Abordagem diagnóstica e padrões lesionais dermatológicos no paciente felino

Por Sarah Paschoal Scarelli

Introdução

Problemas de pele são comuns em gatos e denotam um grande desafio diagnóstico, uma vez que esses pacientes apresentam padrões de lesões de resposta cutânea limitado e muitas vezes, similares, frente a etiologias extremamente distintas1,2. Os gatos apresentam quatro padrões lesionais, sendo eles a alopecia auto induzida, dermatite miliar, prurido cervicofacial e as enfermidades eosinofílicas3,4.

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O prurido é um sinal comumente presente e bem importante, podendo estar localizado ou disseminado e associado ou não às lesões cutâneas5,6. Quando se trata de gatos, deve-se considerar que estes não são bons “coçadores” e acabam lambendo, esfregando e mordendo a área, dificultando a avaliação dos tutores quanto ao real nível de prurido. Além disso, tendem a fazer esse comportamento quando não estão sendo observados pelos donos e em ambientes silenciosos, gerando dúvida se o animal está realmente se lambendo ou não4,7. Outra consequência desse hábito comportamental é que o gato retira qualquer ectoparasita que possa estar presente na pele, dificultando a identificação visual destes na avaliação física do paciente. Dessa forma, nos casos em que há alopecia, é importante realizar o tricograma para diferenciar se a perda de pelo é espontânea ou autoinduzida2,8.

As dermatopatologias que acometem os felinos são as dermatites parasitárias, dermatites alérgicas (causadas por ectoparasitas, hipersensibilidade alimentar e as atopias), dermatofitose, dermatite bacteriana, dermatite psicogênica (podendo ser causada por dor, hipertireoidismo) e a alopecia paraneoplasica4,6.

Informações sobre o estilo de vida, idade, gênero, raça, histórico completo do paciente sobre as alterações apresentadas e a realização de um exame físico detalhado são de supra-importância no caminhar diagnóstico na dermatologia felina. Importante também considerar se o prurido é sazonal ou não3,9. Deve-se relacionar os exames complementares, específicos da pele ou para avaliação do estado geral do paciente, porém não há exames diagnósticos definitivos para algumas doenças de pele, sendo necessário a correlação entre o histórico, os dados do paciente, o exame físico, determinação de padrão lesional e os resultados obtidos nos exames complementares10.

Avaliação a partir do prurido no paciente felino

As apresentações clínicas dermatológicas dos felinos apresentando coceira consistem em 4 padrões de lesão3.

A alopecia, normalmente autoinduzida ou alopecia simétrica bilateral (fotos 1 e 2) é uma apresentação comum no gato e acomete mais comumente abdômen ventral, membros e flanco11. Ela acontece quando os pacientes apresentam prurido e arrancam o próprio pelame sem danificar a pele2. É importante identificar se a alopecia está sendo induzida ou se o pelame está caindo através do tricograma8. Em pacientes que estão se lambendo, a haste do pelo se apresenta quebrada na avaliação microscópica. Nessas situações, a alopecia pode estar associada a causas alérgicas, psicogênica, dor ou por endocrinopatia, como o hipertireoidismo, por gerar termogênese, ocasionando um desconforto na pele e o paciente apresenta lambedura excessiva11. No caso de o pelame estar íntegro na avaliação, as suspeitas podem incluir alopecia paraneoplásica, hormonal (hiperadrenocorticismo, hipertireoidismo), dermatofitose e neoplasias5.

Já no prurido cervico facial (fotos 3 e 4), os pacientes apresentam coceira em cabeça e pescoço, que geram a formação de crostas, erosões e úlceras, e essa característica pode estar associada a dermatopatologias alérgicas, de causa alimentar ou atopia12,13. Dermatite parasitárias, como a sarna notoédrica, a otodécica e demodécica também podem justificar esse sintoma.

O complexo granuloma eosinofílico (fotos 5, 6 e 7) constitui um padrão de lesão e não uma doença, sendo denominada atualmente como enfermidade eosinofílica tegumentar felina (EETF) e está diretamente relacionada a fatores alérgicos (de causas parasitárias). Dentre essas alterações, o gato pode manifestar 3 padrões diferentes, a placa eosinofílica, o granuloma eosinofílico e a úlcera eosinofílica4,9.

O padrão denominado dermatite miliar (fotos 8 e 9) está geralmente associado a fatores alérgicos, como a dermatite alérgica a picada de pulgas (DAPP), dermatite alimentar e demais doenças parasitárias12,14. Consiste em lesões papulares, esbranquiçadas ou eritematosas, que podem surgir na região de cabeça, pescoço e abdômen3.

