Síndrome da Pele Atópica Felina (FASS) – Uma revisão atualizada

Por: Fabiana Patricia Perdomo Vitale

Síndrome da Pele Atópica Felina (FASS) - Uma revisão atualizada

Inicialmente, se faz necessária a atualização da nomenclatura mais recente da doença cutânea alérgica em felinos, uma vez que as diferentes terminologias que já foram propostas, incluindo dermatite atópica felina like, síndrome da hipersensibilidade a alérgenos ambientais e o termo em inglês  “nonflea –  nonfood-induced feline hypersensitivity dermatitis” (HOBI et al., 2011; GEDON & MULLER, 2018) não são mais utilizados e foram substituídos mais recentemente pelo termo FASS – “síndrome da pele atópica felina” (DOMENICO et al., 2021).

A FASS está inserida na “síndrome atópica felina” (FAS), que abrange uma variedade de doenças alérgicas em gatos. Estes distúrbios incluem a dermatite alérgica, a asma e outras doenças respiratórias, além de doenças gastrointestinais que podem estar associadas a uma hipersensibilidade à alérgenos ambientais, como ácaros da poeira doméstica, plantas, pólens e gramíneas, gerando a produção de anticorpos do tipo IgE (DOMENICO et al., 2021). A recomendação é, assim que os pacientes felinos apresentarem apenas sinais tegumentares nas reações de hipersensibilidade a alérgenos ambientais devem ser diagnosticados com FASS.

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Classifica-se a FASS como uma doença alérgica, pruriginosa, crônica e incurável dos felinos (NOLI, 2020), onde há alterações imunológicas que incluem infiltração dérmica perivascular e difusa de linfócitos T na pele, presença de células apresentadoras de antígenos ativados, eosinófilos, macrófagos e grande número de mastócitos (GEDON & MULLER, 2018). Também há um significativo aumento de linfócitos T CD4 +, IL-4 e CD1a + e células dendríticas na pele de gatos com FASS, apontando para uma disfunção imunológica mediada por Th2, embora as vias das citocinas não tenham sido investigadas (DIESEL, 2017).

Uma característica diferencial desta enfermidade na espécie felina é que a faixa etária para manifestação dos sinais clínicos é bastante variável, podendo ocorrer entre os 6 meses e os 15 anos de idade (SCOTT & MILLER, 2013), diferentemente do que acontece em cães com dermatite atópica, onde os quadros ocorrem normalmente em animais entre os 6 meses e 3 anos de idade (GEDON & MULLER, 2018; SALZO.; CASTRO, 2020).

No geral, os quadros de FASS aparecem mais frequentemente reportados em fêmeas do que nos machos, numa proporção de 58,4% para as fêmeas e 41,6% para os machos acometidos (HOBI et al., 2011). Há poucos relatos na literatura em relação à predisposição racial, mas em um estudo realizado por Ravens et. al. (2014), os gatos da raça Devon Rex, Abissínios e Domésticos de Pelo Curto, foram reportados como sendo as raças mais associadas a esta enfermidade alérgica nesta espécie.

O diagnóstico desta enfermidade é bastante desafiador em função da diversidade de sinais clínicos apresentados. A maioria dos gatos com FASS tipicamente apresenta um ou mais tipos de padrões de reação cutânea (DOMENICO et al., 2021). Esses padrões incluem dermatite miliar – DM (Figura 1), alopecia / hipotricose autoinfligida – AHAI (Figura 2),  prurido de cabeça e pescoço – PCP (Figura 3) e lesões de complexo de granuloma eosinofílico – CGE, como úlcera indolente (Figura 4), placa eosinofílica (Figura 5) e granuloma linear (HOBI et al., 2011; FAVROT et al., 2012).

Estes sinais clínicos, sozinhos ou em combinação, e após a exclusão de outras causas que também provoquem esses padrões, são consistentes com um diagnóstico de FASS. Normalmente os pacientes felinos apresentam lesões pápulo-crostosas, bem como áreas de hipotricose e alopecia em partes do corpo, como flancos, dorso e abdome. Essa condição resulta do trauma autoinfligido gerado ao paciente se lamber, morder o pelo e ao se coçar com as unhas na tentativa de promover alívio, em função do prurido ocasionado pelo processo alérgico e inflamatório (DOMENICO et al., 2021). Em felinos, os quadros de otite foram observados em apenas 20,9% dos pacientes com FASS (MORIELLO, 2001; RAVENS et al., 2014).

Pela similaridade dos sintomas entre FASS e alergia alimentar (ou hipersensibilidade alimentar), se faz necessário submeter o paciente a triagem alimentar com dieta monoproteica de fonte inédita, ou com ração à base de proteína hidrolisada por 8-12 semanas, seguida de teste provocativo para diferenciar um quadro do outro. Os pacientes com quadros de alergia alimentar melhoram completamente dos sinais clínicos e após o teste provocativo, podem piorar novamente. Um outro diagnóstico diferencial importante para a FASS é a dermatite alérgica à picada de pulgas, sendo necessário fazer o controle de ectoparasitas adequadamente para excluir esta possibilidade alérgica (DOMENICO et al., 2021).

