Importância de se manter o felino livre do tédio

POR SAMIA MALAS

Foto: Pascal Schmidt e ewastudio/IstockPhoto

Importância de se manter o felino livre do tédio

Felinos selvagens podem ensinar muito sobre o gato doméstico, portanto, esse paralelo entre o comportamento deles ajuda a entender mais sobre enriquecimento ambiental

Todos nós sabemos que o ser humano é mais um primata, que o cachorro é o mesmo que um lobo modificado e que o gato é um felino parente de tigres e leões. Sabemos, mas nos esquecemos desses fatos tendendo a deixar de lado o parentesco dessas três espécies, o que é no mínimo ingênuo principalmente quando o assunto é comportamento. Sim, humanos, cães e gatos têm parentesco com animais selvagens e isso ajuda a entender um pouco o porquê de cada uma dessas espécies fazer o que faz. E esse fato pode nos ajudar a entender o comportamento do gato doméstico.

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Devido a problemas relacionados com segurança e saúde, entre outros, muitos gatos de companhia são mantidos indefinidamente dentro da residência de seus tutores.  Desde moradas grandes com quintal até apartamentos bem pequenos abrigam esses animais, o que certamente não se pode considerar como o ambiente mais natural para a espécie. Vale lembrar que o gato doméstico ainda se encontra, na maioria dos indivíduos, em fase de domesticação. Na vida silvestre, a espécie Felis lybica, o gato-selvagem-africano, da qual derivam as variedades domésticas atuais, cobre grandes distâncias diariamente como seu modo de vida corriqueiro. Mas, talvez, mais significativo que o tamanho do espaço onde são mantidos seja a falta de estímulos intelectuais a que normalmente são submetidos. Na vida selvagem há uma constância de estímulos físicos e sociais que normalmente está ausente na casa do tutor, especialmente hoje quando as pessoas passam o dia inteiro fora e chegam cansadas, pouco inclinadas a interações de qualidade com seu companheiro felino.

Guardadas as proporções, é uma situação semelhante à que são submetidos os felinos selvagens mantidos em cativeiro nos zoológicos. Entre as motivações para se manter esses animais em recintos está a tentativa de preservação das espécies ameaçadas de extinçã, como promover a reprodução em cativeiro. Desse modo, demandas ligadas a essa questão são muito importantes. Um dos pilares da reprodução em cativeiro é a saúde mental dos indivíduos. E tal saúde pode estar seriamente comprometida devido ao estresse. É natural que isso ocorra, já que animais que normalmente estariam patrulhando imensos territórios são agora obrigados a confinamentos em exíguos compartimentos. O estresse pode ser facilmente notado por comportamentos repetitivos e obsessivos como o “pacing” (quando o animal fica constantemente andando o mesmo caminho dentro do recinto, durante um longo tempo) ou, ao contrário, por longuíssimos períodos de repouso ou reclusão. Outro indicativo de estresse é a falta de comportamentos naturais, como os de autocuidado, que pode levar a uma condição degradada da aparência externa do animal. E, igualmente, condições clínicas como a baixa imunidade, indicam esse estado de estresse, geralmente concomitantes a um aumento de corticosteroides no organismo, uma medição preciosa para a avaliação do animal.

E qual é um motivador desse estresse? O tédio. Sim, animais inteligentes subtraídos de estímulos sensoriais e sociais comuns tendem a se colocar em um estado emocional que para os seres humanos é conhecido como tédio.

O   tédio é combatido no ambiente do  zoo
Não é de se espantar, então, que animais de zoológico possam apresentar comportamentos indicativos de tédio levando, consequentemente, ao estresse já que as condições de seu cativeiro são completamente diferentes do meio natural. Mas não é imitando a Natureza que se tem enfrentado esse problema, ou seja, não é tentando transformar os recintos em lugares mais semelhantes a onde cada espécie é natural. Não. Inclusive porque seria impossível. Especialmente no caso dos felinos, já que, entre outras características, são animais que percorrem longuíssimas distâncias na Natureza e isso seria impraticável de se reproduzir. Ao invés disso, busca-se aumentar o número e a variedade de estímulos disponíveis aos animais. Ao conjunto desses estímulos dá-se o nome de “Enriquecimento Ambiental”. Ao tratar do enriquecimento ambiental são oferecidos, entre outros, uma maior quantidade de estímulos sensoriais e, também, sociais.

