A saúde começa pela boca

Por Natalia Santana L. B. Figueiredo

O universo de Odontologia Veterinária vem trazendo uma abordagem criativa e inovadora para o cuidado bucal dos nossos amiguinhos de quatro patas. Prepare-se para se encantar com os incríveis avanços da ciência odontológica aplicada aos nossos queridos bichinhos. Os profissionais são mestres na arte de cuidar dos dentes dos nossos peludos, utilizando as técnicas mais modernas e eficientes para garantir um sorriso radiante e saudável. Mas não pense que é só uma questão de estética! A Odontologia Veterinária vai muito, além disso. Nós entendemos que a saúde bucal dos animais está diretamente ligada ao seu bem-estar geral. Afinal, quem não gosta de mastigar com prazer, saborear uma deliciosa refeição ou brincar sem incômodos?

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A boca é a maior cavidade do corpo e é a principal porta de entrada para bactérias e outros microorganismos prejudiciais à saúde. A odontologia em pequenos animais vem crescendo à medida que o animal passa a ser membro da família e entendem a importância do cuidado oral, para evitar problemas futuros. O principal objetivo da odontologia é preservar a saúde bucal, evitando o acúmulo de placa bacteriana na superfície dos dentes que é o fator primordial para a causa de alguns problemas, como a doença periodontal, que acomete os tecidos de sustentação do dente que inclui a gengiva, osso alveolar, cemento e ligamento (Figura 1)¹. Responsável por diversas inflamações na boca, podendo causar dor, e eventualmente perda de elementos dentários e até mesmo fratura de mandíbula ou maxila. Pode levar há distúrbios sistêmicos, comprometendo alguns órgãos, como o coração, fígado e rins¹.

Figura 1 – Anatomia do periodonto. Fonte: Baia, 2018.

O cão normalmente apresenta 28 dentes decíduos, conhecidos como dentes “de leite”, que começam a se formar ainda no útero materno e erupcionam a partir da terceira semana de vida. Já a troca da dentição de leite para a permanente costuma ocorrer entre 3 e 7 meses de idade, totalizando em 42 dentes permanentes² (Figura 2).

Figura 2 – Odontograma do canino. Fonte: Baia, 2018.

Já os felinos apresentam 26 dentes decíduos que são formados ainda no útero materno e erupcionam a partir da terceira semana de vida, trocando a dentição decídua pela permanente entre 3 e 7 meses de idade, resultando em um total de 30 dentes permanentes² (Figura 3).

Figura 3 – Odontograma do felino. Fonte: Baia, 2018.

A medicina veterinária vem cada vez mais se desenvolvendo e avançando nas tecnologias, conseguindo dar suporte para proporcionar qualidade de vida aos pets e consequentemente dando longevidade, já que cada vez mais os animais fazem parte da família. Com esse convívio cada vez mais próximo, os veterinários têm que ficar atentos quanto a diversas doenças que podem acometer nossos animais, sendo ponto de partida para estudos de diversas naturezas, sempre com intuito de melhorar a qualidade de vida deles¹.

Doença Periodontal

Para identificar doenças orais o exame completo da cavidade oral é um passo importante. Normalmente o que leva a identificação de que algo não está certo com o paciente é inicialmente o mau hálito, devido ao acúmulo de placas bacterianas, que leva a doença periodontal, uma enfermidade grave que acomete mais de 80% dos animais acima de 6 anos². A placa dentária é composta por um material amarelo, pegajoso e é formado na superfície do esmalte do dente, conhecida também como biofilme. A doença periodontal é a principal responsável pela gengivite, já que induz uma resposta inflamatória¹.

A placa bacteriana se estabelece entre 24 a 48 horas após a profilaxia feita através da escovação, levando a produção de metabólicos que originam a halitose, originada da doença periodontal¹.