Fotos 1 e 2 – Alopecia autoinduzida bilateral em paciente diagnosticado com sarna demodécica Foto: Arquivo pessoal.
Fotos 3 e 4 – Prurido cervicofacial causando áreas de alopecia e crostas em paciente com diagnóstico de sarna otodécica Foto: Arquivo pessoal.
Fotos 5, 6 e 7 – Enfermidades eosinofílicas tegumentares felina (A – Úlcera; B – Granuloma; C – Placa) Foto: Da internet
Fotos 8 e 9 – Dermatite miliar em região abdominal e membros posteriores de paciente com diagnóstico de DAPP Foto: Arquivo pessoal.

Exames dermatológicos

Em muitos casos, os exames complementares disponíveis na dermatologia não fornecerão um diagnóstico, mas se fazem importantes para descartar hipóteses, porém um raspado de pele negativo não descarta a possibilidade diagnóstica de sarna. Havendo a suspeita clínica de sarna, pode-se realizar o tratamento e assim, realizar um diagnóstico terapêutico, com recomendação em literatura para tal13. Uma situação em que não há um exame direto para diagnóstico são as alergias alimentares, em que deve ser avaliada a resposta à dieta de eliminação para determinar a possibilidade do quadro2. Os testes sorológicos também devem ser bem avaliados e ponderados já que um paciente normal pode apresentar resultados considerados positivos no teste de alergia2,9.

A citologia direta e o raspado de pele superficial e profundo são os exames mais comumente realizados nos pacientes com alterações de pele, sendo o raspado de pele o exame que deve ser primeiramente realizado nos pacientes2,9. É possível diagnosticar as sarnas, visualizar as células presentes nas lesões, pesquisar a presença ou ausência de bactérias e demais microrganismos, além da avaliação direta da qualidade do pelame e de sua haste (foto 11). Deve ser realizado um raspado superficial e profundo, com a utilização de lâmina de bisturi e raspar a pele de forma firme e perpendicular a pele até que ocorra sangramento capilar e raspar uma área ampla para aumentar a chance de diagnóstico. Também pode ser realizada a coleta fazendo uma pressão suave na pele e depois aplicar uma fita adesiva sobre ela, além da realização de imprints com a própria lâmina de microscopia. A avaliação direta é realizada após a coleta e depois essas lâminas devem ser coradas com panóptico rápido para avaliação citológica9.

Foto 10 – Mesmo paciente das fotos 1 e 2 realizando arrancamento dos pelos através da lambedura. Foto: Arquivo pessoal.
Foto 11 – Haste do pelo desse mesmo paciente com as hastes quebradas Foto: Arquivo pessoal.

O uso da lâmpada de Wood também pode auxiliar na pesquisa de Microsporum canis, sendo que aproximadamente 50% dos casos apresentam fluorescência positiva13,15.

A depender da apresentação e suspeita clínica, se faz necessária a realização de culturas, bacterianas ou fúngicas, podendo ser enviado para análise, pêlos avulsionados das extremidades das lesões em casos de suspeita de dermatofitose ou swabs de pele ou de conteúdo pustular para pesquisa de crescimento bacteriano. Em casos de dermatites nodulares, é necessário enviar uma amostra do tecido total, sendo encaminhado para a cultura com pesquisa de microrganismos aeróbios, anaeróbios e micobactérias2,9.

A realização de biopsias cutâneas é recomendada para descartar os diagnósticos diferenciais, e muitas vezes, utilizados em casos crônicos e em que não foi possível a identificação da causa com o histórico, e exame físico e análise citológica da lesão, sendo recomendado coletar várias amostras do mesmo paciente para aumentar a possibilidade de diagnostico16. A região ideal a ser coletada é aquela com lesões primárias e onde a epiderme ainda está presente, sendo que regiões ulceradas normalmente não trazem informações relevantes.  Deve-se considerar que a região a ser coletada não deve ser preparada, sendo essencial a presença de crostas e epiderme intacta6. Os pacientes devem ter qualquer tratamento com corticosteroides descontinuados antes da coleta e as infecções bacterianas devem ser tratadas anteriormente, para não mascarar uma doença subjacente. Já a coleta de tecido por biopsia para cultura deve, sim, ser preparada normalmente, eliminando os contaminantes da superfície para haver um diagnóstico do agente primário6,9.

A realização de testes intradérmicos é feita a partir da aplicação de pequenas quantidades de alérgenos na região intradérmica e a verificação se haverá reação no local, que acontece caso haja IgE específica do alérgeno na pele9,12,13. Devido a pele do gato ser muito fina, ser um paciente mais sensível ao estresse no momento da avaliação e que, muitas vezes, as reações não são muito óbvias, a realização do teste cutâneo é um desafio na medicina felina, além de não apresentarem uma capacidade ótima de diagnóstico de alergia15.

