Luxação de Patela em Cães: Novas Perspectivas de Tratamento

Por João Augusto Leonel de Souza e Natasha Pastore Franco

A luxação de patela é uma das principais artropatias da rotina clínica cirúrgica de pequenos animais. Ela pode ser caracterizada pela sua origem (congênita ou traumática) e pela sua orientação (medial ou lateral), sendo que a combinação mais comum é congênita e medial notadamente nos pacientes de raças toy (HANS, et al., 2006; SOUZA, et al., 2009).

A patela é um osso sesamóide localizado no tendão de inserção do músculo quadríceps femoral, que atua em conjunto com a tróclea femoral redirecionando a linha de ação do quadríceps, atuando como uma polia (EVANS e DE LAHUNTA, 2013). Para que a patela funcione de forma eficiente, o alinhamento axial do aparelho extensor é obrigatório. A contração do quadríceps femoral resulta na patela sendo tracionada em uma linha reta que conecta o aparelho extensor proximal e distalmente, diante disso, o desalinhamento do mecanismo extensor proporciona a instabilidade da patela, ou seja, sua luxação. Seguindo esse raciocínio é possível compreender que a luxação de patela não é uma doença e sim um sinal clínico do desalinhamento do mecanismo extensor do quadríceps(TOBIAS e JOHNSTON, 2018).

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Podemos classificar a luxação de patela em graus de I a IV onde; o grau I corresponde ao deslocamento da patela manualmente com ela retornando à posição anatômica assim que liberada; o grau II a patela luxa espontaneamente e retorna a sua posição da mesma forma, neste grau pode existir claudicação no momento da luxação; o grau III a patela se encontra luxada e retorna a sua posição anatômica com pressão manual; o grau IV a patela permanece luxada, sendo impossível o reposicionamento manual (ROUSH, 1993;PIERMATTEI, FLO, DECAMP, 2006; TOBIAS e JOHNSTON, 2018) (Figura 1).

Figura1: Esquema didático dos graus de luxação de patela em cães e gatos. Créditos: João Augusto Leonel de Souza

As principais alterações músculos esqueléticas, ou seja, a origem do desalinhamento do mecanismo extensor do quadríceps, que estão relacionadas a luxação de patela medial são: sulco troclear raso, desvio varus do fêmur distal, torção interna da tíbia proximal, deslocamento medial da crista da tíbia e hipoplasia patelar (FELDMANE e THEYSE, 2021). A extensão dessas alterações está relacionada com o tempo que o paciente apresenta a luxação. Animais jovens desenvolvem anormalidades angulares e torcionais secundárias a forças anormais dirigidas contra a fise aberta; enquanto animais mais velhos que desenvolvem luxação patelar, desenvolvem principalmente doença articular degenerativa associada à falta de contato femoropatelar (ROUSH, 1993).

A fisiopatogenia da luxação de patela está longe de ser algo simples e muito menos de ser completamente compreendida. Artigos divergem na importância de anormalidades no ângulo de inclinação do colo femoral em pacientes portadores desta afecção (PHETKAEW, et al., 2008; BOUND, et al., 2009). Um estudo recente demonstrou uma diferença na inserção do tendão patelar em cães com luxação de patela medial grau II, este achado implica na patela mais próxima ao final da tróclea, sendo isso, um potencial colaborador para a luxação de patela (FELDMANE e THEYSE, 2021).

