jung: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. No nosso caso, este cuidado deverá ser estendido ao nosso paciente também, obviamente.

Na correria da rotina, na demanda por tantos atendimentos, na preocupação com os protocolos e técnicas, podemos nos esquecer do “óbvio”; porém, se lembrarmos nossas próprias experiências diante da perda e da dor, saberemos ser cuidadoso com a dor alheia, da maneira respeitosa que o momento exige. Isto deverá ser suficiente para guiar o médico-veterinário para ter uma postura profissional, sem, contudo, ser desumano com o paciente e o tutor.

RMVF: O que pode ser feito após a tomada de decisão para que o veterinário não sofra demais por ter eutanasiado um animal? É comum o veterinário sofrer algum tipo de estresse ou trauma se não tomar cuidado? Que problemas ele pode ter?

Renata: A eutanásia já é reconhecidamente tida como importante fator estressor na rotina médica-veterinária; entretanto, cabe ressaltar que os trabalhos que chegaram a estes resultados foram conduzidos com profissionais que a realizam em animais saudáveis (ROGELBERG et al., 2007), aqueles que trabalham com animais sujeitos à pesquisa/de laboratório ou de produção – grandes animais (ROHLF e BENNETT, 2005). Embora corriqueira e justificável na clínica, sua prática não é livre de efeitos colaterais em todos os envolvidos, a depender do contexto e frequência em que seja realizada (PERSSON et al., 2020). Em se tratando da equipe profissional podemos citar, entre tantos, a Síndrome de Burnout e a Fadiga por Compaixão e sintomas clássicos da depressão. WHITCOMB (2011) ressalta que o índice de suicídio é maior na medicina veterinária do que em outras categorias profissionais, sendo até quatro vezes superiores aos da população geral.

Tanto a Síndrome de Burnout, como a Fadiga por Compaixão, são quadros laborais, que de modo geral podem levar à exaustão emocional, comprometendo a capacidade do profissional em suportar o sofrimento alheio, e suas próprias funções dentro da instituição, de modo sucinto. Muitos perdem seu senso de realização profissional ao ponto de precisarem ser afastados do trabalho, ou mesmo pedirem demissão. Daí a importância de se falar sobre o assunto dentro da comunidade médica veterinária, em caráter preventivo.

RMVF: Existem cases de fora ou pesquisas que revelem dados sobre a eutanásia em cães e gatos, como um comparativo?

Renata: Em países como Austrália, Estados Unidos e no Reino Unido, muitos abrigos de cães e gatos contam com um nível maior de organização e financiamento comparado com os existentes no Brasil, e isto possibilita um maior conhecimento da realidade que os cerca.

É de conhecimento geral que muitas destas instituições possuem a política “kill” ou “no kill”, ou seja, quando um animal adentra determinada instituição, ele terá um prazo determinado para ser adotado, caso contrário será eutanasiado – boa parte dos trabalhos e estatísticas advém destas organizações.

Em caráter ilustrativo, somente na Austrália há uma estimativa de que 140.000 cães e gatos saudáveis sejam eutanasiados por ano nos abrigos (MONTOYA et al., 2017); em Nova Gales do Sul, de 2011 a 2012, dos 53.303 cães e 25.072 gatos que foram entregues ou chegaram nos abrigos, 26% e 65% deles respectivamente foram submetidos ao procedimento; nos EUA, em 2008, cerca de 3.7 milhões de cães e gatos tiveram o mesmo fim em abrigos; a Espanha refere não ter dados oficiais tanto sobre os animais abandonados nas ruas, quanto na sua população total de cães e gatos (FATJÓ et al., 2015). Uma triste realidade, que certamente afeta a equipe envolvida.

As causas para a entrega dos animais envolvem desde problemas comportamentais apresentados por eles (medo, latidos excessivos, micção fora do local apropriado, agressão, destrutividade, modos ruins, hiperatividade), mudança de acomodação ou estilo de vida do tutor, até problemas de saúde do mesmo (GATES et al., 2018).

