Análise do líquido cefalorraquidiano nas afecções inflamatórias do sistema nervoso central de cães

Por Marcela Porto de Lima e Silva e Regina Kiomi Takahira

Cerebrospinal fluid analysis of inflammatory disorders of central nervous system in dogs

RESUMO

Os exames de imagem e do líquido cefalorraquidiano (LCR) são os exames complementares mais específicos para avaliação do sistema nervoso central (SNC). A análise do LCR auxilia no diagnóstico de alterações do SNC, podendo confirmar ou excluir a presença de alguma afecção neurológica, entretanto ela deve ser realizada em conjunto com a história e exame clínico e outros exames complementares. Sua avaliação é indicada quando o paciente apresenta sinais neurológicos centrais, especialmente quando se suspeita de processos inflamatórios, sejam de origem infecciosa, neoplásica, imunomediada ou traumática. Embora existam estudos robustos de revisão sobre as afecções neurológicas em cães, poucos abordam os achados do LCR associados aos diferentes distúrbios neurológicos. Tendo em vista a escassez de material específico sobre a interpretação do exame do LCR nas afecções inflamatórias do SNC em cães, objetivamos compilar as principais contribuições do exame para o diagnóstico neurológico das condições inflamatórias do SNC de cães.

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ABSTRACT

Imaging and cerebrospinal fluid (CSF) exams are the most specific complementary tests to evaluate the central nervous system (CNS). Analysis of the CSF aids in the diagnosis of CNS alterations, and can confirm or exclude the presence of a neurological condition; however, it must be performed in conjunction with the history and clinical examination and other complementary tests. Its evaluation is indicated when the patient has central neurological signs, especially when inflammatory processes are suspected, either of infectious, neoplastic, immune-mediated or traumatic origin. Although there are robust review studies on neurological disorders in dogs, only few approachesCSF findings associated with different neurological disorders. Due to the lack of specific material on the interpretation of CSF examination in CNS inflammatory conditions in dogs, we aimed to review the main contributions of the examination for the neurological diagnosis of CNS inflammatory conditions in dogs.

Revisão de literatura

O líquido cefalorraquidiano (LCR) ou líquor tende a ser uma ferramenta mais sensível nas afecções inflamatórias que nas demais condições, sendo também indicada em casos de trauma, desde que não esteja associado ao aumento da pressão intracraniana, fato que constitui uma contraindicação à sua colheita1.

Em alguns casos, o exame do LCR pode elucidar a etiologia da doença, em outras ele pode estreitar as possibilidades diagnósticas ou excluir outras condições2. O LCR também pode fornecer dados prognósticos importantes.

Dentre as condições inflamatórias mais importantes nos cães podemos citar as meningoencefalites de origem desconhecida (MUO), que englobam a meningoencefalite granulomatosa (GME), meningoencefalite necrotizante (MEN) e a leucoencefalite necrotizante (NLE); a meningite-arterite responsiva a esteroides (SRMA); meningoencefalites ou meningomielites de origem infecciosa; meningite eosinofílica; processos traumáticos no SNC, incluindo a mielomalácia; processos infecciosos (bactérias, cinomose, toxoplasmose, criptococose, erliquiose), além dos processos inflamatórios secundários a neoplasias e processos vasculares ou imunomediados. O diagnóstico diferencial das MUO deve ser realizado por meio de avaliação histopatológica, e a diferenciação das condições infecciosas depende, na maioria das vezes, de confirmação por exames complementares como sorologia ou diagnóstico molecular. Apesar disso, a presença dos micro-organismos na avaliação citológica é um achado de grande relevância diagnóstica3,4,5.

Nos cães, o LCR pode ser colhido tanto na cisterna magna (ou região atlanto-occiptal) quanto na região lombar. É indicado realizar a coleta caudalmente ou próxima a lesão6. Em um estudo prospectivo, em que foram realizadas colheitas pareadas da cisterna magna e região lombar, concluiu-se que nos cães com lesões em cérebro e medula espinhal cervical há um benefício clínico na coleta de qualquer dos locais. E em cães com mielopatia toracolombar, o LCR coletado da cisterna magna pode não ser representativo para a doença7.

O líquor normal deve ter aspecto límpido e incolor. A concentração normal de glicose no LCR representa cerca de 60 a 80% (45-80 mg/dL) da concentração no sangue. A hipoglicorraquia é frequentemente associada ao consumo por bactérias e células neoplásicas, de forma que a análise citológica torna-se importante para a adequada interpretação deste achado2, 8,

A concentração proteica do LCR é extremamente baixa quando comparada ao plasma. Os valores de referência variam de acordo com o local de colheita, sendo <45 mg/dL para a região lombar e de 25 a 30 mg/dL na cisterna magna. Cerca de 80 a 95% da proteína presente no LCR normal é representada pela albumina e cerca 5 a 12% pelas gamaglobulinas6, 8. A hiperproteinorraquia pode estar associada a alterações na permeabilidade da barreira hematoencefálica, hemorragia iatrogênica durante a coleta ou à produção local de imunoglobulinas, sendo um indicador não específico de condições inflamatórias2, 8.

