Polimiosite imunomediada em cão

Por Richard Simon Machado¹ e Jairo Nunes Balsini1

¹ Liga Acadêmica de Neurologia Veterinária, Universidade do Sul de Santa Catarina – Tubarão, Santa Catarina

INTRODUÇÃO

Miosite se refere a inflamação da musculatura e, quando vários músculos são afetados, o termo polimiosite (PM) é utilizado para descrever a condição patológica (Kornegay et al., 1980). Trata-se de uma doença inflamatória imunomediada de patogênese desconhecida que afeta principalmente os músculos apendiculares. O relato de PM é mais comumente descrito em cães do que em gatos (Dewey e Costa, 2016).

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Cães adultos de raças de grande porte são acometidos com mais frequência, com muitos casos evidenciados em Pastores-alemães e Boxers (Nelson e Couto, 2015). A fraqueza é a característica mais comum da PM, resultando em claudicação, intolerância ao exercício e um caminhar rígido (Kornegay et al., 1980).

A fraqueza muscular pode evoluir drasticamente se os cães afetados forem forçados a se exercitar. Além da fraqueza, os sinais clínicos podem incluir mialgia, regurgitação (associada ao megaesôfago), disfagia, apatia, hipertermia, tumefação muscular na fase aguda, atrofia muscular na fase crônica e alterações na vocalização (Dewey e Costa, 2016).

O exame neurológico pode não relevar alterações, apresentando normalidade no posicionamento proprioceptivo, estado mental, reflexos da coluna vertebral e nos pares de nervos cranianos. (Taylor, 2000).

O diagnóstico de PM é baseado principalmente nos sinais clínicos, concentração sérica de creatina quinase (CK), eletromiografia (EMG) e biópsia muscular. Na maioria dos cães é observado aumento sérico de CK, mesmo quando em repouso, e após exercício, pode ocorrer um aumento ainda mais acentuado (Taylor, 2000). Em geral, a biópsia muscular é o exame de eleição para diagnóstico definitivo de miopatias inflamatórias e, em alguns casos, pode determinar a etiologia (Evans et al., 2004).

A terapia é focada na imunossupressão e no alívio da mialgia. O prognóstico de PM geralmente é favorável em cães que não apresentam megaesôfago. Se faz necessário a administração de corticosteróides para tratamento dos sinais clínicos e prevenir a recidiva clínica a longo prazo. Terapias imunossupressoras alternativas podem ser uteis para reduzir a dependência de doses elevadas de corticosteroides, tendo em vista os efeitos colaterais causados pelos mesmos (Podell, 2002).

RELATO DE CASO

Um canino macho da raça Boxer, com dois anos de idade, deu entrada em um Hospital Veterinário na cidade de Tubarão/SC com histórico de fraqueza muscular e incapacidade de se locomover normalmente, sem histórico de trauma ou intoxicação. Esses sinais surgiram há cerca de três meses, após realizar atividade física juntamente com o tutor, onde ficou incapacitado de se locomover com os membros pélvicos por três dias.

Figura 1: QR code com acesso aos vídeos do paciente.

O exame clínico revelou dificuldade de locomoção, principalmente com os membros pélvicos, apresentando atrofia em musculatura apendicular evidenciada à palpação. O exame físico não revelou alterações nos parâmetros fisiológicos. Ao exame neurológico, não apresentava alterações em pares de nervos cranianos, reflexo patelar, cutâneo do tronco e membros torácicos.

Evidenciou-se paresia nos membros pélvicos e déficit propioceptivo com presença de dor profunda em todos os membros. A palpação epaxial demonstrou dor em T6-T10 e o animal foi encaminhado para realização de mielotomografia da coluna toracolombar, onde não foi observado alteração, assim como o exame de ultrassonografia.

