Analgesia no trauma por objeto perfuro cortante em felino. Relato de caso.

Por: Caroline Martines Agnello1 e Renata Ramos Rodrigues2

1Pós-Graduanda, Faculdade Anclivepa-SP, Especialização Latu-Senso em Anestesiologia, São Paulo, SP, Brasil. 2Médica veterinária autônoma, mestre em Ciências pelo Programa de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, com atuação em anestesiologia.

Analgesia in trauma by a sharp object in a feline. Case Report.

Resumo

A dor foi recentemente considerada o quinto sinal vital, junto com outros parâmetros cruciais. Eventos complexos compõem sua fisiopatologia, e por isso sua abordagem deve ser multimodal e preventiva. A dor aguda no atendimento emergencial muitas vezes esta disfarçada, principalmente pelo paciente felino, e pode gerar piora do seu quadro clínico, devendo por isso ser prontamente desvendada e tratada. O trabalho a seguir relata o atendimento emergencial e a anestesia de uma gata fêmea trazida ao serviço do Hospital Público da Anclivepa pelos bombeiros, após sofrer uma lesão perfuro-cortante em região inguinal esquerda.

Palavras-chave: Analgesia, trauma, objeto perfuro cortante, felino.

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Abstract

Pain has been recently considered as fifth vital sign, together with others crucial parameters. Complex events make up its pathophysiology, therefore it´s approach must be multimodal and preventive. Acute pain on emergency care often disguised, especially by the feline pacient, and can lead to worsening of it´s clinical condition, and thats why must be promptly discovered and well treated. The fallowing case reports emergency care and anesthesia of a female cat that was brought to the service of Anclivepa´s public hospital by the firemen, after sustaining a stinging injury in the left inguinal region.

Keywords: Analgesia, trauma, sharp puncture object, feline.

Introdução e Objetivo

A dor é considerada um sinal vital e deve ser avaliada e tratada em qualquer atendimento clínico ou emergencial1. Um tratamento efetivo da dor aguda deve ser parte integral do pronto-atendimento veterinário. Graças aos estudos constantes sobre o comportamento felino, hoje podemos nos guiar por escalas de dor e prover analgesia adequada ao paciente2 facilitando assim o atendimento e diagnóstico para estabelecer a melhor conduta, incluindo em casos de emergência.

No atendimento emergencial deve-se considerar que o organismo instintivamente tenta esconder e compensar as principais alterações em um primeiro momento. Assim é de suma importância realizar uma rápida triagem para avaliar o risco de morte e a sequência de ações no pronto-atendimento, visando estabilizar o animal para depois definir uma conduta mais precisa, que permitirá um diagnóstico e definição do melhor tratamento3. Nessas situações a dor pode vir mascarada e deve ser tratada por princípio de semelhança, levando em consideração a característica da injúria sofrida pelo paciente.

O objetivo deste trabalho foi estudar a analgesia para dor aguda em felinos a partir do relato de caso de uma gata trazida para atendimento emergencial no Hospital Público da Anclivepa, unidade da Zona Leste.

Relato de Caso

No dia 14 de julho de 2022 foi atendida uma gata SRD, jovem, no Hospital público da Anclivepa unidade da Zona Leste. A paciente foi trazida pelos bombeiros, após cair e ficar presa na lança de ferro de um portão.

No pronto-atendimento foi observado um ferimento de cerca de 5 cm em região inguinal esquerda e um segmento da grade do portão ainda estava preso ao corpo para não remover a lança (figura 1). O animal apresentava-se alerta e agressivo, com mucosas róseas, normotérmica, dispneica, taquicardica e pressão arterial sistólica (PAS) de 110 mmHg.  Foi incialmente medicada com morfina 0,2 mg/kg, dipirona 25 mg/kg e ondansetrona 0,5 mg/kg para permitir uma melhor abordagem.

Figura 1 – Animal no pronto atendimento com um seguimento da grade do portão presa ao corpo.

Após avaliação, foi realizado radiografia e ultrassonografia abdominal com o animal já anestesiado. O protocolo anestésico constituiu-se de dexmedetomidina 1,5 mcg/kg IM
como pré-anestésica, indução com propofol 5 mg/kg IV, intubação com sonda endotraqueal número 03, manutenção anestésica com isoflurano e estabelecida fluidoterapia com ringer lactato na taxa de 3 mL/kg/hora. Para monitoração foi utilizado oximetria de pulso, eletrocardiograma, pressão arterial média invasiva com cateter 24 G no membro pélvico direito, capnografia e temperatura retal.