O diagnóstico de FASS é baseado nos sinais clínicos e na exclusão de outras enfermidades que cursem com as mesmas manifestações clínicas da síndrome alérgica felina, como sarna notoédrica, sarna demodécica, sarna otodécica, dermatofitose, dermatite alérgica à picada de pulgas e carrapatos, alergia alimentar, malasseziose tegumentar, queiletielose, pênfigo foliáceo, infecção bacteriana superficial e profunda da pele, reação a fármacos na pele (farmacodermia), tumores cutâneos (linfoma, mastocitoma e carcinoma,) infecções cutâneas de origem viral (herpesvírus, papillomavirus, calicivirus, poxvirus e vírus da leucemia viral felina) e alopecia psicogênica (SANTORO et al., 2021; DOMENICO et al., 2021). Portanto, exames como o de citologia cutânea, parasitológico de raspado cutâneo, cultura fúngica e uso de lâmpada de Wood, cultura bacteriana e biópsia de pele com análise histopatológica devem ser realizados com a finalidade de excluir boa parte destes diagnósticos diferenciais (NOLI, 2020). Há de se considerar que a presença de infecções estafilocócicas e crescimento excessivo de Malassezia sp. é muito comum em gatos alérgicos, com prevalência de 6,7- 61,1% dos animais acometidos. Por este fator, a realização de citologia cutânea é obrigatória em gatos com FASS para identificar a presença destas infecções (DOMENICO et al., 2021). Os testes de detecção de alérgenos, intradérmico (ITD) ou sorológico, não devem ser usados como método de diagnóstico da enfermidade alérgica, uma vez que o diagnóstico da FASS é clínico. Estes testes devem ser usados como método de identificação de alérgenos que estimulam a produção de anticorpos IgE, para poder guiar o tratamento imunoterápico, a fim de induzir tolerância a estes alérgenos ambientais no paciente felino alérgico  (GEDON & MULLER, 2018; NOLI, 2020; DOMENICO et al., 2021).

O teste intradérmico (ITD) é realizado através da inoculação de alérgenos na pele do felino alérgico, onde será interpretada a formação de pápulas cutâneas maiores ou iguais ao controle com o uso de histamina. Este teste dá resultados rápidos e é considerado biologicamente relevante, mas ainda carece de melhor padronização. Além disso, o ITD é considerado difícil de realizar e interpretar em gatos como consequência das reações fracas frequentemente observadas nesta espécie. Uma das justificativas é o aumento dos níveis de estresse que os gatos apresentam durante uma visita ao veterinário, induzindo ao aumento do cortisol sérico, que pode interferir na reatividade do teste. Para reduzir o nível de estresse e o aparecimento de resultados falso negativos, os gatos devem ser sedados para a realização deste tipo de teste (AUSTEL et al., 2016).

A fim de melhorar a interpretação das reações ao ITD, o uso de soluções injetáveis intravenosas à base de azul de Evans e fluoresceína são sugeridas. O corante de fluoresceína pode ser administrado por via intravenosa na dose de 5 mg/kg, antes ou imediatamente após o ITD, pois melhora e esclarece os resultados 15-20 min após a inoculação do alérgeno, permitindo que as reações possam ser visualizadas com o auxílio de da Lâmpada de Wood (KADOYA-MINEGISHI et al., 2002; GENTRY & MESSINGER, 2016). Já os testes sorológicos medem a IgE específica de alérgeno circulante no sangue dos pacientes, porém a confiabilidade do teste é baixa, em função das reações positivas que podem ocorrer em gatos saudáveis não alérgicos ( DOMENICO et al., 2021).

O tratamento da FASS envolve evitar o contato com os alérgenos (GEDON & MULLER, 2018; NOLLI, 2020) e nos casos de alergia a ácaros da poeira doméstica (Dermatophagoides farinae, Blomia tropicalis, Tyrophagus putrescentiae, etc.), o felino deve evitar passar a maior parte do tempo dentro da casa, evitando deitar na cama dos tutores (alta concentração de ácaros), deve-se usar aspiradores no interior da casa rotineiramente e usar nebulizadores com substâncias acaricidas (NOLI, 2020).

As modalidades terapêuticas envolvem a imunoterapia alérgeno específica – ASIT, com resposta favorável em 50-80% dos pacientes felinos (GEDON & MULLER, 2018; NOLLI, 2020; DOMENICO et al., 2021); glicocorticóides orais como prednisolona 1-2 mg/kg/q 24 h, ou metilprednisolona 1-1,4 mg/kg/q 24 h ou ainda triancinolona 0,1-0,18 mg/kg/q 24 h por 15-20 dias e decréscimo da dose para a menor dose tolerada, no maior intervalo possível (MUELLER et al., 2021).