Exames laboratoriais revelaram níveis séricos de CK aumentados em aproximadamente cinco vezes, num primeiro momento, e posteriormente, foram observados aumentos de doze vezes em relação aos parâmetros fisiológicos de referência (24 a 170U/L). Níveis de transaminase oxalacética (AST) e fosfatase alcalina (FA) estavam normais.

Foi realizado biópsia da musculatura bíceps femoral e a histopatologia revelou moderada tumefação das fibras musculares e áreas de degeneração muscular inicial associado a migração inflamatória multifocal, representado por agregados de linfócitos e plasmócitos. Não foram observados indícios de agentes infecciosos nas amostras analisadas.

Figura 2: resultados laboratoriais do nível sérico de CK 10 dias após início dos sinais clínicos. – Fonte: Autor, 2019

Esses achados suportaram o diagnóstico de PM. Foi iniciada a terapia com prednisolona na dose de 1mg/kg a cada 12 horas por 14 dias, e após, reduzida para cada 24 horas pelo mesmo intervalo de tempo e, por final, a cada 48 horas por 7 dias, onde foi observado melhora do quadro clínico (Taylor, 2000; Dewey e Costa, 2016). Ao término da terapia com corticosteroide, foi instituída azatioprina na dose de 2mg/kg a cada 24 horas por 30 dias.

DISCUSSÃO

A PM não é comumente descrita devido à baixa incidência dessa enfermidade. A imunopatogênese é desconhecida (Dewey e Costa, 2016). Entretanto, em humanos, sabe-se que está relacionado a células T CD8+ que invadem as fibras musculares que expressam o antígeno MHC de classe I, onde em condições normais, as fibras musculares não expressam este antígeno, mas na condição patológica, há superexpressão. As células autoinvasivas expressam marcadores de memória e ativação de CD45RO e ICAM-1 e contêm grânulos de perforina e granzima, que são direcionados para a superfície das fibras, evidenciando a via da perforina como o principal mecanismo de fator citotóxico (Dalakas e Hohlfeld, 2003).

Anticorpos específicos para PM como anti-Jo1, conhecido em humanos, não foram relatados em cães (Podell, 2002). O diagnóstico clínico de PM é confirmado através da concentração sérica de CK, EMG e biópsia muscular (Dalakas e Hohlfeld, 2003). O presente relato, não fez uso da EMG devido a inacessibilidade. Esse exame pode ser útil para localizar o músculo afetado (Bromberg, 1992).

Figura 3: Infiltração celular endomisial e perimisial não supurativa comumente observada em quadros de miosite. Fonte: Dewey & Da Costa, 2016

A ressonância magnética (RM) também pode ser utilizada para identificar locais de inflamação ativa e direcionar regiões de interesse para biopsia muscular (Milisenda et al., 2014). Se estas ferramentas não estiverem disponíveis, os músculos mais sensíveis à palpação devem ser eleitos para realização do exame (Podell, 2002).

Como observado no caso, a histopatologia é considerada o exame mais eficaz para determinar o diagnóstico de PM, embora, em algumas situações, não é conclusiva (Milisenda et al., 2014). Histologicamente é caracterizada por inflamação multifocal e fagocitose de miofibras, infiltrados linfocitários e plasmocitários nos músculos afetados e evidências de regeneração e fibrose. Porém, uma biópsia muscular não elucidada, não deve impedir o diagnóstico de PM quando os achados clínicos, níveis séricos de CK e EMG sugerirem o diagnóstico. A PM tem sido vista como uma condição paraneoplásica de uma variedade de tumores malignos, sendo assim radiografias torácicas devem ser realizadas em busca de neoplasias primárias ou metastáticas, megaesôfago e pneumonia aspirativa (Taylor, 2000).

Diagnósticos diferenciais incluem poliartrite de origem imunológica ou infecciosa, miopatias inflamatórias infecciosas ou associadas a outras condições patológicas do tecido conjuntivo, polimiopatia hipocalêmica, miastenia gravis e doenças associadas à meningite (Podell, 2002).

