Sindrome de Pandora

Por Bárbara Basseggio Rivas e Fernanda V. Amorim da Costa

Síndrome de Pandora: recomendações gerais

Entenda melhor o que é essa doença, tão comum em gatos

O termo Doença do Trato Urinário Inferior dos Felinos (DTUIF) ou “Feline Lower Urinary Tract Disease” (FLUTD), anteriormente chamada de Síndrome Urológica Felina (SUF), inclui qualquer alteração vesical ou uretral em gatos. Nos últimos 40 anos, houve mudanças significativas sobre os conceitos de causas e alterações clínicas relacionados ao sistema urinário destes animais. Pesquisas recentes desafiam a visão convencional de que a bexiga é o único órgão afetado e a coloca também o paciente como vítima de um processo sistêmico na maioria dos casos.

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As doenças do trato urinário inferior dos felinos correspondem a aproximadamente de 4% a 10% da casuística de atendimentos em medicina felina, e dentre estes pacientes, 50% a 60% apresentam casos de cistite idiopática.

A Cistite Idiopática Felina (CIF) é uma doença frequente em gatos domésticos e causa sinais clínicos inespecíficos e comuns à maioria das doenças que compõem a DTUIF, tais como: periúria, polaciúria, estrangúria, disúria, hematúria e, algumas vezes, sinais de obstrução uretral. A doença também pode apresentar frequentemente recidiva e cronicidade. A fisiopatologia da CIF envolve interações complexas entre bexiga e sistema neuroendócrino, desta forma, não se restringe unicamente a uma doença vesical ou uretral. Em virtude de ter aspectos ainda não bem compreendidos, e devido a multiplicidade de órgãos afetados, a denominação de “Síndrome de Pandora” foi adotada, em analogia a caixa de Pandora da mitologia grega, considerada fonte de todos os males.

Para os gatos acometidos, o estresse parece exercer importante função sobre o aparecimento, piora e perpetuação das manifestações clínicas. Apesar de ser difícil de provar o papel do estresse, ele está frequentemente envolvido, já que o histórico fornecido pelos tutores aponta para uma associação com transportes, exposições de gatos, um novo animal de estimação ou bebê em casa, férias, estações frias ou chuvosas. Fatores estressantes adicionais em casas que mantém vários gatos podem incluir agressões entre os gatos ou competição pelo acesso à água, comida, caixas sanitárias e espaço. Vários autores também relatam uma possível semelhança entre a CIF e a cistite intersticial (CI) que acomete a espécie humana. Ambos os casos apresentam padrão crônico, urina estéril, proeminente vascularização da mucosa vesical com hemorragia espontânea observada durante a cistoscopia (Figura 1).

Figura 1 – Representação de imagem da vesícula urinária por cistoscopia. 1 – Vesícula urinária de um felino saudável. 2 – Vesícula urinária de felino com cistite intersticial. Observa-se marcada vascularização e pontos hemorrágicos na mucosa vesical.

Hoje, acredita-se que a cascata de eventos que culminam na sensibilização da vesícula urinária inicia com uma anormalidade do SNS e eixo hipotálamo-hipófise-adrenal destes felinos, culminando no aumento da produção de catecolaminas e, consequentemente, o aumentando concentrações plasmáticas de norepinefrina e dopamina. O aumento destas substâncias leva a alterações da permeabilidade do urotélio que reduzem a camada protetora de glicosaminoglicanos (GAGs). Esta infalamação neurogênica, permite o contato do uroepitélio com componentes da urina como íons de cálcio e potássio, que estimularão as fibras nociceptoras vesicais causando dor. Ocorre também maior liberação do polipeptídeo substância P, causando espasmos vesicais e agravando a dor. Todo este processo inflamatório da vesícula urinária, juntamente com os mediadores inflamatórios e degranulação de mastócitos, gera um espessamento de sua parede que se mantém, mesmo quando o gato não apresenta sinais clínicos há meses, corroborando com as características crônicas da doença.

A Síndrome de Pandora é mais frequentemente observada em animais jovens a de meia idade, sem predisposição sexual. Gatos domésticos acometidos tendem a manifestar a doença quando submetidos a viagens, mudanças ambientais, exposição a novos animais em seus territórios, participação em exposições, variações climáticas, mudanças no tipo de dieta, na areia, nos bebedouros e comedouros e no manejo das camas. Estes e outros gatilhos podem desencadear uma resposta de estresse exacerbada no felino predisposto. Além disto, diversos estudos correlacionam o estilo de vida do felino contemporâneo com o desenvolvimento da CIF, especialmente o que se refere às características ambientais, as quais os gatos domésticos “indoor” são submetidos, e que parecem propiciar com mais frequências as situações de estresse.

Figura 2 – Imagem A -Representação de bexiga normal. Observa-se a camada muscular (1), o uroepitélio (2) e a camada de glicosaminoglicanos (3). Destaca-se que o uroepitélio está protegido do contato nocivo da urina. Imagem B – Representação de vesícula urinária cronicamente acometida por CIF. Observa-se lesão do uroepitélio (2) e destruição e adelgaçamento da camada de glicosaminoglicanos (3) permitindo contato da urina com a parede vesical. Também ocorre aumento no número de fibras sensoriais e infiltração por mastócitos.

Dentro dos fatores de risco relacionados a doença, situações que levem a um volume de urina reduzido e/ou diminuição da frequência da micção podem predispor o desenvolvimento de CIF. Estas alterações podem ocorrer devido a indisponibilidade ou falta de limpeza das caixas sanitárias, diminuição da atividade física, obesidade, confinamento, diminuição do consumo de água (água não potável, alimentação seca exclusivamente), além de agressões/disputas entre gatos. Tendo em vista que a população de felinos domésticos “indoor” está em crescimento, a probabilidade é que a ocorrência desta doença aumente proporcionalmente.