Estímulos sensoriais

A variação de estímulos sensoriais utilizada para reduzir o tédio de animais cativos é grande. Desde a mudança de tipos de piso onde o animal caminha (emborrachado, grama artificial, areia, pedriscos, etc.) até de odores (com tecidos, entre outros meios, impregnados com o cheiro de outros animais selvagens, inclusive com sua urina, de outros animais da mesma espécie e, até, de perfumes usados por humanos), passando pela introdução de plantas e móveis que são alterados ao longo do tempo.

Também é comum o uso da apresentação do alimento de forma e conteúdo variados. Sempre levando em conta as necessidades nutricionais de cada espécie, são oferecidas variações como partes sortidas de frango, gado e porco para animais carnívoros como os felinos. Tais variações incluem até o oferecimento do alimento ainda com penas ou pelos e ossos, além de outras partes e órgãos. Em bem poucos zoológicos pelo mundo é oferecido alimento vivo, prática esta com resultados excelentes para os felinos, mas com restrições morais e/ou legais em vários países.

Também ligado à alimentação, há ainda o oferecimento de porções em forma inusitada como o picolé de carne onde a proteína é oferecida congelada. Mesmo a disponibilidade da alimentação pode variar. Ao invés de sempre oferecer o alimento em seus receptáculos habituais, os comedouros, às vezes pode ser vantajoso o animal se esforçar para alcança-lo, como quando é colocado em locais mais altos (como em troncos secos existentes no recinto), escondido em locais de acesso mais difícil, além de outras soluções.

Estímulos sociais

Também os estímulos sociais podem ser oferecidos para diminuir o tédio de animais de zoológicos. Trata-se, portanto, de incluir mais animais da mesma espécie no recinto. Ou em recintos contíguos. Claro, isso nem sempre é possível inclusive por questão do espaço mínimo para cada animal, mas também porque nem sempre é fácil achar o indivíduo da espécie e/ou subespécie corretos para a tarefa. No entanto, quando possível, é das mais efetivas medidas para evitar o tédio. Da mesma maneira os felinos tidos como solitários quanto os mais gregários costumam se beneficiar da adição de um ou mais conspecíficos de companhia. Tanto os comportamentos de ligação como os de distanciamento e, ainda, os de fundo sexual, tendem a ter regras estritas de conduta, geralmente complexas e específicas. Lidar com tais regras exige esforço inclusive mental dos animais e isso tende a evitar o tédio. Inclusive quando alguns membros de uma determinada espécie estão há muito tempo juntos em um mesmo espaço de maneira que suas relações estejam completamente estabilizadas e comecem a apresentar sinais de tédio, um ou mais indivíduos são retirados e/ou introduzidos no recinto. Isso reacende a necessidade de reestruturação social. Ainda que possa haver alguma tensão inicial, tal procedimento abala diretamente a pasmaceira reinante.

Tédio no gato doméstico

Sintomas semelhantes aos felinos selvagens mantidos em zoológicos podem ser notados em gatos de companhia quando em situação de tédio. Além de uma visível diminuição de atividade quando o animal está acordado é bastante comum observar alteração na aparência geral do gato quando está entediado. O estresse resultante tende a alterar comportamentos habituais e muito estereotipados como a autolimpeza. O animal pode tanto aumentar muito a frequência e duração desse comportamento durante o dia quanto diminuí-las. Em ambos os casos a pelagem decai notadamente. Também as fases de descanso e vigília podem se alterar bastante, tanto com o gato aumentando ainda mais o tempo que passa dormindo, como ao contrário, passando a dormir muito pouco.