Pela imagem radiográfica, suspeitou-se de perfuração abdominal e possível lesão renal (figura 2), mas isso foi descartado pelo ultrassom, bem como a presença de líquido livre. Após os exames a paciente foi encaminhada ao centro cirúrgico. Foi iniciada infusão contínua de fentanil 0,1 mcg/kg/min; a grade foi cerrada da lança e iniciou-se o procedimento cirúrgico para retirada da mesma (figura 3).

Figura 2 – Raio-x abdominal, posição latero-lateral. Fonte: Serviço de Radiologia Anclivepa – Zona Leste (2022).
Figura 3 – Lança do portão após ser retirada do animal.

Constatou-se que a lança ficou alojada entre o subcutâneo e o membro pélvico esquerdo, na região inguinal, passando muito próximo a artéria femoral que permaneceu intacta. A musculatura do abdômen foi lesionada, então realizou-se laparotomia exploratória para assegurar a integridade dos órgãos por inspeção e da parede abdominal, e depois sutura da musculatura e pele da região inguinal.

Durante o procedimento anestésico, a paciente apresentou como intercorrências somente um episódio de hipotensão, reduzindo a pressão arterial média (PAM) inicial de 80 mmHg para 60 mmHg após 20 minutos de cirurgia. Com ajuste do isoflurano e taxa de fluidoterapia recalculada para 5mL/kg/hora, obteve-se melhora da PAM mantendo-se estável até o final do procedimento cirúrgico. A frequência cardíaca variou de 111 a 152 batimentos por minuto (bpm), a frequência respiratória entre 13 a 21 movimentos por minuto (mpm), a ETCO2 (mensuração do gás carbônico exalado aferido pelo capnógrafo) de 43 a 45 mmHg. O animal permaneceu em respiração espontânea com saturação de 100%.

A medicação pós-anestésica foi dexametasona 0,2 mg/kg/IV, tramal 2 mg/kg/IM
e metadona 0,15 mg/kg/IM. Durante a recuperação anestésica, a paciente foi reavaliada, apresentando-se inquieta e vocalizando, olhava constantemente para a região inguinal tentando levantar, indicando dor. Como resgate analgésico foi utilizado metadona 0,1 mg/kg e gabapentina 50 mg oral. Após 20 minutos o animal já se apresentava tranquilo, sem vocalizar, e só apresentava desconforto se fosse tocada no local da incisão cirúrgica.

Discussão

No presente relato, a equipe do primeiro atendimento optou por já iniciar terapia para analgesia, pois o animal estava visivelmente desconfortável e com dor, apresentando também alterações fisiológicas condizentes como taquicardia, dispnéia e agressividade.

Para manejar e tratar a dor aguda, dois princípios são ainda preconizados: analgesia multimodal e analgesia preventiva. A última se refere às medicações aplicadas durante o período transoperatório para aliviar a dor no pós-operatório2 e a analgesia multimodal significa combinar fármacos com diferentes mecanismos de ação, evitando efeitos colaterais por utilizar doses menores e potencializando seus efeitos analgésicos, incluindo até mesmo técnicas não-farmacológicas2,4,5.

No atendimento em questão, de caráter emergencial e cirúrgico, várias classes de fármacos e analgésicos foram utilizadas: opióides, alfa-2 agonistas, anti-inflamatórios esteroidais (AIE) e gabapentinódes. 

O atendimento inicial contou com a administração de morfina, ondansetrona e dipirona, garantindo de maneira eficaz controle analgésico e facilitando o manejo do animal. A ondansetrona foi associada ao protocolo para evitar êmese decorrente da aplicação de morfina, seu consequente risco de broncoaspiração e minimizar possíveis lesões intra-abdominais pela lança durante a mímica de vômito.

Além disso, optou-se por já anestesiar o animal antes de levá-lo aos exames com a intenção de diminuir a sensibilidade dolorosa, facilitar o manejo, preservar vias aéreas superiores e possuir acesso venoso viável, em caso de intervenção emergencial.

Como medicação pré-anestésica, utilizou-se a dexmedetomidina, alfa-2 agonista com excelente efeito tranquilizante e sedativo em felinos, além de potencializar o efeito da morfina. Seus receptores de ação estão localizados por todo sistema nervoso central e são próximos aos receptores opióides. Assim, seu uso em conjunto é sinérgico melhorando o efeito analgésico e sedativo6,7.