O tratamento consiste na terapia imunossupressora com prednisolona na dose de 1-2mg/kg/q 12 horas até remissão dos sinais clínicos com subsequente redução gradual da dose (Dewey e Costa, 2016). A azatioprina também é frequentemente utilizada com o objetivo de reduzir os efeitos colaterais dos corticosteroides ou se houver uma resposta inadequada ao mesmo. Durante a redução das doses, recidivas podem ocorrer. A monitoração de CK sérica é utilizada como parâmetro para avaliar eficácia terapêutica (Taylor, 2000).

CONCLUSÃO

Miopatias inflamatórias são enfermidades de difícil diagnóstico, portanto requerem uma atenção clínica, ressaltando a importância dos exames complementares, como o emprego da biopsia muscular para diagnóstico definitivo. A terapia precoce auxilia na rápida recuperação do quadro clínico e drogas imunossupressoras alternativas devem ser associadas para redução dos diversos efeitos colaterais causados pela utilização de corticosteroides.

REFERÊNCIAS

BROMBERG, M. The role of electrodiagnostic studies in the diagnosis and management of polymyositis. Comprehensive Therapy, EUA, 1992. 18 (4), p. 17–22.

DALAKAS, Marinos C.; HOHLFELD, Reinhard. Polymyositis and dermatomyositis. The Lancet, Reino Unido, 2003. 362 (9388), p. 971-982.

DEWEY, C. W.; DA COSTA, R. C. Practical Guide to Canine and Feline Neurology. 3º. ed. New York: Wiley-Blackwell, 2016. p. 516-518.

EVANS, J.; LEVESQUE, D.; SHELTON, G. D. Canine Inflammatory Myopathies: A Clinicopathologic Review of 200 Cases. Journal of Veterinary Internal Medicine, Greenwood Village, 2004. 18 (5), p. 679-691.

KONERGAY, J. N. et al. Polymyositis in Dogs. Journal of the American Veterinary Medical Association, Schaumburg, 1980. 176 (5), p. 431-438.

MILISENDA, J. C.; SELVA-O’CALLAGHAN, A.; GRAU, J. M. The diagnosis and classification of polymyositis. Journal of Autoimmunity, Radarweg, 2014. 48-49, p. 118-121.

NELSON, R. W.; COUTO, C. G. Medicina Interna de Pequenos Animais. 5º. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. p. 3154-3157.

TAYLOR, S. M. Selected Disorders of Muscle and the Neuromuscular Junction. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, Maryland Heights, 2000. 30 (1), p. 59-75.

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Jairo Nunes Balsini

Graduação em Medicina Veterinária pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Mestre em Ciências da Saúde pela mesma instituição. Professor de Neurologia Veterinária na UNISUL, orientador da Liga Acadêmica de Estudos em Neurologia Veterinária (LANEV), responsável pelo Setor de Neurologia Clínica e Neurocirurgia – HVU, formação em Neurologia Canina e Felina pelo Instituto Bioethicus, Botucatu/SP, membro da Associação Brasileira de Neurologia Veterinária (ABNV), professor convidado Pós-Graduação em Neurologia Veterinária no Instituto Bioethicus, Botucatu/SP, Neurologia Clínica e Neurocirurgia pelo Centro Integrado de Especialidades Veterinárias (CIEV) e revisor da Revista Veterinária em Foco.

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Richard Simon Machado

Graduação em andamento em Medicina Veterinária pela Universidade do Sul de Santa Catarina, bolsista de Iniciação Tecnológica do CNPq, presidente da Liga Acadêmica de Estudos em Neurologia Veterinária (LANEV) e vice presidente do Centro Acadêmico de Medicina Veterinária (CAMVET) na mesma instituição. Membro do Grupo de Pesquisa em Neurobiologia dos Processos Inflamatórios e Metabólicos (NeuroIMet – Núcleo Sepse) do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UNISUL.

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