Cardiomiopatia hipertrófica em gatos

Por Karen Denise da Silva Macambira Barbosa

INTRODUÇÃO

As cardiomiopatias são comuns em gatos e constituem um grupo heterogêneo de doenças do miocárdio. A classificação adaptada da Sociedade Europeia de Cardiologia é baseada nas características fenotípicas, sendo divididas em: hipertrófica, restritiva, dilatada, não-classificada e arritmogênica de ventrículo direito.

De todas as cardiomiopatias, a hipertrófica (CMH) é a que mais acomete os felinos.
Estima-se que 15% dos gatos aparentemente saudáveis são afetados, e pode acometer até 29% dos gatos idosos, estando entre as dez causas mais comuns de morte. Portanto, o diagnóstico destas doenças é importante para classificação do fenótipo da cardiomiopatia, para o acompanhamento, uma vez que um fenótipo pode evoluir para outro devido à progressão da doença e comorbidades e, principalmente, para instituir o tratamento adequado.

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FISIOPATOGENIA

A CMH se caracteriza pela hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo. Como consequência há comprometimento do preenchimento diastólico e da circulação miocárdica. Isso resulta em dano contínuo aos cardiomiócitos e morte, resultando em substituição por tecido fibroso.

Com miocárdio fibroso e espesso há prejuízo na diástole e aumento da pressão diastólica. Como a válvula mitral está aberta neste momento do ciclo cardíaco, qualquer pressão presente no ventrículo esquerdo (VE) na diástole também está presente no átrio esquerdo (AE). Como resultado, um aumento na pressão diastólica do VE causa um aumento na pressão do AE, resultando em aumento desta câmara. Isso significa que em gatos com CMH que apresentam disfunção diastólica clinicamente significativa, o AE está aumentado.

Em geral, quanto maior for a pressão, maior será o aumento atrial esquerdo. Isso resulta em aumento da pressão venosa pulmonar e aumento da pressão capilar pulmonar, que causa edema pulmonar.

As veias que drenam a pleura que ficam na superfície dos pulmões (veias pleurais viscerais) drenam para as veias pulmonares, portanto, um aumento do AE e da pressão venosa pulmonar também pode causar efusão pleural em gatos. Isso é conhecido como insuficiência cardíaca esquerda.

O aumento moderado à grave do átrio esquerdo gerando estase sanguínea, associado à hipercoagulabilidade e lesão endotelial pode predispor os pacientes acometidos a apresentarem trombo intracardíaco, e tromboembolismo.

A hipertrofia dos músculos papilares e da região infundibular do ventrículo esquerdo provocam deslocamento cranial do folheto anterior mitral no momento da sístole, conhecido como SAM (abreviação em inglês de movimento sistólico anterior da mitral), acarretando em obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo esquerdo. Com a mitral aberta no momento da sístole, ocorre regurgitação para o átrio esquerdo, contribuindo ainda mais para o aumento do AE. Esta alteração pode ser evidenciada no exame físico por meio da ausculta de sopro em foco mitral e aórtico.

ETIOLOGIA

A causa principal nos humanos e em gatos das raças Maine Coon e Ragdoll é a mutação do gene que codifica uma proteína que contribui para a formação do sarcômero, fazendo com que este se contraia de maneira inadequada e tenha responsividade aumentada ao cálcio, ou seja, é hipercontrátil. A maioria dos casos é a mutação na proteína C ligante da miosina, tendo padrão autossômico dominante.

A doença quando de caráter genético, pode se desenvolver logo aos 6 meses de idade, embora seja mais aparente aos 2-3 anos.
A idade média de acometimento é 10 anos. Os machos são mais cometidos que as fêmeas.

Causas secundárias principais incluem hipertensão arterial sistêmica, hipertireoidismo, hipertrofia miocárdica transitória e linfoma miocárdico.   

ACHADOS CLÍNICOS

A doença pode ser subclínica na maioria dos pacientes, e quando apresentam alterações são relacionadas à quadros de ICC e/ou de tromboembolismo.

Os sinais clínicos em decorrência de todas estas alterações incluem taquipneia em repouso, dispneia devido à edema pulmonar e/ou efusão pleural. Em casos de tromboembolismo os sinais são agudos e incluem paresia/paralisia dos membros posteriores na maioria dos casos e sinais de acometimento circulatório: membros frios, coxins cianóticos, pulso femoral fraco ou ausente, dor e sensibilidade nos membros.