A morfina é um opióide utilizado em felinos com eficiência e sem causar excitação nas doses de 0,1 a 0,2 mg/kg8. Seu uso foi instituído no atendimento emergencial com sucesso, ainda mais associada a dipirona, pelo caráter extenso e intensidade dolorosa da lesão sofrida. Após todo o trauma, a paciente chegou ao hospital com dor intensa, agitada, dispneica e taquicardica, sinais de dor e estresse agudo. Após a aplicação da morfina e dipirona, foi reavaliada e estava mais calma, a respiração normalizou.

O fentanil é outro opióide, porém, possui período de latência e efeitos curtos, sendo uma ótima opção de analgesia no transoperatório em infusão contínua, chegando a ser 150 vezes mais potente que a morfina9,10. Quando utilizado em doses baixas em infusão contínua apresenta pouca alteração cardiorrespiratória. Evidenciou-se que o fentanil trouxe analgesia suficiente durante o procedimento pela observação da manutenção dos parâmetros hemodinâmicos e respiratórios que se alterariam caso houvesse percepção de estímulo doloroso.

A metadona foi administrada no pós-operatório por ser potente agonista de receptores mi além de possuir ação como antagonista de receptores N-metil-D-aspartato (NMDA). Estes são ativados mais tardiamente e tem relação com o processo de dor crônica11,12. Porém, a metadona possui um período de eficácia analgésica menor do que o tramadol em felinos. Foi dada preferência a esse fármaco ao invés da morfina por ela ter menor tendência a causar vômitos13.

O tramadol é um opióide atípico, sendo um análogo sintético da codeína com baixa afinidade por receptores mi. Ele inibe a recaptação de norepinefrina e serotonina, facilitando ainda a liberação desta. É indicado para o tratamento de dores aguda, como no caso descrito, e crônica de intensidade moderada13.

A dipirona é um fármaco cujo mecanismo de ação ainda não foi completamente elucidado, embora seja amplamente utilizado por veterinários no Brasil e América do Sul, por ser sabidamente efetiva no tratamento da dor aguda em pequenos animais9,14. Estudos recentes demonstram sua segurança em felinos e com efetiva ação analgésica em gatos nas doses de 12,5 mg/kg, duas vezes ao dia, e 25 mg/kg, uma vez ao dia, em cirurgias com classificação de dor leve a moderada (como OSH eletiva)15.

A dexametasona se mostra muito eficiente em controlar a inflamação tecidual após injúria16. Seu mecanismo consiste na inibição da fosfolipase A2, precursora do ácido araquidônico. Dessa maneira, evita a produção de prostaglandinas e leucotrienos, reduzindo a sensibilidade a histamina e bradicinina, substâncias cuja produção levam a dor9.

Mesmo com toda a medicação analgésica, o comportamento da paciente no pós-operatório indicou a necessidade de resgate com mais uma dose de metadona de 0,15 mg/kg. Também foi fornecida uma dose de gabapentina de 50 mg oral, visando apenas tranquilização. Como demonstrado anteriormente em estudos, a gabapentina na dose de 50 mg/gato é segura, não alterando parâmetros fisiológico como frequências cardíaca e respiratória e não produz sedação exacerbada nem efeitos colaterais17,18.

Vale ressaltar que a dor aguda deve ser prontamente tratada e prevenida, para que não se torne patológica, fazendo com que uma sensibilização periférica (lesão tissular) se transforme em central, caracterizando quadros de dor crônica e suas consequências. 

Considerações finais

A partir do caso acompanhado foi possível observar uma abordagem multimodal da dor, através da associação de diferentes técnicas e medicamentos com variados mecanismos de ação. Todo o protocolo e tratamento foi eficaz em controlar a dor e gerar bem estar ao animal em um momento que o mesmo estava em sofrimento e stress agudo.

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Caroline Martines Agnello

Graduação pela-FMVA Faculdade de Medicina Veterinária - Campus de Araçatuba - UNESP. Pós-graduação em Anestesiologia Veterinária pela Anclivepa-SP. Atua como autônoma na clínica médica de Pequenos animais em SP.

Renata Ramos Rodrigues

Graduação pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP). Aprimoramento em anestesiologia veterinária pela Fmvz-USP. Especialização em anestesiologia pela Fmvz-USP. Mestre em Ciências pelo programa de Clínica Cirúrgica com ênfase em Anestesiologia pela Fmvz-USP.

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