O diagnóstico da luxação de patela é clínico, palpando a patela e sua localização com relação ao sulco troclear, contudo os exames de imagem são de suma importância na conduta terapêutica (ROUSH, 1993; PIERMATTEI, FLO, DECAMP, 2006; PHETKAEW, et al., 2008; TOBIAS e JOHNSTON, 2018). Radiografias do fêmur e tíbia nas projeções mediolateral e craniocaudal (ou caudocranial) são passiveis do diagnóstico de desvios no plano frontal e sagital e torções proximais de tíbia, toda via, os desvios torcionais do fêmur são mais bem diagnosticados e entendidos com a tomografia (PHETKAEW, et al., 2008). A tomografia além da superioridade em averiguar os desvios torcionais e multiplanares, proporciona outras duas grandes vantagens frente às radiografias: a possibilidade reconstrução tridimensional permitindo entender a correlação entre as deformações (PHETKAEW, et al., 2008; HALL, et al., 2018) e  a oportunidade de realizar impressão tridimensional do osso em estudo, inclusive com a confecção de guias para as osteotomias, aumentando significativamente a precisão cirúrgica e o ensino destas técnicas corretivas (RIBEIRO e ASSIS NETO, 2021) (Figura 2).

Figura2: Imagem ilustrando planejamento cirúrgico com uso de tomografia computadorizada de um paciente canino, macho, 10 meses, com luxação de patela medial grau II devido a deformidade varus de fêmur. (A)Reconstrução tridimensional. (B) Mensuração o ângulo anatômico femoral distal (aLDFA). (C)Planejamento baseado no CORA para osteotomia distal de fêmur. (D) Imagem transoperatória da osteotomia distal de fêmur evidenciando a marcação da cunha que será removida. (E) imagem radiografia pós-operatória imediata demonstrando a fixação da osteotomia e a placa posicionada no sulco troclear. Fonte: João Augusto Leonel de Souza

O tratamento da luxação de patela pode ser dividido em conservador para os casos leves com poucos sinais clínicos, baseado em anti-inflamatórios, condroprotetores e fisioterapia (SOUZA, et al., 2009) e cirúrgico, o qual visa realinhar o mecanismo extensor do quadríceps e com isso reposicionar a patela no sulco troclear. As principais cirurgias propostas para essa finalidade são: transposição da tuberosidade tibial (TTT), que muitas vezes é combinada com uma trocleoplastia femoral, imbricação e liberação de tecido mole (ROSSANESE et al., 2019). Essas    técnicas muitas vezes recolocam a patela no sulco troclear, contudo não realinham plenamente os desvios femorais e tibiais, o que resulta em uma taxa de recidiva relativamente alta (BROWER et al., 2017). Devido a essa percepção, atualmente o foco do tratamento é restaurar o alinhamento ósseo e consequentemente a patela retornará ao sulco troclear. Para isso, utiliza-se técnicas como osteotomias femorais e tibiais em cunha, além das correções dos desvios torcionais.

Brower e colaboradores em 2017 avaliaram o uso de osteotomias distais de fêmur no tratamento de pacientes com luxação de patela medial, possivelmente, atribuídos a um excessivo varo de fêmur. Esses autores utilizaram técnicas de osteotomias em cunha fechada, obtendo apenas 4% de complicações (infecção, falha do implante e claudicação persistente). Vale ressaltar que neste estudo, todos os casos foram solucionados com resultados satisfatórios no longo prazo. Neste estudo os autores usaram além do varo femoral (aLDFA ângulo anatômico femoral distal) como critério para escolha do tratamento conformação do sulco troclear, valgo tibial e torções tibiais e femorais, a correlação desses parâmetros nortearam a escolha da técnica. Deste modo, os autores concluíram ser difícil atribuir um valor de corte para o aLDFA, pois se faz necessário uma avaliação completa da conformação do membro.

Nos casos de torção proximal de tíbia a técnica comumente utilizada é a transposição da tuberosidade da tíbia (TTT), a qual consiste em realizar uma fratura completa ou incompleta na tuberosidade da tíbia deslocada (medial ou lateral) e reposicioná-la de modo a alinhar o mecanismo extensor do quadríceps,a fixação geralmente inclui fios de kirschner com ou sem banda de tensão (PIERMATTEI, FLO, DECAMP, 2006; TOBIAS e JOHNSTON, 2018). Em um estudo com 137 joelhos que foram submetidos as variações da técnica de TTT houve 43% de complicações globais, irritação e infecção do tecido mole, reluxações, migração e falha dos implantes (STANKE; STEPHENSO; HAYASHI, 2014).

