Megaesôfago associado a miastenia gravis adquirida em cão: relato de caso

Por Jairo Nunes Balsini¹², Richard Simon Machado¹² e Letícia Spillere Vieira¹

INTRODUÇÃO

A miastenia gravis (MG) existe como uma afecção de origem congênita, sendo essa forma raramente descrita, ou mais comumente como uma doença autoimune adquirida, resultando em uma deficiência no número de receptores de acetilcolina (AChRs) viáveis para propagação do impulso nervoso (PLATT, 2004).

A MG adquirida é uma afecção neuromuscular, causada por um distúrbio imunomediado, que afeta a junção neuromuscular de músculos lisos e estriados (AUBEY, 1997; DEWEY;COSTA, 2016). A ocorrência é maior em cães que em gatos, podendo surgir isoladamente em duas distribuições etárias, principalmente entre 4 meses a 4 anos e, nos cães senis, entre 9 a 13 anos. Há um alto risco relacionado a predisposição racial, incluindo Akita, Pastor Alemão, Golden Retriever e Pointer Alemão de pelo curto. Essa afecção pode se apresentar como três síndromes clínicas distintas, sendo elas, focal, generalizada e fulminante aguda. (DEWEY; COSTA, 2016).

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Alguns dos sinais clínicos observados, incluem regurgitação secundária a megaesôfago, disfagia, ptose mandibular, diminuição dos reflexos palpebrais e disfonia. A fraqueza muscular é evidenciada nos membros pélvicos dos cães (DEWEY;COSTA, 2016).

O diagnóstico presuntivo de MG é realizado através dos sinais clínicos e testes responsivos com agentes anticolinesterásicos, e a confirmação é obtida por exames complementares (SHELTON, 1999). Radiografias torácicas podem demonstrar a presença de megaesôfago, com pneumonia aspirativa ou não, e ainda, em alguns casos, tumores tímicos, que podem ser vistos em topografia mediastínica cranial (MEARS; JENKINS, 1997).

Imagem I: Radiografia contrastada com bário (esofagografia) elucidando presença de megaesôfago.

O tratamento da MG é baseado nos cuidados de suporte associados a terapia específica com drogas anticolinesterásicas, ou em alguns casos em associação com imunossupressores, visando o controle do bloqueio neuromuscular e do processo imunomediado concomitante (DEWEY;COSTA, 2016).

RELATO DE CASO

Um canino macho, sem raça definida, com 1 ano e três meses de idade, deu entrada em um Hospital Veterinário na cidade de Tubarão/SC com histórico de rigidez em membros pélvicos, incapacitando sua correta locomoção, sem histórico de trauma ou intoxicação. Esses sinais surgiram de forma aguda, e após uma semana foi buscado auxílio médico. O animal apresentava todas as vacinas contra agentes infecciosos.

O exame clínico revelou paraparesia em membros pélvicos, apresentando certa rigidez muscular nesses membros, sem déficit proprioceptivo e com presença de dor profunda. A palpação epaxial não demonstrou dor. O exame físico não revelou alterações nos parâmetros fisiológicos. Ao exame neurológico, não apresentava alterações em pares de nervos cranianos, exceto a ausência de reflexo ameaça, além de hiporeflexia patelar.

Exames laboratoriais revelaram níveis séricos de CK em 540,60U/L (ref. 24 – 170U/L). Outros exames hematológicos demonstram valores dentro dos parâmetros de referência. Exame de radiografia cervical em busca de megaesôfago não revelou alterações.

O tratamento inicial foi realizado com prednisolona 1mg/kg BID, a qual não apresentou resultados significativos. A dor foi controlada com metadona 0,3mg/kg BID e sessões de fisioterápicas de magnetoterapia. Após 10 dias, o animal retornou para nova avaliação, onde apresentava moderada atrofia dos músculos mastigatórios. Foi realizado teste para diagnóstico de MG com neostigmina 0,05mg/kg, com administração prévia de atropina 0,04mg/kg, porém o resultado foi negativo. Com o descarte dessa afecção e a suspeita de miopatia, exames sorológicos para Neospora canis e Toxoplasma gondii e biopsia muscular foram solicitados.

O paciente foi submetido à anestesia para retirada de uma amostra de tecido da musculatura quadríceps femoral, sendo enviada para exame histopatológico. O exame revelou desorganização e atrofia das fibras musculares, exibindo moderada tumefação e irregularidade citoplasmática, vasos congestos exibindo raros linfócitos e plasmócitos e preservação dos plexos neuronais, sendo esses, resultados que corroboravam com a suspeita diagnóstica.

A terapia com azatioprina 1mg/kg BID foi instituída e após 5 dias, não houve melhora do quadro clínico. Foi iniciado nova terapia com prednisolona 1mg/kg BID sem sucesso e com progressão da doença para os membros torácicos. Em estado de tetraparesia, nova radiografia contrastada com bário de região cervical foi solicitada, constatando acometimento de músculos esofágicos por surgimento de megaesôfago (Imagem I).