O imunossupressor ciclosporina por via oral, na dose de 7,5 mg/kg/q 24h tem eficácia similar a de glicocorticóides orais, porém precisa de 30 dias para ter seu efeito desejado (neste período deve ser administrado conjuntamente a glicocorticóides). Após este período, deve-se tentar o espaçamento da dose máxima tolerada pelo paciente, para a cada 2 dias e depois a cada 3 dias. Os felinos em tratamento com ciclosporina devem ser testados para Fiv (Vírus da Imunodeficiência Felina) e Felv (Vírus da Leucemia Felina), devendo ser negativos para ambas as retroviroses e não devem ingerir carne crua, como presas, durante todo o período de uso desta medicação, para evitar a aquisição de toxoplasmose, que durante a terapia com esta medicação pode ser fatal. A ciclosporina tem boa tolerância oral em felinos, mas deve ser administrada 2 horas após refeições para evitar êmese e diarreia (NOLLI, 2020; MUELLER et al., 2021).

Recentemente outras medicações foram descritas para o controle do prurido em gatos alérgicos, como o oclacitinib, um inibidor de receptores janus quinase tipo 1, que impede a ligação da interleucina IL-31 e portanto, bloqueia a sinalização neuronal do prurido. O oclacitinib não tem indicação em bula para felinos, sendo o seu uso indicado “off label” (fora de bula) para esta espécie, na dose de 1 a 2 mg/kg/q 12 h/via oral por 28 dias e depois deve-se prosseguir na tentativa de decréscimo para intervalo a cada 24 h. Estudos recentes têm demonstrado sua relativa eficácia e segurança no uso para a espécie felina, contudo, recomenda-se a realização de exames de hematologia e bioquímica sérica regular (ORTALDA et al., 2015; NOLI, 2020).

O citrato de maropitant é um antagonista do receptor da neurocinina-1, capaz de bloquear a interação de substância P, uma neurocinina pruritogênica, ao seu receptor. Também possui efeitos analgésicos em casos de gastrite e o seu principal efeito é o antiemético (NOLI, 2020). Em um estudo piloto aberto foi utilizado na dose de 2 mg/kg/q 24h, por via oral, e foi relatado como eficaz contra o prurido e lesões em  91,6% dos gatos alérgicos testados. Entretanto, ainda não há informações sobre sua segurança para  tratamentos a longo prazo e também recomenda-se a realização de exames regulares para monitoramento de possíveis efeitos colaterais  (MAINA & FONTAINE, 2019; MUELLER et al., 2021).

Mais recentemente, o bioativo palmitoetanolamida (PEA) vem sendo estudado para o controle do prurido em pacientes alérgicos, em especial os felinos. A palmitoetanolamida é um lipídio bioativo de ocorrência natural presente em animais e plantas. Nos mamíferos é produzida por vários tipos de células diferentes, em resposta a danos aos tecidos e atua controlando a degranulação dos mastócitos e outras células inflamatórias, como macrófagos e queratinócitos. Consequentemente, a PEA diminui a inflamação da pele e a sensibilização dos nervos em animais com dermatite alérgica. Segundo Noli (2019), num estudo feito em gatos com granuloma eosinofílico e a placa eosinofílica, a PEA na dose de 10 mg/kg/q 24h por 30 dias, melhorou o prurido, eritema e alopecia em 60-65% dos gatos tratados e reduziu a extensão e gravidade de placas eosinofílicas e granulomas em 66,7 % dos casos. Portanto, sugere-se que a PEA pode ter um bom efeito poupador de glicocorticóide em gatos com dermatite alérgica.

A resposta terapêutica costuma ser boa na maioria dos pacientes aos diversos protocolos atualmente disponíveis e citados acima, sendo necessário adequar o protocolo terapêutico às condições financeiras do tutor para custear o tratamento, bem como exames complementares para acompanhamento dos efeitos colaterais, pela tolerância oral do paciente à medicação escolhida e também pela habilidade do tutor em administrar o tratamento escolhido.

Figura 1. Felino da raça Sphynx com lesões compatíveis com padrão de dermatite miliar em cabeça. Fonte: Arquivo pessoal da autora
Figura 2. Paciente felino com alopecia autoinduzida por prurido em região dorsal. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 3. Paciente felino com escoriações cervicais em quadro de FASS. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 4. Lesão de úlcera indolente em lábio superior, lado direito em felino. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 5. Placa eosinofílica em abdome de felino com quadro alérgico. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Fabiana Patricia Perdomo Vitale

Médica Veterinária formada pelo Centro Universitário - UNIFAJ, 2012. Especializada em Dermatologia Veterinária pela FMVZ-USP, 2015. Especializada em Ativação em Processos de Mudanças no Ensino em Saúde pela Fiocruz, 2020. Curso de Atualização em Imunoterapia e Alergologia – Dermatovet Cursos, 2021. Sócia da SBDV (Sociedade Brasileira de Dermatologia Veterinária) desde 2015. Atendimento na especialidade de Dermatologia e Alergologia no Hospital Veterinário Taquaral, em Campinas-SP.

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