Com o intuito de mitigar essas complicações foi proposta a técnica de Tibial TuberosityTransposition Tool (TTTT) (Figura 3), técnica que realiza a osteotomia incompleta da tuberosidade da tíbia e a desloca lentamente, com uso de aparelho específico e patenteado, para o seu local anatômico fazendo uso das propriedades elástica do osso. Quando alcançado o local predefinido com base nos cálculos proposto pela técnica, a tuberosidade da tíbia é mantida na posição pela inserção de um pino entre a tuberosidade tibial e o córtex tibial, o pino se comporta como um espaçador impedindo o retorno do fragmento ósseo. Vale ressaltar que a espessura do pino é a distância que a tuberosidade da tíbia precisa de deslocar para o alinhamento do mecanismo extensor do joelho (PETAZZONI, 2015).

Figura 3. Imagem ilustrando técnica de TTTT (Tibial TuberosityTransposition Tool) para tratamento de luxação de patela medial em cão. A: imagem transoperatória com o deslocamento lateral da tuberosidade de tíbia e fixação com pino na função de espaçador. B: Imagem radiografia do pós-operatório imediato demonstrando o realinhamento do mecanismo extensor do quadríceps. Fonte: João Augusto Leonel de Souza

Infelizmente muitos pacientes são encaminhados para o procedimento cirúrgico ou recebem o diagnóstico tardiamente, apresentando um grau de erosão articular e osteófitos trocleares avançados em decorrência de anos de movimentos anormais. Para esses casos a abordagem tradicional alinhando o mecanismo extensor do joelho não será suficiente devido a presença de artrose, principalmente troclear. Diante disso, foi proposto a utilização de próteses trocleares, que são implantes que substituem somente a tróclea femoral. São implantes mais simples, baratos e com menos complicações quando comparado à prótese total de joelho (DOKIC et al., 2015). A realização deste procedimento até então esbarrava nos custos dos implantes importados, contudo neste ano, uma empresa brasileira desenvolveu uma versão de tais próteses, barateando de sobremaneira a realização deste procedimento.

A luxação de patela é uma afecção muito comum na rotina veterinária e com diversas formas de abordar o problema, em decorrência da não compreensão total de sua etiologia. Deste modo, é fundamental que médico veterinário se mantenha atualizado para novas opções de tratamento, a fim de proporcionar a melhor recuperação aos nossos pacientes.

Referências

BOUND N.; ZAKAI D; BUTTERWORTH S. J.; PEAD M. The prevalenceofcaninepatellarluxation in three centres Clinicalfeaturesandradiographicevidenceoflimbdeviation. VetCompOrthopTraumatol; v22: p.32–37, 2009.

BROWER BE, KOWALESKI MP, PERUSKI AM, POZZI A, DYCE J, JOHNSON KA, BOUDRIEAU RJ. Distal femoral lateral closingwedgeosteotomy as a componentofcomprehensivetreatmentof medial patellarluxationand distal femoral varus in dogs. VetCompOrthopTraumatol. v 30 n.1 pp. 20-27. 2017.

DOKIC Z, LORINSON D, WEIGEL JP, VEZZONI A. Patellargroovereplacement in patellarluxationwithseverefemoro-patellarosteoarthritis. VetCompOrthopTraumatol.v. 28 n. 2 pp.124-30. 2015

EVANS, H. E.; DE LAHUNTA, A. MILLER’S ANATOMY ofthe DOG. 4th ed. Philadelphia: Elsevier Saunders Company, 2013a. p. 151-157.

FELDMANE L; THEYSE L. F. H. Proximodistalandcaudocranial position oftheinsertionofthepatellarligamentonthe tibial tuberosityandpatellarligamentlengthof normal stiflesandstifleswith grade IImedialpatellarluxation in small-breed dogs VeterinarySurgery. 50:1017–1022. 2021.