Foi realizado novo teste para MG com neostigmina, dessa vez apresentando resultado positivo, onde em cerca de 2 minutos o animal apresentou recuperação da força em musculatura apendicular. Foi instituída a desmama do corticosteroide e iniciada terapia com brometo de piridostigmina 2,5mg/kg BID por uso contínuo.

DISCUSSÃO

O mecanismo imunomediado envolvido na MG adquirida ocorre devido à redução na quantidade de receptores de acetilcolina na membrana pós-sináptica. Foi relatada uma correlação entre a gravidade dos sinais clínicos com o número de receptores viáveis. A diminuição no número de receptores reduz a interação da acetilcolina, refletindo numa interferência no potencial de ação, que acarreta em falha na transmissão neuromuscular e fraqueza progressiva (SHELTON, 2002).

A apresentação focal de MG comumente envolve apenas um grupo muscular, incluindo os músculos facial, esofágico e laríngeo (KHORZAD, 2011); a forma generalizada reflete no acometimento de grupos musculares mais extensos, incluindo musculatura esofágica e apendicular, principalmente pélvica. Na forma fulminante aguda, os pacientes apresentam desconforto respiratório, tetraparesia, disfagia e pneumonia aspirativa (SHELTON, 1998; DEWEY; DA COSTA, 2016). A afecção ainda pode ocorrer como resultado de uma síndrome paraneoplásica associada a timoma ou outras neoplasias, como colangiossarcoma ou linfoma (SHELTON, 2002).

Muitas vezes, a avaliação neurológica não apresenta alterações quando realizada antes da indução à fraqueza através de exercícios. Alguns casos apresentam reflexos palpebrais deprimidos ou ausentes quando não há fraqueza muscular generalizada (DEWEY;COSTA, 2016).

O diagnóstico definitivo de MG em animais é dado através da demonstração de auto anticorpos séricos contra AChRs musculares por radioimunoensaio de imunoprecipitação. Este ensaio é mais sensível e especifico, evidenciando uma resposta imunológica contra AchRs musculares (LINDSTROM, 1988). A eletromiografia de fibra única é o teste mais especifico para detecção de bloqueios na junção neuromuscular, porém, é limitado pelo custo e disponibilidade (DEWEY;COSTA, 2016). Outros procedimentos testes para diagnóstico presuntivo de MG adquirida carecem de sensibilidade ou especificidade e podem resultar em falso-negativo ou falso-positivo.

O cloreto de edrofônio (Tensilon®) é um agente anticolinesterásico de curta duração, que pode ser utilizado para fornecer um diagnóstico presuntivo de MG adquirida em cães e pode ser administrado na dose de 0,1 – 0,2mg/kg por via intravenosa (SHELTON, 2002). Em alguns casos, o teste também pode ser realizado com neostigmina, porém, em virtude de sua prolongada ação, é recomendável a administração prévia de atropina 0,02 – 0,04mg/kg por via SC ou IM para evitar crises colinérgicas, que podem resultar em bronconstrição e bradicardia.No caso em questão, o resultado negativo ao teste com neostigmina observado num primeiro momento, pode estar relacionado com a progressão severa da doença, acarretando na diminuição de AChRs viáveis (SURANITI et al., 2001), ou ainda, na hipótese de estar relacionado com a terapia analgésica com metadona.

O megaesôfago é um achado clínico frequente em pacientes com MG, muitas vezes associado a pneumonia aspirativa. Radiografias cervicotorácicas devem ser obtidas para avaliar sua presença. A esofagografia com bário pode ser indicada para elucidação do achado, entretanto, em pacientes que apresentam perda da função muscular da faringe e esôfago, os riscos de aspiração do contraste são maiores. A terapia especifica consiste na utilização de agentes anticolinesterásicos e imunomoduladores. O brometo de piridostigmina 0,5 – 3mg/kg pode ser utilizado por via oral em cães (Dewey & Costa, 2016); ou brometo de neostigmina na dose de 2mg/kg por via oral (SHELTON, 2002). Caso não se obtenha sucesso, a terapia imunossupressora pode ser associada, considerando a fisiopatologia da afecção, porém há controvérsias com a utilização desses fármacos (SHELTON, 1992).

Os efeitos colaterais incluem sinais gastrointestinais (náusea, câimbras, diarreia), sialorreia e lacrimejamento excessivo. Todos esses efeitos podem ser reduzidos através da utilização de atropina ou realizando a administração dos fármacos após alimentação (SHELTON, 2002). A terapia de suporte consiste no tratamento da pneumonia aspirativa quando houver, associada ao megaesôfago. Como em qualquer cão com megaesôfago, métodos alternativos de alimentação são considerados, como a elevação de alimentos e água ou a colocação de tubo de gastrostomia, visando uma nutrição e hidratação adequada e diminuindo os riscos de regurgitação (KING, 1998).