O cálculo dentário por sua vez é formado pela calcificação da placa (Figura 4), isso quando ela não é removida havendo precipitação de sais de cálcio e outros minerais que são presentes na saliva. Os cálculos podem ser subgengival ou supragengival¹. É comum observarmos os cálculos em maior quantidade próxima aos orifícios de drenagem dos ductos, localizado na região vestibular do quarto pré-molar e primeiro molar superior e inferior. Muitas vezes essa placa se torna enegrecida (Figura 5), devido à incorporação de pigmento de ferro proveniente de hemoglobina degradada³.

Figura 4 – Canino da raça Shih-tzu com grande acúmulo de cálculo dentário. (Fonte: Arquivo pessoal).
Figura 5 – Canino da raça Yorkshire, com cálculo dentário enegrecido. (Fonte: Arquivo pessoal).

Fatores predisponentes para a doença periodontal:

Vários fatores predispõem a progressão da gengivite e da doença periodontal, um fator é o apinhamento dos dentes, que é a sobreposição dos dentes, isso ocorre quando não há espaço para que todos os dentes se acomodem corretamente na arcada dentária, é comum em animais de porte pequeno e braquicefálicos. Porém, há outros fatores como: produção salivar diminuída, retenção de dentes decíduos, anomalias dentárias (dentes supranumerários ou hipoplasia de esmalte), má oclusão, também contribuem para a formação de doença periodontal.

Fatores sistêmicos também vão contribuir para a doença, como as afecções sistêmicas (uremia, hepatite e distúrbios endócrinos), imunossupressão, animal debilitado, cálculos dentários (devido a sua superfície áspera), pois pode acumular mais placa bacteriana aumentando a gengivite. Normalmente os maiores acúmulos de placa e cálculo dentário vão ocorrer em animais cuja alimentação é feita com rações úmidas ou alimentação natural, pois não tem o atrito e a ação abrasiva da ração seca.

Sinais Clínicos

É comum que animais com idade superior a quatro anos costumem apresentar um grau de doença periodontal em um ou mais dentes, comum em pré-molar e molar, pois os tutores têm maior dificuldade de acesso e aonde fica o maior acúmulo, claro que existem suas particularidades, como animais mais jovens já apresentando algum grau de doença periodontal, pois a alimentação e estrutura da arcada é um fator agravante para formação de placas.

Saber identificar enquanto é precoce é fundamental, evitando o agravamento como inflamação, reabsorção óssea e perda de elemento dentário. Alguns sinais são percebidos pelos tutores, tais como:

Efeitos sistêmicos

A relação entre a doença periodontal e o comprometimento da saúde sistêmica está estabelecida há muito tempo. A periodontite contribui para o desenvolvimento de diversas afecções inflamatórias sistêmicas. Isto ocorre principalmente por três mecanismos: bacteremia, anacorese e atividade enzimática. O processo mastigatório diário dos animais que apresentam bolsa periodontal e inflamação gengival favorece o acesso de bactérias e seus fragmentos aos vasos sanguíneos, o que é conhecido por bacteremia¹. A bacteremia favorece a anacorese, fenômeno que leva bactérias e seus fragmentos, através dos vasos sanguíneos, aos tecidos inflamados. Frequentes episódios de bacteremia ocorrem todos os dias, durante anos, podendo causar infecção ou estimular a inflamação em diversos órgãos como coração, fígado, rins, órgãos do trato respiratório e também as articulações. Sabe-se que a resposta inflamatória é muito importante para a vida dos animais. A inflamação regula a defesa do corpo contra patógenos, estresse ambiental, além de controlar a recuperação de feridas. A inflamação aguda, como em resposta à lesão tecidual ou infecção, ocorre praticamente de imediato. Esta fase é curta e normalmente resulta na recuperação do equilíbrio fisiológico. A inflamação aguda é atualmente definida como uma resposta fisiológica que ocorre em tecidos vascularizados para proteger o animal e manter sua homeostase³. O processo de inflamação aguda caracteriza-se pela dilatação vascular, aumento da permeabilidade de capilares, do fluxo sanguíneo e do recrutamento de leucócitos, que são células com função de defender o organismo. Quando permanece após o período transitório da resposta imune inata para adquirida, a inflamação torna-se crônica. Nesta fase, há aumento de atividade destrutiva de colágeno. Sendo o colágeno a proteína mais abundante do corpo humano e animal, presente em praticamente todos os órgãos, a inflamação crônica lesiona diversos órgãos e tecidos¹, como:

Renal – Doenças renais podem ser causadas pela doença periodontal. A presença de bactérias e toxinas pode levar ao desenvolvimento de pielonefrite e nefrite intersticial, enquanto a deposição de imunocomplexos nos glomérulos, estimulada pela presença constante de bactérias no sangue, pode resultar em glomerulonefrite. Além disso, a exposição a patógenos bacterianos leva a uma produção aumentada de um fator que ativa as plaquetas, o qual pode causar danos às células renais e contribuir para o surgimento de lesões nos rins³.

Hepático – A presença de infecções bacterianas que causam bacteremia pode levar a uma doença hepática chamada colestase intra-hepática. Além disso, a inflamação do tecido hepático e a formação de fibrose no fígado também podem ser consequências da doença periodontal. Foi observada uma correlação significativa entre o estágio da doença e a inflamação do tecido hepático. Essa inflamação resultante da bacteremia causa um aumento nos níveis sanguíneos das enzimas fosfatase alcalina (FA), alanina aminotransferase (ALT) e globulinas, dependendo da gravidade da doença. Essas alterações indicam uma resposta imune estimulada que pode ocorrer como resultado de certos distúrbios não hepáticos, incluindo os originados na cavidade oral³.

Cardíaca – A degeneração crônica das valvas cardíacas é uma das enfermidades mais comuns encontradas. De acordo com um estudo, 84% dos 44 cães com histórico de doença periodontal apresentaram alterações histológicas nas valvas atrioventriculares. Desses cães, 38,6% tinham um leve espessamento mixomatoso e 45,45% apresentaram um espessamento mixomatoso e fibrótico grave³.

A endocardite infecciosa é a inflamação da superfície endocárdica causada pela invasão de um agente infeccioso. Bactérias são os agentes infecciosos mais comuns que causam endocardites em cães e gatos, afetando principalmente o tecido valvar. Quando as bactérias colonizam uma valva cardíaca, geralmente causam lesões proliferativas, conhecidas como lesões vegetativas. Essas lesões podem resultar em uma coaptação inadequada da valva, levando a regurgitação sanguínea (o que é mais comum) ou estenose do orifício valvar (o que é menos comum). Além disso, há a possibilidade de destruição do tecido valvar, o que também pode causar regurgitação do sangue4.

Em resumo, a degeneração crônica das valvas cardíacas é uma condição comum, principalmente em cães com doença periodontal. A endocardite infecciosa, causada principalmente por bactérias, é uma complicação grave que pode levar a danos nas valvas cardíacas e problemas de circulação sanguínea. É importante estar atento aos sintomas dessas doenças e procurar um veterinário para um diagnóstico e tratamento adequados³.

Diagnóstico

A realização de um exame completo da cavidade oral é um passo importante para identificar doenças orais relacionadas à odontologia em pequenos animais. Nesse sentido, é necessário examinar e higienizar o sulco gengival e, em casos mais graves, as bolsas periodontais, que são áreas ao redor do dente em todas as suas faces³.

Para realizar a raspagem dentária, o ultrassom odontológico é utilizado como auxílio. Dessa forma, muitos problemas orais podem ser diagnosticados por meio do exame completo das faces. No entanto, muitos exames não podem ser feitos com o paciente acordado, sendo necessária a anestesiologia veterinária para proporcionar o melhor atendimento possível¹.

Um diagnóstico completo da cavidade oral inclui exame visual, periodontal e avaliação radiográfica, que determinam os graus da doença periodontal e os fatores predisponentes que contribuíram para seu aparecimento. No exame clínico, alguns sinais podem ajudar na detecção da doença, como halitose intensa, salivação espessa, sangramento oral, mobilidade dentária, presença de gengivite, placa bacteriana e cálculo. Para visualizar a placa, são utilizadas soluções evidenciadoras, como o verde malaquita, a eritrosina e a fluoresceína, porém, elas só identificam se a placa já estiver organizada.