Principais afecções dermatológicas que acometem os felinos

Entre as causas parasitárias podemos citar a Demodicidose, causada pelo D. cati, D. gattoi e D. felis, ainda sob investigação genômina9. A manifestação clínica pela D. cati está sempre ligada a imunossupressão, sendo necessário a investigação geral do paciente6. A sarna otodécica é causada pelo Otodectes cynotis e é a principal causa de otites em gatos, apresenta transmissão direta entre eles e causa bastante prurido local e cerúmen enegrecido6. A escabiose felina trata-se de uma zoonose, causada pelo ácaro Notoedris cati e causa prurido, além da formação de crostas, acometendo regiões de pavilhões auriculares, cervical, extremidades distais dos membros e região perianal5. Também é possível que os gatos sejam infestados com ácaros de superfície (Queiletielose e Lynxacarus) e piolhos, como o Fenicola subrustratus. De forma geral, todos esses parasitas podem ser identificados através da visualização microscópica a partir da coleta de material superficial e profundo da pele e o tratamento ocorre por meio do uso de produtos de ampla ação, como a selamectina ou fluralaner2,7.

Importante salientar que a não visualização do ácaro na lâmina pode acontecer em cerca de 20% de pacientes positivos para a doença, devendo ser realizado diagnóstico terapêutico6. A realização do raspado de pele e o tratamento empírico para ácaros é uma etapa extremamente necessária no processo de exclusão de diagnóstico das dermatopatologias pruriginosas9.

Dentre os processos alérgicos que acometem os gatos, a alergia a picada de pulgas (DAPP) é a mais comum, seguida da dermatite trofoalérgica e por último, hipersensibilidade não relacionada ao alimento e à pulga, e todas as alergias quase sempre estão associadas a algum grau de prurido5,9.

Ao avaliar um paciente felino com prurido, o passo a passo é um diagnóstico de exclusão, descartando as infecções e parasitas antes de partir para as possibilidades alérgicas9. Eles podem apresentar todos os padrões de lesão, como a dermatite miliar, alopecia autoinduzida, prurido cervico fácil e a dermatite eosinofílica3.

O diagnóstico para as dermatopatologias alérgicas é clínico, através do diagnóstico terapêutico15. Quando o paciente felino apresenta prurido, deve ser realizado o raspado de pele e tratamento com acaricidas e a utilização de corticoteróides, associado ao antipulgas9,13,15. Ao efetuar o desmame do corticoide, manter o antipulgas, reavaliar o paciente em torno de 40 dias, se paciente apresenta melhora clínica dos sintomas, o diagnóstico provável é DAPP. Se, ao retirar o tratamento com corticoide, mantendo o controle de pulgas e o paciente voltar a se coçar, esse animal pode ter alergia alimentar ou “síndrome atópica”. A forma mais aceita de diagnóstico para a dermatite trofoalérgica é a partir da dieta de eliminação, seguida de dieta provocativa9. Nesse caso, deve ser instituído uma dieta de eliminação por no mínimo 8 semanas e, muitas vezes, realizar mais do que uma tentativa de dieta nesse processo2,9,14. Se com esse manejo, o paciente para com o prurido, o diagnóstico concluído é da sensibilidade alimentar, se não há controle, ele pode ser considerado um paciente “atópico”, sendo, o diagnóstico da atopia felina um diagnóstico de exclusão de outras dermatopatias alérgicas2,9.

Considerações finais

A avaliação dermatológica do paciente felino é muitas vezes desafiadora, por ser um paciente que faz padrões lesionais parecidos por etiologias diferentes. O prurido costuma ser o principal sintoma e é manifestado na espécie através do ato de se lamber e, muitas vezes, pode passar despercebido pelo proprietário, sendo notado apenas na presença de alopecias maiores ou outras lesões. Os padrões de lesão que os gatos manifestam frente ao prurido são alopecia bilateral autoinduzida, dermatite miliar, prurido de cabeça e pescoço e o granuloma eosinofílico. Um paciente acometido por Demodicidose, por exemplo, pode apresentar qualquer um desses padrões. Ao avaliarmos esses pacientes, se faz necessário o levantamento completo da resenha, anamnese, avaliação de sazonalidade dos sintomas e a determinação desses padrões e região acometida do corpo. Com essas informações, passa-se à realização do raspado de pele superficial e profundo e da citologia, sendo de extrema importância para pesquisar ácaros e avaliar o tipo celular presente. A partir disso, inicia-se o delineamento diagnóstico, a partir da instituição de terapia adequada e acompanhamento do quadro, por muitas vezes, de forma crônica, podendo ser necessários, ao longo do caminho, a realização de mais exames complementares, como a cultura fúngica e a biopsia. Como não há uma associação direta entre as lesões e uma causa específica, o caminho é, muitas vezes, realizar o diagnóstico terapêutico e acompanhar os casos para os diagnósticos diferenciais de acordo com a progressão da doença e da resposta às terapias instituídas.

Referências

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Sarah Paschoal Scarelli

Graduação em medicina veterinária na UNIMAR, Marília-SP Mestrado em clínica de pequenos animais pela UNESP, Botucatu-SP Pós-graduação em medicina Felina pelo Equalis, São Paulo Médica veterinária especializada em medicina Felina na cidade de Botucatu-SP e região. Professora de cursos de pós graduação em Medicina Felina e Nefrologia e Urologia Felina.

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