As globulinas compõem a fração mais importante a ser mensurada. Esta avaliação é realizada pelo método de Pandy, que consiste na mistura de LCR com uma solução saturada de fenol, porém devido a sua baixa especificidade sua utilização é limitada9.

A contagem de eritrócitos e células nucleadas é realizada manualmente por meio de um hemocitômetro (câmara de Neubauer). No cão, eritrócitos íntegros podem ser identificados em baixa quantidade em casos de contaminação iatrogênica por sangue, por outro lado, a presença de eritrofagocitose sugere uma hemorragia intratecal pré-existente6, 8. A avaliação citológica normal do LCR nos cães caracteriza-se por uma baixa celularidade (<5 células nucleadas/uL), com predomínio de células mononucleares, como células monocitoides e linfócitos pequenos e típicos. A presença de raros neutrófilos e eosinófilos são consideradas normais, desde que não ultrapassem 10% e 1% respectivamente, do total de células nucleadas6, 8.

A elevação da contagem total de células nucleadas no LCR é denominada pleocitose, sendo frequentemente classificada de acordo com o tipo celular predominante10. A pleocitose neutrofílica ou mononuclear é a principal indicação da natureza inflamatória da condição neurológica. Ainda, a pleocitose pode ser classificada em discreta (<50 células nucleadas/uL), moderada (50-200 células nucleadas/uL) ou intensa (>200 células nucleadas/uL)8.

A dissociação albumino citológica (DAC) é definida como um aumento na concentração de proteína liquórica com uma contagem de células nucleadas dentro do intervalo de referência. A DAC pode ser causada por produção intratecal de proteínas (IgG e proteínas de mielina), alteração da barreira hematoencefálica e diminuição do fluxo ou sequestro do LCR na compressão da medula espinhal. A DAC foi mais frequente na neuropatia do nervo cranial, tumores cerebrais, doença vestibular idiopática e doença vascular cerebral em cães não sendo, portanto, um achado específico de condições inflamatórias11.

Os achados citológicos possuem valor diagnóstico semelhante à interpretação do hemograma, fornecendo uma indicação da possível natureza do processo, mas não a sua localização ou etiologia específica2. Em alguns casos o achado de inclusões, estruturas ou micro-organismos direcionam de forma mais específica o diagnóstico etiológico (Figuras 1 e 2). A Tabela 1 sumariza os principais achados do LCR nas principais afecções neurológicas inflamatórias.

Figura 1. Mórula de Ehrlichia canis – seta preta – (confirmado por PCR) em célula mononuclear de LCR de um cão. Método de citocentrifugação, coloração panótico, aumento de 1.000x.
Foto: Lívia Martins Sandoval.

Figura 2. Trofozoíto de Toxoplasma gondii – setas pretas – (confirmado por PCR) fagocitado por neutrófilo (A) e livre (B) em LCR de um cão. Método de citocentrifugação, coloração panótico, aumento de 1.000x. Foto A: Maria Rosa Santos Breda; foto B: Regina K. Takahira.
Tabela 1. Achados citológicos e de proteína do líquido cefalorraquidiano (LCR) nas principais afecções neurológicas inflamatórias (infecciosas ou não) em cães.

A pleocitose neutrofílica pode ser observada em condições infecciosas (bacterianas, fúngicas, protozoárias) ou inflamatórias agudas (traumáticas, MUOs, doença do disco intervertebral), mas é um achado inespecífico. A pleocitose eosinofílica é definida a partir de 10-20% de eosinófilos devido à sua baixa presença em LCR normal e tem sido associada à meningoencefalite eosinofílica dos cães (MEE), mas também a condições infecciosas, principalmente protozoárias (neosporose, toxoplasmose), fúngicas (criptococose) e parasitárias, mas também na MEG, encefalites bacterianas, e raros casos de encefalites virais (cinomose e raiva). A análise citológica e os exames complementares para doenças infecciosas são importantes para diferenciar a etiologia da pleocitose eosinofílica, tendo em vista que o tratamento com corticoides pode ser indicado na MEE e MEG, mas contraindicado nas condições infecciosas3, 4, 8, 10.

As encefalites virais como a cinomose são mais comumente associadas à pleocitose linfocítica, mas também é encontrada com frequência na MEN e em casos de linfoma. Outras condições vasculares, degenerativas e infecciosas podem cursar com pleocitose linfocítica. A avaliação clínica, histórico vacinal e racial, bem como outros exames complementares deve ser utilizada para auxiliar na diferenciação2, 4.

