Importância do check-up cardiológico em cães

Por Luciana Duque

Introdução

A longevidade dos cães vem aumentando nos últimos anos devido aos avanços na medicina veterinária no que se diz respeito a diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças.

As cardiopatias em cães são muito frequentes. Dentre elas, destaca-se a doença mixomatosa da valva mitral (DMVM), também conhecida como degeneração mixomatosa ou endocardiose da valva mitral, como a cardiopatia de maior ocorrência, abrangendo em torno de 75% dos casos de doença cardíaca. Tem maior prevalência em cães de pequeno e médio porte, embora os de grande porte também possam ser acometidos. Existe predisposição racial em Shih Tzu, Poodle, Yorkshire, Spitz Alemão, Dachshund, mas também acomete os sem raça definida (SRD). Os machos são mais afetados do que as fêmeas e a prevalência é maior em cães acima de 8 anos de idade. Entretanto, a raça Cavalier King Charles Spaniel é predisposta à doença em fase juvenil.

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Fisopatologia

A doença consiste na degeneração progressiva dos componentes do aparato valvar, levando a não coaptação dos folhetos durante a sístole. A valva torna-se insuficiente pela consequente regurgitação de sangue, que culmina com a sobrecarga volumétrica nas câmaras cardíacas esquerdas. Mecanismos compensatórios são ativados e garantem a manutenção da função cardíaca, mantendo o paciente assintomático por um período longo na maioria das vezes.

Os principais mecanismos compensatórios são representados pelo aumento na atividade do sistema nervoso autônomo simpático através da liberação de catecolaminas, modificações dos barorreceptores aórticos e carotídeos em função das mudanças da pressão arterial, a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e pela hipertrofia cardíaca excêntrica decorrente da retenção de sódio e água e consequente aumento de volume sanguíneo. Com a progressão da doença esses mecanismos podem se tornar deletérios e o coração não conseguir mais realizar sua função adequadamente, ou seja, não ejetando todo o volume de sangue recebido culminando com redução do débito cardíaco. Tal condição denomina-se insuficiência cardíaca. Com a cronicidade da insuficiência cardíaca ocorre acúmulo de sangue no coração e posteriormente no leito venoso. Com o aumento da pressão venosa há aumento da pressão hidrostática capilar e consequente extravasamento de líquido para o espaço extravascular, levando ao edema pulmonar.

São descritos quatro estágios de acordo com evolução da DMVM:

-O estágio A, que engloba as raças de alto risco de desenvolvimento da DMVM, mas sem alteração estrutural identificável. As avaliações regulares devem fazer parte da rotina desses indivíduos.

-O estágio B, abrange os cães que apresentam alteração cardíaca estrutural. Podem apresentar ausculta de sopro, mas sem sinais clínicos. É subdividido em B1 e B2. O estágio B1 refere-se aos cães sem evidência de remodelamento cardíaco ecocardiográfico ou radiográfico, bem como os que tem aumento discreto e que ainda não tem indicação de início de terapia. É recomendado acompanhamento periódico no intuito de detectar evolução da doença. No

estágio B2 os cães, apesar de ainda assintomáticos, apresentam alteração valvar hemodinamicamente mais avançada com consequente remodelamento atrial e ventricular esquerdos que já atendem os critérios para início de terapia.

-O estágio C compreende os pacientes que apresentam alterações avançadas o suficiente para gerar sinais clínicos e que apresentam ou já apresentaram pelo menos um episódio de insuficiência cardíaca congestiva;

-O estágio D por definição inclui os que sofreram cronificação do estágio C e se tornaram refratários ao protocolo de tratamento. Necessitam de estratégias terapêuticas na tentativa de se obter qualidade de vida.

Manifestações clínicas

Os sinais clínicos são tardios e aparecem em fases avançadas da cardiopatia (geralmente a partir do estágio C). O sinal mais comum é a tosse, principalmente à noite. Tem relação com aumento acentuado do átrio esquerdo que, na espécie, leva à compressão do brônquio principal esquerdo. Em quadros de edema pulmonar podem apresentar taquipneia, dispneia e até ortopneia. Alguns também podem apresentar sinais de baixo débito cardíaco como cansaço fácil durante o exercício e síncopes.

Diagnóstico

A anamnese e exame físico criteriosos são fundamentais para direcionamento do paciente para complementação com os exames mais adequados. Na ausculta cardíaca pode-se detectar sopro sistólico em hemitórax esquerdo, em foco mitral, localizado no quinto espaço intercostal. Existe relação positiva entre gravidade da doença e o grau do sopro. Crepitações na ausculta pulmonar, principalmente em região peri-hilar podem ocorrer em quadros de edema cardiogênico.

O ecocardiograma transtorácico é o método de escolha capaz de detectar as lesões valvares, inclusive precocemente, além de ser fundamental para avaliar repercussão hemodinâmica e estadiamento da doença por quantificar o aumento de câmaras, função cardíaca e estimar as pressões de enchimento ventricular, trazendo também informações prognósticas e até mesmo detecção de comorbidades.

O eletrocardiograma é fundamental para diagnóstico de arritmias, avalição da variabilidade de frequência cardíaca, mas apresenta baixa sensibilidade para diagnóstico de DMVM. Em estágios iniciais são frequentes a arritmia sinusal e ritmo sinusal. Com a progressão a taquicardia sinusal e as arritmias supraventriculares podem ser observadas.

A radiografia torácica pode auxiliar na avaliação de tamanho e forma da silhueta cardíaca. Apesar da baixa sensibilidade, um VHS (vertebral heart score) maior que 10,5 é sugestivo de cardiomegalia. Em quadros congestivos pode-se obter o diagnóstico definitivo mediante a presença de opacificação pulmonar instersticial e alveolar. Em pacientes críticos a ultrassonografia torácica tem ganhado espaço por auxiliar na diferenciação de quadros de dispneia, minimizando os riscos em situações em que se torna inviável a realização de radiografia torácica. A presença de linhas B é compatível com a presença de líquido interstício-alveolar.

Conclusão

Apesar da DMVM ser considerada uma condição benigna para boa parte dos pacientes, alguns casos podem se tornar graves e até mesmo fatais. O diagnóstico precoce é fundamental para o estadiamento da cardiopatia e estabelecimento adequado de terapia quando necessária, garantindo longevidade e qualidade de vida aos pacientes.

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Crédito foto: Lipe Borges/ Divulgação CRV Image

Luciana Duque CRMV RJ 10066

Cardiologista veterinária do CRV Imagem, da equipe de Ecocardiografia. Possui título inédito da Sociedade Brasileira de Cardiologia Veterinária. Faz parte da primeira turma aprovada no Brasil de cardiologistas veterinários. Formada pela Universidade Federal Fluminense (2008). Possui curso de especialização em Cardiologia Veterinária pela ANCLIVEPA-SP, curso de ECG pelo Instituto Nacional de Cardiologia e ECG de pequenos animais pela Equalis. Além de curso de Ecocardiografia em cães e gatos pelo Instituto Bioethicus. É membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia Veterinária (SBCV).

Crédito foto: Lipe Borges/ Divulgação CRV Image

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