A causa de óbitos em cães miastênicos é quase sempre associada a pneumonia aspirativa grave ou recorrente. O prognóstico de MG adquirida em cães é reservado, principalmente naqueles casos com megaesôfago associado. É importante levar em consideração outros transtornos que podem mimetizar a clínica de MG. Diagnósticos diferenciais incluem botulismo, acidente ofídico, intoxicação por drogas colinesterásicas, neuropatias e miopatias inflamatórias (DEWEY;COSTA, 2016).

CONCLUSÃO

A miastenia gravis acomete a função neuromuscular com rápida evolução, refletindo disfunção principalmente em musculatura apendicular, esofágica e laríngea. O diagnóstico é dificultado pela semelhança com outras afecções neuromusculares, o qual necessita de exames complementares para elucidar o caso. Testes diagnósticos com drogas anticolinesterásicas podem apresentar resultados falso-negativos, evidenciando a relevância em acompanhar o caso, descartando outras possibilidades diagnósticas. Anticolinesterásicos podem ser utilizados isoladamente como terapia específica caso apresentem ótimos resultados, caso não, pode-se associar a terapia imunomoduladora. As complicações concomitantes, como a pneumonia aspirativa, devem ser tratadas, pois são as principais causas de óbitos em cães miastênicos.

REFERÊNCIAS 

AUBEY, A. Local myastenia gravis in a dog. Canadian VeterinaryJournal. 38. (1997): p 493-495.

DEWEY, C. W.; DA COSTA, R. C. Practicalguidetocanineandfelineneurology. 3rd edn. New Jersey, John Wiley& Sons, Inc. (2016): p 524-536

KHORZAD R.; WHWLAN M.; SISSON A. et al. Myasthenia gravis in dogs whitemphasisonthreatmentandcritical management, JournalofVeterinaryEmergencyandcriticalcare. 21(3). (2011): p 193-208.

KING L. G. Medical management ofthecriticalmyasthenicpatient. In: Proceedingsofthe 16th American CollegeofVeterinaryInternal Medicine Forum, San Diego. (1998): p 311-313

LINDSTROM J. M.; SHELTON D.; FUJII Y.: Myasthenia gravis. Advances in Immunology. 42. (1988): p 233–284

MEARS, E. A.; JENKINS, C. C. Canineandfelinemegaesophagus. CompendiumonContinuingEducation for thePractisingVeterinarian. 19 (3). (1997): 313-326.

PLATT S. R.; OLBY N. J. BSAVA Manual ofCanineandFelineNeurology, Vol. 287, 3rd edn. Quedgeley, Gloucester: British Small Animal VeterinaryAssociation. (2004).

SHELTON G. D. Canine myasthenia gravis. In: KIRK R. W.; BONAGURA J. D., eds. CurrentVeterinaryTherapy, 1 1 th ed. Philadelphia, PA: WB Saunders. (1992) p 1039- 1042.

SHELTON G. Myasthenia gravis lessonsfromthepast 10 years.JournalofSmallPractice. 39. (1998): p 368-372.

SHELTON, G. D. How do in treatmyastenia gravis. NAVC Proceedings (1999): p 15.

SHELTON, G. D. Myasthenia gravis anddisordersof neuromuscular transmission. VeterinaryClinicsOf North America: Small Animal Practice. 32

(1). (2002): 189-206.

SURANITI, A; FEIJOO, S.; ORTEMBERG, L. Limitaciones em el diagnóstico serológico de myasthenia gravis adquirida em caninos. Rev. Vet. Argentina XVIII. (177).

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Jairo Nunes Balsini

Graduação em Medicina Veterinária pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Mestre em Ciências da Saúde pela mesma instituição. Professor de Neurologia Veterinária na UNISUL, orientador da Liga Acadêmica de Estudos em Neurologia Veterinária (LANEV), responsável pelo Setor de Neurologia Clínica e Neurocirurgia – HVU, formação em Neurologia Canina e Felina pelo Instituto Bioethicus, Botucatu/SP, membro da Associação Brasileira de Neurologia Veterinária (ABNV), professor convidado Pós-Graduação em Neurologia Veterinária no Instituto Bioethicus, Botucatu/SP, Neurologia Clínica e Neurocirurgia pelo Centro Integrado de Especialidades Veterinárias (CIEV) e revisor da Revista Veterinária em Foco.

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Richard Simon Machado

Graduação em andamento em Medicina Veterinária pela Universidade do Sul de Santa Catarina, bolsista de Iniciação Tecnológica do CNPq, presidente da Liga Acadêmica de Estudos em Neurologia Veterinária (LANEV) e vice presidente do Centro Acadêmico de Medicina Veterinária (CAMVET) na mesma instituição. Membro do Grupo de Pesquisa em Neurobiologia dos Processos Inflamatórios e Metabólicos (NeuroIMet – Núcleo Sepse) do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UNISUL.

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Letícia Spillere Vieira

Graduação em andamento em Medicina Veterinária pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

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