O diagnóstico de Síndrome de Pandora é complexo e baseado em exclusão de outras possíveis causas, portanto, é necessária a realização de múltiplos exames que permitam investigar todas as causas de DTUIF. Além disto, o clínico deve realizar uma anamnese minuciosa, incluindo dados ambientais e o questionamento sobre possíveis gatilhos para o paciente. Quando se avalia esses gatilhos geradores de estresse, deve-se ter em mente que, muitas vezes, esses fatores podem ser subjetivos e de difícil identificação. Gatos que dividem o domicílio com outros animais devem ter atenção especial, já que estudos identificaram que, de todas as fontes de estresse consideradas nos gatos, a mais relevante é a disputa por território.  Identificando os gatilhos e descartando as demais causas, o diagnóstico da Síndrome de Pandora é estabelecido. 

A modificação multimodal do ambiente (MoMA) é um dos pilares do tratamento, possuindo uma eficácia na redução dos sintomas da CIF entre 70% a 75% e, concomitantemente, leva a redução dos comportamentos de medo e agressividade. A implementação do enriquecimento ambiental, através das MEMO, deve ser a terapêutica principal da cistite intersticial para diminuição do estresse e, caso as manifestações clínicas persistam, o tratamento farmacológico deve ser associado. Da mesma forma, o uso de feromônios e alterações no ambiente social também são imprescindíveis para tratar os gatos acometidos.

O tratamento da CIF tem como principais objetivos diminuir a intensidade e aumentar o intervalo das crises. Por meio de analgesia, medicações antiespasmódicas, manejo de estresse, aumento da ingestão hídrica e proteção do uroepitelio, pode-se obter uma boa resposta clínica. Agentes psicoativos podem ser necessários para pacientes recidivantes ou quadros crônicos da doença. Felizmente, medicações indicadas na literatura são de fácil acesso para o médico veterinário no país, como exposto na Tabela 1.

Tabela 1 – Medicações utilizadas para manejo terapêutico de felinos acometidos por cistite intersticial.

Embora o número de estudos sobre medicações antiespasmódicas seja limitado, a prazosina tem demonstrado benefícios por relaxar a musculatura lisa e estimular a micção, entretanto, é importante lembrar que podem causar hipotensão no paciente e que seu uso exige cuidado. O uso de medicações analgésicas reduz a gravidade dos sinais clínicos de forma significativa, mas a associação medicamentosa é geralmente necessária.

Já em relação ao uso de anti-inflamatórios, os corticosteroides não demonstram eficácia, mas o uso de anti-inflamatórios não esteroidais podem auxiliar em determinados pacientes, mesmo considerando que a inflamação seja auto limitante. 

Os antidepressivos tricíclicos foram benéficos no tratamento de algumas pessoas com cistite intersticial e em vários gatos com CIF. Esta classe de fármacos possui efeitos anticolinérgicos, além de efeito anti-inflamatório, por prevenir a liberação de histamina pelos mastócitos e efeitos anti-adrenérgicos, analgésicos e antidepressivos. Porém, há evidências de que tratamentos de curto prazo não costumam apresentar eficácia para felinos acometidos. Recomenda-se reservar os antidepressivos tricíclicos para casos graves e crônicos, e sempre com cautela.

As bactérias não possuem papel primário nos quadros de CIF, portanto, não há indicação do uso de antibióticos na terapêutica destes pacientes se não houver cultura bacteriana positiva

Pode-se concluir que a síndrome de Pandora é uma doença de gatos sensíveis expostos a um ambiente provocativo. Apesar de comum, representa um desafio diagnóstico e terapêutico para o clínico e exige extensa colaboração do tutor. Conhecer os aspectos que envolvem a cistite idiopática felina, sua etiologia, seus gatilhos geradores, a patogenia e, principalmente, conhecer as possibilidades terapêuticas pertinentes são vitais para que o médico veterinário tenha sucesso no tratamento dos pacientes com CIF.

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Bárbara Basseggio Rivas

Formada em medicina veterinária pela Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná – UNICENTRO (2015). Residência em clínica médica de pequenos animais pela Universidade Estadual de Londrina - UEL (2017). Mestranda em ciências veterinárias pela UFRGS. Realiza atendimento especializado no setor de Medicina Felina da mesma universidade.

Profa. Fernanda V. Amorim da Costa

Mestrado em Medicina Veterinária pela UFF em 2006 e Doutorado pela UFRGS em Ciências Veterinárias em 2011. Especialização em Clínica Médica e Cirúrgica de Felinos em 2012. Internship no Alamo Feline Health Center, Texas, EUA, em 2006 e 2018. Membro fundador da Academia Brasileira de Clínicos de Felinos – ABFel. Autora do livro Oncologia Felina, 2017. Autora de diversos capítulos em livros nacionais e internacionais sobre Medicina Felina, incluindo livros americanos, argentinos e mexicanos de referência. Coordenadora do Serviço de Medicina Felina do Hospital de Clínicas Veterinárias, aonde realiza tutoria dos residentes de Clínica Médica de Pequenos Animais. Pesquisadora, membro permanente e orientadora nos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias. Coordenadora substituta da Comissão de Pesquisa. Coordenadora e Docente do Curso de Especialização em Clínica Médica de Felinos Domésticos Departamento de Medicina Animal - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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