Isto nos leva a refletir que apesar da mudança de status dos animais de estimação nas famílias das sociedades ocidentais, diante das dificuldades encontradas ao longo da convivência, o abandono acaba sendo considerado uma opção viável e, por conseguinte, a eutanásia  ainda precisa ser utilizada como recurso.

Neste sentido, torna-se primordial a atitude mais proativa do médico-veterinário, exercendo também seu papel de educador, em cada consulta de rotina realizada, inclusive questionando o cliente sobre questões comportamentais apresentadas pelo pet – os tutores esperam isso de nós, profissionais (KOGAN et al., 2019). É a medicina fazendo o seu papel preventivo, e não somente curativo.

RMVF: Quais os maiores causadores de eutanásia de cães e gatos no Brasil? Existe alguma doença ou condição prevalente? 

Renata: No Brasil os abrigos que existem se organizam de modo totalmente diferente aos encontrados mundo afora, operando com uma precariedade de recursos. Não dispõem de ajuda governamental, e pouquíssimos conseguem doações por parte da sociedade civil. Isto afeta, inclusive, a possibilidade de coleta de dados estatísticos – não possuímos  dados oficiais, que nos digam ao certo quantos cães e gatos existem em cada um, entram e saem por ano, por quais motivos, taxas de óbitos, causas de adoecimento, condutas realizadas, etc.

Um breve levantamento realizado mostra que os dados costumam surgir dos Hospitais Veterinários (HOVET) das Faculdades de Medicina Veterinária existentes.

Em Ituverava, por exemplo, foi feito um levantamento de todos os casos que envolveram eutanásia naquele HOVET no período de agosto de 2017 a março de 2019, e das 2.982 fichas analisadas, somente 41 resultaram em eutanásia, sendo 10 casos por cinomose (em cães), 06 casos por fraturas de coluna e 05 casos por neoplasias em geral (SOUZA et al., 2019).

No Rio Grande do Sul, no curso de Medicina Veterinária, foram realizadas necrópsias dos animais recebidos no serviço (com dados fornecidos pelo clínico), provenientes de morte espontânea e eutanásia, de diversas espécies. No caso dos 53 cães, 35 tiveram morte espontânea, e 18 foram eutanasiados (44,4% por neoplasmas, 33,3% de doenças infecciosas – principalmente cinomose, 16,7% de doenças degenerativas, 5,6% de distúrbios causados por agentes físicos). No caso dos 13 gatos, 10 tiveram morte espontânea, e 03 foram eutanasiados (33,34% por neoplasmas, 33,33% de doenças degenerativas, 33,33% de doenças infecciosas) (BATISTA et al., 2014).

São duas realidades apenas, mas sabemos da pouca adesão no território brasileiro ao protocolo vacinal em relação às vacinas polivalentes, por exemplo, e estes estudos já indicam as doenças infecciosas como relevantes causas para indicação da eutanásia. A cinomose é considerada endêmica no país, e doenças como a FILV/FelV voltam a preocupar a classe médica veterinária, com aumento progressivo dos casos. As fraturas de modo geral também costumam resultar em eutanásia, seja pela duração do tratamento (geralmente longa) ou custo do mesmo.

De qualquer modo, mais pesquisas precisam ser conduzidas no Brasil para que possamos melhorar a qualidade dos dados disponíveis, e tomarmos medidas mais assertivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BAILE, W. F. et al. Um protocolo em seis etapas para transmitir más notícias: aplicação ao paciente com câncer. L.A., maio 2000.