No exame físico podem ser evidenciadas alterações na ausculta cardíaca, como sopros, arritmias, ritmo de galope. Crepitações podem estar presentes na ausculta pulmonar em casos de edema pulmonar; ou os ruídos podem estar abafados em casos de efusão pleural.

Nem todo paciente felino com CMH apresentará sopro na ausculta cardíaca. Portanto, a avaliação cardiológica deve ser solicitada mesmo em indivíduos que não apresentem alterações na ausculta.

DIAGNÓSTICO

• ECODOPPLERCARDIOGRAMA

O ecodopplercardiograma representa o exame padrão ouro para diagnóstico das cardiomiopatias pois possibilita avaliação morfofuncional das estruturas cardíacas de forma não invasiva (figura 1).

Figura 1. A. Ecocardiograma no corte transverso do ventrículo esquerdo (VE) evidenciando hipertrofia concêntrica em um paciente felino. Abaixo, em B, a peça anatômica também em uma imagem transversal, evidenciando hipertrofia concêntrica de VE e fibrose (pontos esbranquiçados). Fonte: Dr. Alexandre Bendas

O fenótipo hipertrófico é caracterizado por aumento da espessura, difusa ou regional, das paredes do ventrículo esquerdo na ausência de estenose aórtica ou hipertensão arterial sistêmica grave o suficiente para causar esta alteração. Medidas de parede iguais ou maiores a 6 mm é considerado aumentado.

Os músculos papilares também podem apresentar-se hipertrofiados.  A hipertrofia na via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) e o aumento da tensão nas cordas tendíneas favorecem o deslocamento da válvula mitral durante a sístole, provocando obstrução da VSVE e refluxo mitral secundário. Esta alteração é denominada movimento sistólico anterior da válvula mitral.

A avaliação do tamanho e função do átrio esquerdo são fundamentais. Átrio esquerdo aumentado (com relação átrio esquerdo/ aorta maior que 1,8) predispõe o paciente a desenvolver quadro de insuficiência cardíaca congestiva (ICC), além de ser favorável à estase sanguínea (que pode ser visualizado no exame como um contraste espontâneo, que se denomina sinal de smoking) e formação de trombos principalmente na região auricular esquerda.

A disfunção diastólica é comumente encontrada e na avaliação com doppler pulsado é possível visualizar medidas de velocidade da onda E reduzidas, evidenciando padrão de relação E/A invertida, além de outras alterações encontradas.

• RADIOGRAFIA TORÁCICA

A radiografia torácica é insensível para a identificação de alterações cardíacas leves ou moderadas associadas à cardiomiopatia, devendo sempre ser solicitada em conjunto com ecodopplercardiograma. Porém é um exame extremamente útil para identificação de ICC, devendo ser realizado em pacientes estáveis clinicamente.

Pode ser evidenciado presença de aumento biatrial, conhecido como “Valentine Shape”. Em pacientes com edema pulmonar é observado padrão intersticial e/ou alveolar com distribuição difusa, em comparação com a espécie canina que apresenta acometimento pulmonar tipicamente dorsocaudal. A congestão venosa pulmonar também está presente em pacientes com edema.

• ELETROCARDIOGRAMA

A sensibilidade de um ECG de 6 derivações para detectar hipertrofia do VE ou alargamento do AE é baixa. No entanto, uma variedade de arritmias pode ocorrer em gatos com cardiomiopatia, e o ECG é útil na detecção destas alterações. O bloqueio fascicular anterior esquerdo pode estar presente em 30% dos animais acometidos, embora seja uma alteração também encontrada em alguns indivíduos sadios. Podem ser encontradas arritmias supraventriculares (complexos atriais prematuros, taquicardia atrial e fibrilação atrial), bloqueio atrioventricular e arritmias ventriculares (complexos ventriculares prematuros e taquicardia ventricular).

• BIOMARCADORES

Os dois mais comumente utilizados são o NT-proBNP e a Troponina I.

O NT-proBNP possui boa precisão diagnóstica para diferenciação de pacientes dispneicos por causas cardíacas e não cardíacas, sendo útil em situações em que o ecodopplercardiograma não está disponível. Porém, um resultado negativo não exclui doença cardíaca, uma vez que o teste tem resultados melhores em pacientes com doença cardíaca moderada a grave.

A troponina I é útil como fator prognóstico, uma vez que concentrações aumentadas estão relacionadas com maior risco de morte. Doenças sistêmicas também podem provocar aumentos na troponina I, como doença renal, hipertireoidismo, anemia e hipertensão arterial sistêmica, e os resultados devem ser interpretados com cautela.

