Intolerância alimentar na dermatologia veterinária e o teste de reatividade alimentar (FRT) canino e felino

Por Leticia Ghilardi

Intolerância alimentar na dermatologia veterinária e o teste de reatividade alimentar (FRT) canino e felino

Como os sintomas dermatológicos associados à intolerância são muito parecidos e podem ser confundidos com os sintomas de atopia, o FRT é muito importante no diagnóstico

Sumário

As reações alimentares adversas (AFR) podem induzir a uma disfunção da barreira da mucosa intestinal, podendo perturbar o processo normal da digestão de proteínas e levar à permeação da mucosa. A digestão normal das glicoproteínas contidas nos alimentos resulta na produção de aminoácidos. Em pacientes com reações alimentares adversas as glicoproteinas não são digeridas completamente, podendo permear através da parede intestinal e provocar resposta inflamatória local. Essa resposta inflamatória pode ser celular bem como humoral, e em último caso essas reações de hipersensibilidade do Tipo-I e Tipo-III desempenham um papel que irão resultar em problemas dermatológicos: prurido, eritema, placas, pústulas, alopecia, queda de pelo, otite recorrente, resultando em um paciente totalmente inflamado.

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O teste FRT identifica reações autoimunes de componentes alimentares. É muito importante abordar os possíveis alimentos que causam esses problemas em um estágio precoce. Os sintomas dermatológicos associados são muito parecidos e podem ser confundidos com os sintomas de atopia. O teste FRT pode apontar problemas em potenciais em determinado tipo de alimento e sugerir qual a fonte de alimento deve ser adequada para o controle das reações alimentares adversas.

Prevalência de reações adversas aos alimentos

A reação adversa dos alimentos é definida bem como uma reação aos componentes da dieta (1). A incidência da alergia alimentar, com produção de IgE, é estimada em 5-8% em cães alérgicos e 12% em gatos alérgicos. Entretanto, as reações adversas alimentares podem afetar 20 a 35% dos cães e gatos atópicos. Devido a natureza complexa dos AFRs, os clínicos podem diferir na frequência da prevalência relatada. Atualmente essa prevalência está aumentando.

Aspectos clínicos relacionados às reações adversas aos alimentos

O período entre a ingestão dos alimentos e o aparecimento dos sintomas depende do tipo de reação envolvida, o grau de sensibilidade do paciente e do tempo de exposição. Em cães, o sinal clínico mais comum é o prurido não sazonal (2,3,4), com presença de urticária e dermatite. Em gatos, não existe um critério definido para distinguir os pacientes com alergia alimentar daqueles com alergia ambiental (5). O planejamento de dietas de eliminação e o desafio para confirmar o diagnóstico de reações adversas causadas por alimentos são problemáticos e sua taxa de sucesso é um tanto decepcionante.

Sinais clínicos mais comuns relatados:

• Alguns cães apresentam discreto prurido e os sintomas representam apenas infecção recorrente, com piodermite, dermatite por mallassezia, pododermatite, otite, queda de pelo, áreas alopécicas, placas eritematosas, mau cheiro, seborreia seca ou oleosa, blefarite. Quando a infecção não é tratada pode ocorrer urticária ou angioedema.

• Sintomas gastrointestinais: perda de apetite, perda de peso, dor abdominal e borborigmo, emese, flatulência, diarreia persistente e constipação.

O mecanismo inflamatório da parede intestinal.

As reações adversas aos alimentos são suscetíveis a enfraquecer e danificar as microvilosidades e as junções celulares da mucosa intestinal, permitindo o trânsito de proteínas não digeridas, partículas alimentares e microorganismos do intestino para a membrana basal. A ilustração mostra um comparativo de uma mucosa intestinal normal e uma mucosa danificada.

Imagens fornecidas pelo Departamento Técnico HESKA 29/04/2020

A imunopatogênese da resposta humoral

As fases de sensibilização:

(1) Os antígenos penetram através da mucosa intestinal enfraquecida.

(2) Os alérgenos encontram células dendríticas residentes APC (células apresentadoras de alérgenos).

