Tromboembolismo arterial felino – a importância do diagnóstico precoce na cardiomiopatia hipertrófica

Por Fernanda Fonsatti

Tromboembolismo arterial felino – a importância do diagnóstico precoce na cardiomiopatia hipertrófica

Nas últimas décadas o número de gatos dentro das residências vem aumentando de forma considerável, de forma que esses animais passam a fazer parte das famílias, sendo cada vez mais comum a procura por atendimento especializado e preocupação por parte dos tutores com o bem-estar e longevidade desses animais.

Conforme essa procura vai aumentando, assim como a expectativa de vida desses pacientes a responsabilidade passa a ser do clínico veterinário, que deve instruir de forma correta os responsáveis pelo animal. Assim como a profilaxia através de vacinação, vermifugação e controle de ectoparasitas, exames preventivos devem fazer parte do check-up anual desses animais, e conforme a idade vai avançando doenças específicas devem ser investigadas, sendo obrigatório fazerem parte da rotina desses animais.

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Na medicina canina já é bem difundida e aceita a avaliação cardiológica de animais em final da fase adulta e inicio da fase senil, sendo extremamente comum nessa espécie a endocardiose de mitral. Cada vez mais esses animais são encaminhados para exames ecocardiográficos a fim de se obter um diagnóstico precoce. No entanto na medicina felina a realidade é outra, pouco se fala sobre a avaliação cardiológica precoce desses animais, exceto entre aqueles que praticam a especialidade.

Quantas mortes súbitas em gatos idosos e muitas vezes sem causa diagnosticada poderiam ser evitadas se a avaliação ecocardiográfica fosse algo rotineiro nos nossos felinos adultos e idosos, assim como a avaliação da função renal e demais exames já difundidos?

As cardiomiopatias são as principais doenças cardíacas encontradas nos felinos, sendo causas comuns de morte súbita.  Atualmente a mais comum é a cardiomiopatia hipertrófica, que pode ser considerada primária ou secundária a outras patologias.

A principal característica da CMH é hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo, sem que haja dilatação do mesmo. A doença se caracteriza por uma associação entre o relaxamento ineficiente ventricular associado ao aumento da espessura do ventrículo esquerdo, combinação essa que irá resultar em uma disfunção diastólica com aumento da pressão atrial e consequente desenvolvimento de insuficiência cardíaca congestiva.

A cardiomiopatia hipertrófica primária é aquela em que não há uma doença base causando a hipertrofia do miocárdio, sendo considerada idiopática, no entanto sabe-se que assim como na medicina humana existe uma predisposição genética para que a doença ocorra, sendo muito comum o acometimento familiar de algumas raças específicas tais como Persa, British Shorthair, Norueguês da Floresta, Ragdoll, Turkish Van, Scottish Fold, Bengal e Sphynx. No entanto animais sem raça definida também são acometidos.

Já a CMH secundária é uma consequência de outra patologia que irá atuar sobre o miocárdio. Dentre as principais causas estão aquelas doenças que levam ao aumento da pressão arterial sistêmica tais como Doença Renal Crônica e Hipertireoidismo.

O hormônio tireoidiano atua diretamente sobre o miocárdio e através da exacerbação do sistema nervoso simpático, de forma que o aumento da frequência cardíaca, aumento da contratilidade, aumento da pressão arterial sistêmica e estado hiperdinâmico causado pelo aumento do metabolismo podem resultar na hipertrofia do músculo cardíaco.

A idade média do acometimento varia bastante, em animais que apresentam a forma primária ou familiar da doença o diagnóstico pode ocorrer ainda na fase jovem até a fase adulta e geriátrica, já aqueles que apresentam a forma secundária da doença normalmente são acometidos ao final da idade adulta, acima dos 7 anos.

Os sinais clínicos são inespecíficos e na maioria dos casos ausentes, podendo ocorrer apenas letargia e anorexia. No exame físico poucas alterações podem ser identificadas, tosse não é uma manifestação comum nos felinos que apresentem insuficiência cardíaca congestiva (ICC), assim como o sopro está ausente na maioria dos casos. Ritmo de galope pode estar presente, no entanto devido à alta frequência cardíaca dos felinos nem sempre é fácil de ser identificado.