Outros sinais também podem ser notados. Os comportamentos de eliminação podem se modificar, com o animal urinando ou defecando em locais não usuais e também podem ocorrer surtos de coprofagia. A alimentação igualmente pode ser afetada, havendo um exagerado aumento da ingestão ou, ao contrário, uma notável falta de apetite.

Combatendo o tédio do gato

A chave para diminuir ou prevenir o tédio dos gatos de companhia é evitar que o ambiente seja sempre o mesmo. Isso diz respeito ao ambiente físico e também à inter-relação como os outros membros da residência. É importante dizer, no entanto, que os gatos, apesar serem muito sensíveis ao tédio, gostam da rotina. Amam, na verdade. Ou seja, interações rotineiras como os rituais que os tutores dividem com os animais ao se levantar, na chegada à casa e ao irem dormir, quando geralmente há interações com eles, são muito importantes para manter laços e coesão interpessoal. No entanto, todo o período em que os tutores não estão presentes é o problema. Assim, a questão não é somente a repetição, mas quase sempre, num ambiente bastante estático, a ausência da única fonte de variação, os humanos em casa. Então, também aqui, o enriquecimento ambiental pode ajudar.

Interação com o tutor

Quase nunca acontece um problema de tédio com o gato quando o tutor está por presente (ou mais de um tutor). Ao contrário, mesmo não sendo tão incisivamente interativos como os cães, os gatos tendem a ficar por perto, mesmo que menos ativos, de maneira saudável, quando há humanos ao redor. Quando uma pessoa permanece na residência o tempo todo ou há um rodízio entre os moradores humanos, dificilmente aparece o problema. Aliás, não é necessário nem mesmo que os moradores estejam permanentemente presentes. Pequenas ausências, de alguns minutos a poucas horas, não são problemáticas. Mas não é isso o mais comum, não é mesmo? As pessoas, especialmente nas cidades grandes, saem de manhã e retornam apenas no final do dia. Muitas vezes voltam somente tarde da noite. O isolamento por esse longo período ainda pode ser suportado se for alternado por muitos dias em que algum tutor permaneça o dia inteiro em casa. Mas isso também é muito raro, não?

Talvez o fim de semana em casa pudesse compensar, mas não é o caso. O fim de semana em companhia do gato certamente ajuda, mas não resolve. Porque logo serão mais longos cinco ou seis dias seguidos sem ninguém em casa por mais de 10, 12 horas por jornada.

Brinquedos e alimentação

Se o humano não pode estar com seu gato durante longas horas por dia, ainda que esta esteja entre as melhores soluções, algo pode ser feito para ao menos tentar diminuir o tédio e consequentemente o estresse: a introdução de brinquedos e/ou outros objetos. Claro, é muito comum qualquer tutor comprar brinquedos para presentear seu bichano. Mas em geral tais acessórios são colocados na vida do animal de maneira pouco eficiente. Mesmo o mais interessante brinquedo perde o encanto depois de alguns minutos ou, no máximo, algumas horas. Assim como nós, objetos por si só empolgam nos primeiros momentos. Portanto, para que funcione contra o tédio, usar brinquedos precisa de planejamento. Em primeiro lugar, é necessário haver um bom estoque deles e que sejam bem variados, tanto em forma como em tipo de ação. Em segundo lugar, precisam ser oferecidos de maneira organizada. É preferível que o brinquedo seja introduzido quando o humano esteja saindo de casa. E precisa ser recolhido logo que volte. O brinquedo em questão deve ser mantido fora de circulação por vários dias. Um brinquedo diferente deve ser oferecido no dia seguinte, e assim sucessivamente como num rodízio. Mais de um brinquedo pode ser oferecido ao mesmo tempo, contanto que haja variação nos dias seguintes. Mesmo com esses cuidados, os brinquedos só funcionam por curto período.

Outra estratégia, não necessariamente excludente, é oferecer o alimento de maneira menos convencional, como colocá-lo em locais variados, de maneira que o felino precise encontrá-lo cada dia em outro lugar. Mesmo que vá contra o conforto da rotina, conforto tanto para o gato quanto para o tutor, depois que ele entender que precisa procurar o alimento, o tédio tende a diminuir.