(3) As APCs migram para o linfonodo regional, onde encontram células T que reconhecem o antígeno (como um invasor) através do sistema de histocompatibilidade.

(4) As células T são estimuladas por um fenótipo Th2.

(5) Os linfócitos Th2 estimulados desenvolvem-se em células B ativadas específicas de alérgenos.

(6) As células B ativadas se diferenciam em células plasmáticas que iniciam a produção de imunoglobulinas IgE e IgG.

(7) Específicos aos basófilos e mastócitos circulantes.

(8) A IgE e a IgG específicas do antígeno se ligam através de seus receptores. Durante sucessivas estimulações de antígenos, elas liberam fatores que iniciam e mantêm o processo inflamatório.

A produção de complexos imunes ativa as respostas celulares, levando à liberação de histamina e fatores inflamatórios. O sistema sanguíneo de defesa também contribui para manter o processo inflamatório.

Com a progressão das lesões, os processos normais de absorção ficam comprometidos. Normalmente, durante o processo de digestão, os oligopeptídeos passam pelos enterócitos e são liberados em aminoácidos através da membrana basal. Os fragmentos de proteína são muito pequenos (1 a 4 sequências de aminoácidos), transferidos e transportados através dos vasos sanguíneos. Os oligopeptídeos de menor tamanho não têm capacidade de desencadear uma resposta imune.

Imagens fornecidas pelo Departamento Técnico HESKA 29/04/2020

O teste de reatividade alimentar (FRT)

O FRT é um teste sérico, baseado no teste de “ELISA”, desenvolvido para identificar reações imunes a componentes alimentares, medindo a combinação de reações de anticorpos IgE, IgG (subclasses 1 a 4) contra componentes alimentares.

O que é testado com o teste de reatividade alimentar?

O FRT detecta uma combinação de reações tipo I e tipo III relacionadas à inflamação da mucosa intestinal.

Reação Tipo I

Caracterizada pela reação de IgE. A resposta é rápida, ocorrendo em um curto período após a ingestão do alimento (imediata ou em poucas horas).

Reação Tipo III

Caracterizada pelas reações de IgG e IgA (subclasses 1 a 4). A presença de altos níveis de anticorpos indica a formação de complexos imunes que ativam as células de defesa e atraem leucócitos (macrófagos, basófilos e eosinófilos). Uma cascata de reações levando à inflamação começa (5). As reações do tipo III podem se manifestar dias após a ingestão do alimento, em alguns casos sendo difícil identificar a (s) causa (s); chamadas reações tardias.

Uso do teste FRT

Os resultados do Teste De Reatividade Alimentar (FRT) identificam a reatividade imunológica contra componentes alimentares. Bem como resultados que podem indicar a necessidade de uma mudança na dieta.

Como os CCDs (Determinantes de Carboidratos Reativos Cruzados) interferem nos testes de alimentos?

Os CCDs são estruturas de carboidratos em grãos e vegetais que podem provocar reações imunes em pets (6). CCDs estão presentes na maioria dos alimentos que contenham grãos e alguns tipos de vegetais como ervilha, batata doce, batata inglesa, cenoura, etc. Eles afetam a mediação das reações imunes humorais. Estudos demonstram a presença de anticorpos anti-CCD em alimentos (7).

Em cães, observa-se que 60-75% dos pacientes apresentam reações do CCD contra grãos e alguns vegetais. As reações do CCD devem ser bloqueadas antes do teste para obter resultados precisos (8).

As Reações dos CCDs podem ser controladas?

Sim, as reações anti-CCD são controladas no FRT.  Os benefícios do teste FRT HESKA é identificar reações específicas a determinados tipos de alérgenos, através de um reagente de bloqueio de leitura anti-CCD. A ilustração (esquerda) mostra a reação específica depois dos anticorpos CCD serem bloqueados.

Se as reações anti-CCD não forem bloqueadas, as reações falso-positivas serão mensuradas. O teste FRT usa um bloqueador específico do próprio CCD.

Quando a melhora do paciente pode ser esperada?