Os sintomas na maioria dos casos são silenciosos e quando há manifestação ocorre de forma súbita, geralmente relacionados com a insuficiência cardíaca congestiva ou o tromboembolismo, sendo na maioria dos casos fatal.

O diagnóstico definitivo é feito através do exame ecocardiográfico, onde será possível identificar as alterações morfológicas e funcionais das estruturas cardíacas e até mesmo visualizar a presença de trombos.

As principais consequências da CMH são as alterações causadas pela ICC, tais como edema pulmonar, efusão pleural e falência cardíaca. Talvez a mais comum e grave consequência da CMH seja o tromboembolismo arterial sistêmico.

A associação entre o relaxamento ineficiente do ventrículo e dificuldade no esvaziamento levam ao aumento do átrio direito e estase sanguínea, que associada a lesão do endotélio irá levar a agregação plaquetária, aumentando muito as chances de formação de um trombo. A partir do momento que esse trombo se desprende e obstrui uma artéria periférica temos um quadro de tromboembolismo arterial instalado, levando a uma obstrução mecânica que interromperá de forma total ou parcial o fluxo sanguíneo para os tecidos distais ao local embolizado.

A localização mais comum de embolização nos felinos é a aorta distal, podendo acometer um ou ambos os membros. Ainda que raro pode ocorrer embolização da artéria braquial, sendo mais comum o acometimento do membro direito.

Geralmente a queixa por parte dos tutores é inicio de dor intensa e aguda, muitas vezes acompanhada de vocalização e intenso sofrimento eplegia súbita de um ou dois membros. Na avaliação o membro afetado encontra-se cianótico, frio a palpação, com ausência de pulso e sinais de ausência de fluxo sanguíneo. Edema pulmonar e efusão pleural podem estar associados como consequência da ICC.

O quadro é uma emergência grave e de intenso sofrimento para o animal, o tempo entre o início dos sintomas e instituição da terapia emergencial são fundamentais para a sobrevivência e recuperação do paciente, assim como a existência de sequelas.

O tratamento emergencial visa corrigir as disfunções causadas pela ICC, retirar o animal do quadro de dor aguda e sofrimento e impedir a extensão do trombo, assim como o surgimento de novos embolos. A tentativa de desfazer o trombo já formado é contraindicada, devido ao alto risco de síndrome de reperfusão.

Quanto maior o tempo decorrido entre o início do quadro e início da terapia, menor são as chances de sobreviver do animal, assim como maior número de sequelas.

Na tabela abaixo temos listadas as principais drogas utilizadas no tratamento do tromboembolismo arterial.

(Adaptado de Fuentes et al., 2012)

Ainda de acordo com novos estudos a medicação Rivaroxaban é segura para uso em felinos e possui um efeito satisfatório no tratamento.

O prognóstico varia de reservado a grave e depende de alguns fatores como gravidade da paresia ou paralisia, membros acometidos, circulação colateral, grau de envolvimento cardíaco, tempo decorrido entre início do quadro e início da terapia antitrombótica, além do comprometimento dos responsáveis pelo animal em seguir o tratamento.

Relato de Caso:

Felino macho, 12 anos, sem raça definida deu entrada para atendimento emergencial, a queixa principal do tutor era que membro torácico direito ficou “mole” de repente (figura 1), seguido de vocalização e dificuldade para respirar, com inicio há cerca de 1 hora. Ao exame físico foi identificada intensa dispneia, a ausculta crepitação pulmonar, membro torácico direito frio a palpação, coxins cianóticos (figura 2), sem pulso detectável via doppler, intenso desconforto e vocalização, temperatura de 35,6 graus célsius, pressão arterial 300mmHge glicemia 266mg/Dl com sangue obtido da orelha, ao puncionar os coxins do membro direito foi possível obter uma gota de sangue, porem com baixo fluxo, a glicemia dessa amostra indicou 20mg/dl, comprovando a baixa perfusão do membro.

Foi administrado por via intramuscular 0,2mg/Kg de Metadona associado a 2mg/Kg de Meperidina, visando controle de dor e sedação, além de 3mg/Kg de Furosemida por via intravenosa.