TRATAMENTO

Para se determinar o protocolo terapêutico, descrever o impacto clínico e o prognóstico é necessário estadiar o paciente, segundo recomendações do American College of Veterinary Internal Medicine (ACVIM).

O estágio A inclui gatos predispostos à cardiomiopatia, mas sem evidência de doença miocárdica. O estágio B descreve gatos com cardiomiopatia, mas sem sinais clínicos. O estágio B é ainda dividido em estágio B1: gatos com baixo risco de insuficiência cardíaca congestiva iminente ou tromboembolismo arterial (TEA), com átrio esquerdo normal ou discretamente aumentado; e estágio B2: gatos com maior risco de ICC ou ATE iminente, com aumento de átrio esquerdo moderado a grave. O tamanho atrial é um importante marcador prognóstico e pode ser usado como meio de subdividir gatos com cardiomiopatia subclínica. Quanto mais grave o aumento do átrio esquerdo, maior o risco de ICC e TEA. Gatos que desenvolveram sinais de ICC ou TEA são classificados como estágio C, mesmo que os sinais clínicos resolvam com o tratamento. Gatos com sinais de ICC refratária ao tratamento são classificados como estágio D (figura 2).

Figura 2. Esquema ilustrativo do estadiamento das cardiomiopatias em gatos segundo American College of Veterinary Internal Medicine (ACVIM).

Pacientes no estágio A não há indicação de tratamento. Para o estágio B1 o tratamento é extremamente controverso, e a recomendação é acompanhamento anualmente. Para pacientes com obstrução grave da via de saída do ventrículo esquerdo pode ser utilizado.

Pacientes em estágio B2 apresentam maior risco para apresentar ICC e TEA. A monoterapia com clopidogrel ou em associação com rivaroxabana é recomendada em pacientes com aumento moderado a grave de átrio esquerdo, com fração de encurtamento atrial reduzida e baixa velocidade em fluxo auricular, alterações que podem ser observadas no ecodopplercardiograma. O atenolol pode ser utilizado em casos de obstrução grave da via de saída do ventrículo esquerdo e na presença de arritmias, principalmente ventriculares. O uso dos inibidores da enzima conversora de angiotensina é controverso.

Para pacientes em estágio C (sintomáticos) agudo, o tratamento hospitalar é recomendado. Gatos com efusão pleural devem ser submetidos à toracocentese após sedação e oxigenioterapia. Os pacientes com edema pulmonar devem receber furosemida intravenosa, além de sedação e oxigenioterapia. Em casos de baixo débito cardíaco (hipotensão, hipotermia, bradicardia), os inotrópicos positivos devem ser considerados. E pacientes com tromboembolismo devem receber terapia aguda com clopidogrel, heparina e analgesia com metadona e dipirona. O tratamento crônico envolve atenolol, furosemida, pimobendan, clopidogrel associado ou não à rivaroxabana, ou outras medicações, conforme necessidade e indicação em cada caso.

Uma vez estabilizados, recomenda-se que os gatos sejam liberados aos cuidados de seus donos o mais rápido possível. A reavaliação é recomendada 3-7 dias após a alta para avaliar a resolução da ICC e avaliar a função renal e as concentrações séricas de eletrólitos. Recomenda-se que os donos monitorem a frequência respiratória de repouso com o objetivo de manter a frequência respiratória <30 respirações/min.

Pacientes em estágio D (refratários) necessitam de doses maiores das medicações já utilizadas, em especial os diuréticos. Pode ser realizada a troca da furosemida pela torasemida em casos de ICC recorrente mesmo em doses altas de furosemida (> 6mg/kg/dia).

PROGNÓSTICO

O prognóstico depende do estágio da doença. Muitos gatos com CMH leve a moderada nunca progridem para CMH grave e, portanto, têm um prognóstico excelente. Gatos que apresentam risco aumentado de desenvolver insuficiência cardíaca e tromboembolismo apresentam som de galope ou arritmia no exame físico, aumento moderado a grave do AE, diminuição da fração de encurtamento do átrio esquerdo, hipertrofia extrema do VE, diminuição da função sistólica do VE e padrão de enchimento do VE diastólico restritivo.

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Karen Denise da Silva Macambira Barbosa

Graduação pela Universidade Estadual do Ceará, Residência em Cardiologia e Doenças Respiratórias de animais de companhia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Mestrado em Patologia e Ciências Clínicas pela UFRRJ com ênfase em Dirofilariose. Professora de pós-graduação em cursos de especialização.

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