Os sintomas dermatológicos melhoram dentro de 10 a 12 semanas após o início da dieta caseira ou da dieta comercial com restrições. Também, durante a tentativa da dieta hipoalergênica não devem ser fornecidos ao pet medicamentos aromatizados, suplementos nutricionais ou guloseimas mastigáveis. Lembrando que laticínios são os alérgenos alimentares mais comuns em cães.

Imagens fornecidas pelo Departamento Técnico HESKA 29/04/2020

Outros alérgenos alimentares comuns incluem carne de frango, ovos, soja, milho e trigo. A mucosa intestinal tem uma alta capacidade regenerativa. Danos extensos à mucosa intestinal no intestino canino após 24 horas poderiam iniciar um processo de recuperação e preservação, podendo funcionar em 3 a 7 dias no jejuno e 7 a 14 dias no íleo, enquanto a recuperação morfológica leva cerca de 28 dias (9,10).

Baseado em resultados do FRT, os primeiros sinais de melhora devem ser percebidos dentro de 2 a 4 semanas após a mudança da dieta. É recomendado manter o paciente por pelo menos um mês na nova dieta para permitir que a mucosa intestinal recupere completamente sua estrutura e função. Depois, é possível começar a introduzir progressivamente outros componentes alimentares se necessário, para encontrar uma dieta adequada em longo prazo e eficaz para o paciente.

Painel do teste de reatividade alimentar HESKA

O FRT testa as reações para 12 componentes de alimentos para animais e 12 para grãos e vegetais.

Referencias bibliográficas:

1. Adverse reactions to food: a gastroenterologist’s perspective. Gianella P. Veterinary Allergy, 1st ed. 2014 John Wiley & Sons, Ltd. Ch 17, 115-118.

2.Cutaneous manifestations of food hypersensitivity. Carlotti D.N. Veterinary Allergy, 1st ed. 2014 John Wiley & Sons, Ltd. Ch 16, 108-114.

3.Prevalence of adverse food reactions in 130 dogs in Italy with dermatological signs: a retrospective study. Proverbio D. et al. Journal of Small Animal Practice 2010; 51: 370-374.

4.A prospective study on canine atopic dermatitis and food-induced allergic dermatitis in Switzerland. Picco F. et al. Veterinary Dermatology 2008; 19: 150-155.

5.Feline Allergy; pathogenesis-immunopathogenesis. Veterinary Allergy, 1st ed. 2014 John Wiley & Sons, Ltd. Ch 31, 205-210.

6.Human IgE Antibodies Against Cross-Reactive Carbohydrate Determinants. Hemmer W. P. Kosma and S. Mueller-Loennies (eds.), Anticarbohydrate Antibodies, DOI 10.1007/978-3-7091-0870-3_8, Springer-Verlag/Wien 2012.

7.Carrot allergy: double-blinded, placebo-controlled food challenge and identification of allergens. Ballmer-Weber BK et al.  J Allergy Clin Immunol 2001; 108:301–307.

8.IgE cross-reactivity between corn and potatoes in dogs is mediated by classic cross-reactive carbohydrate determinants. Olivry T et al.  30th European Veterinary Dermatology Congress. Sort communication. P 148.

9.Mucosal damage and recovery of the intestine after prolonged preservation and transplantation in dogs. Takeyoshi I. et al. Transplantation 2001; 71(1): 1-7.

10. Canine Atopic Dermatitis Extent and Severity Index, OLIVRY, T et al. Veterinary Dermatology, 2007 ITFAD.

M.V. Leticia Ghilardi

CRMV SP 12781 Formada no Centro Regional Universitário Espírito Santo do Pinhal – CREUPI. Graduação Lato Sensu – Nutrologia em cães e gatos - Centro Universitário UNINGÁ- SP, com carga horária cumprida de 120 horas. -8th World Congresso f Veterinary Dermatology – realizado em 2016 / Bourdeux – França. Responsável Técnica Clínica Veterinária de Pequenos Animais na Empresa Animal Center- Norte Sul, desde 2000.

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