Para realizar um exame periodontal completo em cães e gatos, é comumente utilizado o instrumento chamado sonda periodontal, que pode ser manual ou com auxílio de sondas computadorizadas. Essa sonda é introduzida no sulco gengival, paralelamente ao dente, até atingir a profundidade máxima. A profundidade normal do sulco em cães varia de 1 a 2 mm, podendo atingir até 4 mm em raças de grande porte, enquanto em gatos está em torno de 0-0,5 mm. Valores superiores indicam perda da inserção clínica do epitélio juncional com destruição óssea, formação de bolsa periodontal e exposição da furca, que é a área entre as raízes dos dentes que possuem mais de uma raiz e é preenchida por osso alveolar. Na presença de periodontite, o osso da furca pode ser absorvido e a sonda pode ser introduzida entre as raízes¹.

A avaliação radiográfica da boca é essencial para pacientes com doença periodontal, pois fornece informações adicionais sobre as estruturas ósseas dentárias e periodontais. As técnicas intra-orais são preferíveis às técnicas extra-orais, pois eliminam sobreposições de estruturas diferentes e oferecem uma imagem de melhor qualidade. Todas as informações obtidas devem ser documentadas no odontograma do animal, que é uma ficha específica para odontologia.

Tratamento

O tratamento da doença periodontal tem como objetivo principal eliminar a placa bacteriana, que é a sua principal causa. A terapia consiste em impedir a progressão da doença, através de um plano terapêutico cuidadoso, que envolve tratamentos adequados e controle diário da placa, para evitar a recorrência da doença.

Esse plano terapêutico inclui a remoção do cálculo da coroa, que é o acúmulo de placa bacteriana acima da gengiva, a raspagem radicular, que consiste na remoção do cálculo abaixo da gengiva, o aplainamento radicular, que remove parte do cemento impregnado por toxinas bacterianas, além de polimento e outros procedimentos, como extrações, tratamento de canal e cirurgia periodontal³.

Considerações finais

A doença periodontal tem sido objeto de muitos estudos devido à sua alta prevalência em cães e gatos, especialmente em idade avançada. É de extrema importância conhecer a anatomia, a etiologia e os mecanismos pelos quais a doença se desenvolve, pois isso é a base para um diagnóstico preciso, bem como para o tratamento e a prevenção. Muitas vezes, a doença se desenvolve de forma silenciosa até que seus sintomas se tornem graves, por isso é fundamental uma boa comunicação entre o veterinário e o proprietário do animal. É importante ressaltar que, apesar da alta prevalência, a doença periodontal pode ser facilmente tratada e possui medidas preventivas eficazes, especialmente em estágios iniciais. Dessa forma, a prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento da doença periodontal formam um conjunto que pode reduzir a ocorrência de doenças sistêmicas, como endocardite associada à periodontite, bem como as possíveis lesões em outros órgãos devido ao desenvolvimento de tromboembolismo. Essas complicações afetam a saúde geral do animal e podem levar à óbito em estágios avançados.

REFERÊNCIAS

1 – Santos NS, Carlos RSA, Albuquerque GR. Medvep – Revista Científica de Medicina Veterinária – Pequenos Animais e Animais de Estimação; 2012; 10(32); 30-41.

2- Baia, Juliana Durigan. A Doença Periodontal em Cães e Gatos, 2018.

3- Ferreira, Camila de Lima. Doença periodontal em cães e sua associação com enfermidades sistêmicas. Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2023.

4- Sousa, Gabriel Abreu. Doença periodontal e o risco de endocardite em cães e gatos. Universidade de Brasília, 2016.

Natalia Santana L. B. Figueiredo

Veterinária pela Universidade Estácio de Sá; Pós-graduada em Cirurgia de tecidos moles pela Qualittas; atua na área de clínica médica, odontologia e cirurgia de tecidos moles, além de laserterapia em odontologia e feridas de pequenos animais.

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