2. BATISTA, M. et al. Causas de morte e razões para eutanásia de animais domésticos. In: XXII Seminário de Iniciação Científica do Curso de Medicina Veterinária do Departamento de Estudos Agrários, 2014, Rio Grande do Sul. Disponível em:  https://www.publicacoeseventos.unijui.edu.br/index.php/salaoconhecimento/article/view/3958/3330#:~:text=Trinta%20e%20cinco%20c%C3%A3es%20sofreram,dist%C3%BArbios%20(5%2C7%25)%20nos (acesso em 30.12.20)

3. BOYD, J. W.; MALOWNEY, M. J.; MOSES, L. Ethical conflict and moral distress in veterinary practice: a survey of North American veterinarians. Journal of Veterinary Internal Medicine, vol. 32, n. 06, p. 2115- 2122, out. 2018. doi:10.1111/jvim.15315

4. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução n°1.000 de 11.05.12. Dispõe sobre procedimentos e métodos de eutanásia em animais. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5500974/mod_resource/content/2/resolucao_1000.pdf (Acesso em 29.12.20)

5. FARACO, C.B. Interação Humano-cão: o social constituído pela relação interespécie. 2008. 108 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/620/1/400810.pdf. (Acesso em 26.09.20).

6. FATJÓ, J.; BOWEN, J.; GARCÍA, E.; CALVO, P.; RUEDA, S.; AMBLÁS, S.; LALANZA, J.F.. Epidemiology of Dog and Cat Abandonment in Spain (2008-2013). Animals, vol. 5, n. 2, p. 426 – 441, jun. 2015. doi: 10.3390/ani5020364.

7. GATES, M.C.; ZITO, S.; THOMAS, J.; DALE, A. Post-Adoption Problem Behaviours in Adolescent and Adult Dogs Rehomed through a New Zealand Animal Shelter. Animals, vol. 8, n. 6, p. 93, jun. 2018. doi: 10.3390/ani8060093.

8. GOLDBERG, K. End-of-life care: taking care of ourselves, clients and patients. Clinician´s Brief: New York. jan-fev, 2018.

9. KIPPERMAN, B.; MORRIS, P.; ROLLIN, B. Ethical dilemmas encountered by small animal veterinarians: characterisation, responses, consequences and beliefs regarding euthanasia. Veterinary Record, vol. 182, n. 19, fev. 2018. doi: 10.1136/vr.104619

10.KOGAN, L.R.; HELLYER, P.W.; RISHNIW, M.; SCHOENFELD-TACHER, R. Veterinary Behavior: Assessment of Veterinarians’ Training, Experience, and Comfort Level with Cases. J Vet Med Educ., vol. 47, n. 2, p. 158-169, abr. 2019. doi: 10.3138/jvme.0318-035r1.

11.LOW, P. The Cambridge Declaration on Consciousness. Disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 02 ago. 2020.

12.MONTOYA A.I.A.; RAND,  J.S.; GREER, R.M.; ALBERTHSEN, C.; VANKAN, D. Relationship between sources of pet acquisition and euthanasia of cats and dogs in an animal shelter: a pilot study. Aust Vet J., vol. 95, n. 6, p. 194-200, jun. 2017. doi: 10.1111/avj.12582.

13.PERSSON et al. Philosophy of a “Good Death” in Small Animals and Consequences for Euthanasia for Animal Law and Veterinary Practice. Animals, vol. 10, n. 1, p. 124, jan. 2020. doi:10.3390/ani10010124.

14.ROGELBERG, S.G. et al. Impact of euthanasia rates, eutanásia practices, and human resource practices on employee turnover in animal shelters. Journal of the American Veterinary Medical Association, vol. CCXXX, n. 5, p. 713- 9, mar. 2007.

15.ROHLF, V.; BENNETT, P. Perpetration-induced Traumatic Stress in Persons Who Euthanize Nonhuman Animals in Surgeries, Animal Shelters, and Laboratories. Society and Animals, ano XIII, n. 3, p. 201-19, 2005.

16.SOUZA, M. V. et al. Levantamento de dados e causas de eutanásia em cães e gatos: avaliação ética-moral. Pubvet, vol. 13, n. 11, p. 150, 2019.

17.WHITCOMB, R. Estudo analisa fatores em alto índice de suicídio entre veterinários. Animal marketing, São Paulo, 02 jul. 2011. Disponível em: https://animalmarketing.com.br/2011/07/02/estudo-analisa-fatores-em-alta-taxa-de-suicidio-entre-veterinarios/. (Acesso em: 30.12.2020).

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