A pleocitose mononuclear é encontrada em uma diversidade de processos inflamatórios e infecciosos, crônicos ou não. A SRMA, MEG e encefalites bacterianas podem apresentar pleocitose mononuclear intensa (>1.000 células nucleadas/uL) ou uma pleocitose mista (mononuclear, linfocítica ou neutrofílica) nas fases mais crônicas. Células mononucleares anaplásicas podem ser observadas em alguns casos de MEG2, 4.

Outros tipos celulares podem ser observados em pequena quantidade sem significado clínico (células epiteliais, do plexo coroide), mas também em condições neoplásicas (linfoma, meningioma, neoplasias histiocíticas) em intensidade variável. As características de malignidade devem ser observadas em casos de suspeita de neoplasia. Figuras de mielina são achados raros e normalmente representam material mielínico desnaturado. Podem estar associados a processos degenerativos com desmielinização10 e estão associados ao pior prognóstico na mielomalácia (Figura 3).

Figura 3- Figura de mielina (seta preta) em LCR de cão com mielomalácia. Método de citocentrifugação, coloração panótico, aumento de 1.000x. Foto: Marcela Porto de Lima e Silva.

A dosagem liquórica de lactato não é realizada de forma rotineira, mas pode ser considerado um indicador de doença inflamatória no SNC. Um estudo detectou aumento em 47% dos cães com afecções inflamatórias variadas, porém não houve diferença entre as diferentes etiologias nem correlação prognóstica12.

A mensuração da atividade liquórica de enzimas como a aspartato amino transferase (AST), creatina quinase (CK) e lactato desidrogenase (LDH) não são muito sensíveis, mas são indicadoras de lesão aguda. A CK apresenta uma isoenzima de origem cerebral associada à lesão tecidual e a degeneração intensa da bainha de mielina, sendo um indicador de prognóstico ruim. Níveis elevados de CK têm sido observados em casos de peritonite infeciosa felina (PIF) e toxoplasmose. A AST é igualmente associada à lesão tecidual, particularmente da substância cinzenta e à desmielinização, estando elevada em casos de epilepsia, cinomose, meningites bacterianas e acidente vascular cerebral (AVC), já a LDH pode estar elevada em casos de meningite bacteriana, neoplasias, hemorragias subaracnoides e infarto cerebral. A normalidade da atividade dessas enzimas não descarta processos patológicos e não são específicos de processos inflamatório2,4, 8.

O valor prognóstico do LCR nas condições inflamatórias tem sido demonstrado, visto que cães com doença do disco intervertebral com mais 13% de macrófagos na citologia do LCR não recuperaram a capacidade deambulatória com sensibilidade de 100% e especificidade de 83%13. Da mesma forma, a visualização de figuras de mielina (Figura 3) na análise citológica sugere a ocorrência de mielomalácia9 e está associada a um pior prognóstico.

Os exames de imagem podem ser considerados um aliado na avaliação das afecções do SNC, sendo mais sensíveis que a análise do LCR nas alterações associadas à doença do disco intervertebral e menos sensível nas condições inflamatórias14.A ressonância magnética (RM) é mais sensível que a tomografia computadorizada nas afecções inflamatórias e traz informações sobre a localização e distribuição da lesão. Um estudo com 25 cães com alterações inflamatórias no LCR identificou alteração na RM em 76% dos animais15, reiterando que o LCR é a ferramenta diagnóstica isolada mais útil nas afecções inflamatórias. Por outro lado, alterações clínicas ou de imagem sugestivas de aumento de pressão intracraniana contra-indicam a punção do LCR14.

Conclusão

O exame do LCR nem sempre apresenta alterações específicas nas afecções inflamatórias do SNC, porém, quando associada ao exame clínico é uma ferramenta útil para estreitar as possibilidades diagnósticas e para a exclusão de algumas condições. Além disso, ele pode ser bastante útil no estabelecimento do prognóstico de casos específicos.

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Agradecimentos: Às médicas veterinárias Livia Martins Sandoval e Maria Rosa Santos Breda pela cessão das fotos (Figuras 1 e 2).

 

Marcela Porto de Lima e Silva

Graduação em Medicina Veterinária pela Unipinhal. Residência em Patologia Clínica Veterinária pela FMVZ-Unesp-Botucatu.

Regina Kiomi Takahira

Graduação em Medicina Veterinária pela FMVZ-USP. Mestrado e Doutorado em Patologia Clínica Veterinário pela FMVZ-Unesp-Botucatu. Profa. Titular e responsável pela disciplina e áreas de Laboratório Clínico Veterinário da FMVZ-Unesp- Botucatu. Vice-presidente da ABPCV (Associação Brasileira de Patologia Clínica Veterinária).

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