Após estabilização do paciente os valores de pressão arterial e glicemia voltaram aos parâmetros de normalidade. Foi administrado por via oral 2,5mg de Rivaroxaban a cada 24 h e 18,75 mg de Clopidogrel a cada 24 horas, associado a administração intravenosa de Enoxaparina 1mg/Kg inicialmente a cada 8 horas, e após 24 horas sendo administrada a cada 12 horas, durante 48 horas.

Figura 1: Imagem do arquivo pessoal (animal apresentando ausência de sensibilidade e arrastando o membro)
Figura 2: Imagem do arquivo pessoal (Diferença de coloração entre os coxins do membro torácico direito e esquerdo, nota-se o membro direito apresentando cianose)
Figura 3: Imagem do arquivo pessoal (membros apresentando coloração semelhante dos coxins, indicando melhora na perfusão do membro direito)

Exame Ecocardiográfico indicou aumento de átrio esquerdo, relação átrio esquerdo: aorta aumentada, aumento de espessura do septo interventriculare parede livre, insuficiência de mitral e fluxo sistólico turbulento em átrio esquerdo, sem repercussão hemodinâmica. Atraves desse exame confirmou-se a cardiomiopatia com caráter hipertrófico.

Animal foi mantido internado durante 72 horas, sendo mantida a terapia anteriormente instituída e fluidoterapia endovenosa. Ainda foram realizados massagem e aquecimento do membro afetado a cada 2 horas durante internação.

Ao terceiro dia animal apresentava melhora na cianose do membro (figura 3), assim como melhora na sensibilidade. A comparação de glicemia do membro com as demais extremidades melhorou, levando a valores semelhantes.

Animal foi liberado para casa com Clopidogrel e Rivaroxaban, além de Tramal na dose de 1mg/Kg a cada 12 horas. Após cinco dias do inicio da terapia já apoiava o membro no chão, conseguindo deambular, porem ainda com déficit propioceptivo, sendo possível identificar pulso do membro ao método doppler.

Após 7 dias de tratamento animal apresentava melhora significativa, apoiando o membro e deambulando normalmente (figura 4), sendo retirada a medicação Rivaroxaban e mantido apenas clopidogrel, como uso contínuo.

Até o presente momento o animal encontra-se estável, não apresentando recidivas, foi indicada a dosagem de hormônios tireoidianos, no entanto os tutores optaram por aguardar.

Figura 4: Imagem do arquivo pessoal (animal apoiando o membro, indicando melhora na sensibilidade)

Ao avaliarmos as principais causas e fatores envolvidos na CMH e consequentemente no tromboembolismo notamos que o diagnostico precoce é de extrema importância e decisivo para o sucesso da terapia, de modo que o responsável estará ciente dos riscos e atento ao mínimo sinal de embolização, facilitando assim o inicio rápido da terapia.

Conforme os animais entram no final da fase adulta e início da fase geriátrica diversas enfermidades passam a ser comuns e muitas vezes ocorrerem concomitantemente. Educar o cliente a fazer check-ups periódicos, incluindo a avaliação ecocardiográfica, mensuração de pressão arterial, dosagens de hormônios tireoidianos é de extrema importância e deve fazer parte da rotina do clínico geral, não apenas aqueles especializados em medicina felina, sendo tão importantes quanto as avaliações hematológicas e bioquímicas.

REFERÊNCIAS:

NELSON, Richard W.; COUTO, C. Guillermo. Small Animal Internal Medicine E-Book. Elsevier Health Sciences, 2014.

ETTINGER, Stephen J.; FELDMAN, Edward C.; COTE, Etienne. Textbook of Veterinary Internal Medicine-eBook. Elsevierhealthsciences, 2017.

FERASIN, Luca. Feline cardiomyopathy. In Practice, v. 34, n. 4, p. 204-213, 2012.

FUENTES, Virginia Luis. Arterial thromboembolism: risks, realities and a rationalfirst-line approach. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 14, n. 7, p. 459-470, 2012.

DIXON-JIMENEZ, Amy C. The Evaluation of Rivaroxaban: A New Oral Anticoagulant in Cats. 2016. Tese de Doutorado. University of Georgia.

Fernanda Fonsatti

Graduação em medicina veterinária pela Unesp de Jaboticabal – 2017 Aprimoramento em Clínica Médica de Pequenos Animais pela UNIFRAN 2018/2020 Pós graduanda em clínica medica e cirúrgica de felinos – instituto Qualittas

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