Ainda na questão do alimento, outra abordagem pode ser a introdução de quebra-cabeças alimentares. Esses equipamentos foram originalmente criados para mitigar problemas de estresse entre animais de zoológicos e daqueles mantidos em laboratórios. Geralmente consistem em um objeto que contenha o alimento e possa ser manipulado para liberá-lo quando o animal o manipule. Podem ser de natureza móvel ou estacionários e podem ser feitos em casa ou comprados.

Um exemplo seria uma garrafa pet pequena tampada, com ração dentro, onde tenha sido feito uma pequena abertura lateral de maneira que quando o gato empurre e role a garrafa, alguns pellets de ração escapem de seu interior, permitindo ao animal se alimentar.

Outros enfoques alimentares podem ser aplicados. O jejum intermitente é um exemplo. Na Natureza os felinos não comem o tempo todo, inclusive porque a taxa de sucesso na caça é geralmente baixa, perto dos 30% em média. Ou seja, somente uma terça parte das caçadas é bem-sucedida. Isso significa que o jejum é um fato natural entre esses animais. E isso é reproduzido com os felinos selvagens no zoológico. Entre diversos benefícios, inclusive evitando ingestão excessiva. Outro benefício é um aumento do nível de atividade geral dos animais. Ainda que uma estratégia seja descansar para evitar gastar energia, é também de se esperar que ocorra o aumento de atividade já que na Natureza animais muito parados, especialmente os predadores, têm muito menor chance de encontrar presas.  Ou seja, quando não conseguem sucesso na caçada, uma estratégia é descansar, mas depois é necessário se movimentar mais. Nos zoos esse efeito tende a combater o tédio e, portanto, o estresse.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao nosso melhor amigo. Os gatos de companhia com jejum intermitente também colhem os mesmos benefícios que seus primos selvagens. Maior atividade geral, mais curiosidade na busca de alguma “presa”, mais interatividade com brinquedos e outros objetos, maior interação com outro gato em casa.  Claro que o gato doméstico tem necessidades específicas na sua nutrição, especialmente quanto à quantidade. Ao aplicar o jejum intermitente aos gatos, a quantidade de alimento oferecida pode diminuir abaixo do ideal, mas isso pode ser compensado em refeições posteriores. O importante aqui é que o gato fique algum tempo sem ter o alimento disponível ilimitadamente.

Outro gato

Talvez a melhor solução para os problemas de estresse provocados pelo tédio em gatos solitários em residências seja a introdução de um segundo gato. A interação entre eles é constante. Mesmo quando estão inativos, inclusive enquanto dormem, o fato de haver outro gato por perto parece produzir uma visível mudança de humor. Claro, nem sempre é fácil essa introdução, especialmente se o novato for um filhote. Pode muito bem haver bastante tensão na casa até uma estabilização da convivência. Mas vale à pena. Aliás, até mesmo essa tensão inicial é bem-vinda para um gato entediado. A sua vida agora apresenta problemas reais de territorialidade e uso dos “recursos” disponíveis na residência, entre eles até mesmo a atenção dos humanos. E tais problemas exigem soluções, uma oportunidade para o gato utilizar seus expedientes intelectuais. Se os gatos tiverem sido castrados, especialmente antes de atingirem a idade adulta, terão mantidos parte dos comportamentos de play tão comuns nos filhotes. E os mantêm indefinidamente. Assim, mesmo com tensão inicial esvanecida, a interação intensa entre os felinos se manterá. E geralmente será uma interação benigna e benéfica.

Assim, resumindo, não somente é importante evitar ou diminuir o tédio do gato de companhia como é possível fazê-lo de maneira relativamente simples. Quando uma maior interação com o tutor é mais difícil de conseguir, pode-se usar brinquedos e outros objetos para ajudar a estimulá-lo, empregar recursos alimentares de maneira criativa, inclusive com jejum intermitente e, talvez a melhor solução, adicionar outro gato ao convívio residencial.

Carlos C. Alberts

Professor e pesquisador do Laboratório de Evolução e Etologia (LEvEtho), da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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