HALL, EL, BAINES, S, BILMONT, A, OXLEY, B. Accuracyofpatient-specificthree-dimensional-printedosteotomyandreductionguides for distal femoral osteotomy in dogs with medial patellaluxation. VeterinarySurgery.; v. 48 p. 584– 591, 2018.

HANS, E.C.; KERWIN, S.C.; ELLIOT, A.C.; BUTLER, R.; SAUNDERS, W.B.; HULSE, D.A. Outcomefollowingsurgicalcorrectionof grade 4 medialpatellarluxation in dogs: 47 stifles (2001- 2012). Journal of American Animal Hospital Association. v.52, n.3, p.162-9, 2016

PETAZZONI, M. Tibial TuberosityTranspositionTool TTTT® andTechniqueManual. 2015. 65p.Disponível em:http://itunes.apple.com/us/book/tibialtuberositytransposition/id970657931?ls=l&mt=ll.

PHETKAEW T;  KALPRAVIDH, M. PENCHOME, R. WANGDEE, C.; A Comparisonof Angular ValuesofthePelvicLimbwith Normal and Medial PatellarLuxationStifles in Chihuahua Dogs UsingRadiographyandComputedTomography. VetCompOrthopTraumatol v.31 p.114–123. 2018

PIERMATTEI DL, FLO GL, DECAMP CE (2016) Handbook ofSmall Animal OrthopedicsandFractureRepair. 5 Ed. Elsevier Health Sciences

RIBEIRO G. B, ASSIS NETO AC. Three-dimensional printingeducationalanatomical model ofthepatellarluxation in dogs. PLoSOne.v. 30;16(7), 2021.

ROSSANESE M, GERMAN AJ, COMERFORD E, PETTITT R, TOMLINSON A, DE VICENTE F. ComplicationsFollowingSurgicalCorrectionof Medial PatellarLuxation in Small-to-Medium-Size Dogs. VetCompOrthopTraumatol. v. 32 n.4, pp. 332-340, 2019.

ROUSH J. K., CANINE PATELLAR LUXATION. VeterinaryClinicsof North America: Small Animal Practicev. 23, n4, p.855-868, 1993.

SOUZA, M.M.D.; RAHAL, S.C.; OTONI, C.C.; MORTARI, A.C.; LORENA, S.E.R.S. Luxação de patela em cães: estudo retrospectivo. Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia. v.61, n.2, p.523-26, 2009.

STANKE, N. J.; STEPHENSON N.; HAYASHI K.Retrospectiveriskfactor assessment for complicationfollowing tibialtuberositytransposition in 137 caninestifleswith medial patellarluxation. CanVet J. v. 55 pp.349–356, 2014.

TOBIAS, K. M. & JOHNSTON, S. A. (2018). VeterinarySurgery: Small Animal: 2-Volume Set. 2nd edition St.Louis, USA: Elsevier Health Sciences

Prof. M.V. MSc. Esp. João Augusto Leonel de Souza

Responsável pelas disciplinas de Técnica Cirúrgica e Clínica Cirúrgica de Pequenos Animais no curso de Medicina Veterinária na Universidade de Araraquara – UNIARA.
Diplomado Especialista pelo CBCV (Colégio Brasileiro de Cirurgia Veterinária)
Proprietário da CENOV (Centro Especializado em Neurologia e Ortopedia Veterinária).
Mestre em Cirurgia Veterinária FCAV – Unesp Campus Jaboticabal.
Certificado AOVet Princípios, Avançado e Master.
Formação em Neurologia Veterinária – Instituto Bioethicus.
Residente em Cirurgia de Pequenos Animais FMVZ – Unesp Campus Botucatu.
Graduado em Medicina Veterinária FCAV – Unesp Campus Jaboticabal.

M.V. Natasha Pastore Franco

Graduada em Medicina Veterinária pela Uniara, Universidade de Araraquara compõe a equipe da CENOV

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