Hipertensão arterial sistêmica: doença nem sempre silenciosa

Por Nathália Lopes Fontoura Mateus

Hipertensão arterial sistêmica: Doença nem sempre silenciosa

O diagnóstico de hipertensão na medicina veterinária não é uma tarefa simples; uma grande parcela dos pacientes hipertensos não demonstra sinais clínicos da pressão elevada, nem tão pouco possuem lesões hipertensivas evidentes aos olhos dos tutores. Fica então, a cargo do médico veterinário, um olhar mais atento e criterioso, em busca das evidências de hipertensão arterial sistêmica.

Por definição, um paciente hipertenso seria aquele que apresenta aumento persistente e patológico da pressão arterial sistólica (PAS). Contudo, diversas variáveis inerentes ao ambiente veterinário podem funcionar como fatores estressantes, tais como transporte do paciente, odores de outros cães ou gatos, bem como sons que não fazem parte da rotina do pet.

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Assim como já descrito na medicina, os cães e gatos também podem sofrer a chamada síndrome do jaleco branco, caracterizada por elevação transitória da pressão arterial sistólica devido aos efeitos adrenérgicos promovidos durante um evento estressante ou que provoque ansiedade no paciente.

Diante desta situação, podemos utilizar de alguns artifícios na rotina da clínica veterinária, visando reduzir a influência do estresse na mensuração da pressão arterial. A acomodação do animal em um ambiente tranquilo é fundamental, sendo necessário que o paciente seja previamente aclimatado no local durante 5-10 minutos, antes das mensurações e, que o pet seja contido de maneira gentil, preferencialmente, por seu tutor. O uso de feromônio sintético facial felino também já foi recomendado com intuito de tornar o ambiente mais agradável para os gatos.

Figura 1. Mensuração de pressão arterial sistólica pelo método Doppler – Foto: Arquivo pessoal

Concluir um diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS) requer paciência e repetibilidade. Muito mais do que valores numéricos elevados, indicativos de hipertensão (PAS >140 mmHg), é preciso ter certeza que o aumento é persistente e ocorre mesmo em ambientes calmos ou familiares ao paciente, como por exemplo, a mensuração da PAS em domicílio. Contudo, deve-se ressaltar que mesmo o ambiente domiciliar está sujeito a influência de fatores estressantes, como a presença do médico veterinário e a manipulação do membro/cauda do paciente (Figura 1).

Portanto, faz-se necessário um somatório de evidências favoráveis ao diagnóstico de HAS, as quais somente estarão visíveis aos olhos dos que sabem o que procuram, uma vez que a HAS, em si, não possui sinais clínicos nítidos na espécie canina e felina.

Diferente dos seres humanos, nos quais, dores de cabeça, tontura e zumbido são relatados como manifestações clínicas da HAS; nos cães e gatos é necessário saber reconhecer as lesões em órgãos alvos (LOA) para um diagnóstico mais acurado de HAS. Os órgãos que sofrem repercussão das lesões hipertensivas são: rins, olhos, cérebro, coração e vasos sanguíneos. É importante ressaltar que muitas destas alterações são subclínicas, destacando a importância da colaboração do tutor em aceitar a realização de exames complementares, como ecocardiograma, urinálise e exame de fundo de olho para identificação de LOA.

Os olhos poderiam ser considerados sentinelas da hipertensão arterial sistêmica, visto que lesões oculares hipertensivas podem aparecer mesmo com pequeno incremento da PAS. As retinopatias e coroidopatias hipertensivas já foram relatadas em pacientes com pressão arterial sistólica discretamente aumentada (168 mmHg), havendo maior risco de lesão, quanto maior for o aumento da PAS.

Desta forma, pacientes hipertensos podem ser classificados conforme o valor da pressão arterial sistólica em: em pré-hipertensos (risco mínimo de LOA; PAS: 140-159 mmHg); hipertensos (risco moderado de LOA; PAS: 160-179 mmHg) e severamente hipertensos (risco alto de LOA; PAS: > 180 mmHg).

É necessário enfatizar que poucas alterações oculares serão perceptíveis para o tutor, podendo ser citado o hifema e a cegueira súbita como razões para busca de atendimento veterinário. Contudo, outros sinais clínicos oculares, tais como: tortuosidade de vasos retinianos, edema de retina e hemorragia retiniana (Figura 2A e B); apenas serão observados, caso o paciente seja encaminhado para uma avaliação de fundo de olho, evidenciando a necessidade do trabalho em equipe nas duas especialidades.

Desta maneira, apesar do animal hipertenso ser muitas vezes encaminhado ao atendimento especializado em cardiologia para tratamento desta condição (HAS); em realidade, as emergências hipertensivas serão, em sua grande maioria, detectadas e tratadas durante o atendimento oftalmológico ou no atendimento emergencial durante manifestações neurológicas da crise hipertensiva.

Figura 2. Retinopatia hipertensiva em cão. (A) Extensa hemorragia em área tapetal do fundo ocular (asterisco). Presença de descolamento de retina parcial em área não tapetal do fundo ocular (seta). (B) Pequenas áreas hemorrágicas adjacentes a vasos retinianos (seta preta). Tortuosidade de vasos retinianos (seta branca). – Fonte: Queiroz et al., 2015

As encefalopatias hipertensivas podem causar sinais clínicos como: convulsão, letargia, desorientação, nistagmo, head tilt, alteração de estado mental, alterações comportamentais e outras. Todavia, estes são sinais clínicos que, equivocadamente, podem passar despercebidos como indícios de hipertensão e, consequentemente, atrasar o diagnóstico da HAS. Isto posto, destaca-se a importância da mensuração da pressão arterial em pacientes com apresentação de quadro clínico neurológico.

Por outro lado, durante os atendimentos clínicos de rotina, pacientes que apresentem valores elevados de pressão arterial sistólica, na ausência de lesões em órgãos alvo detectáveis ao exame físico habitual, não serão imediatamente diagnosticados ou tratados para HAS. Recomenda-se que estes animais tenham a PAS reavaliada e que se inicie a busca por LOA e por patologias que possam ser as responsáveis pela manifestação de hipertensão; a fim de reunir indícios de que o paciente seja um verdadeiro hipertenso e que a terapia anti-hipertensiva se faz necessária.

Os rins representam um importante órgão alvo das lesões hipertensivas; havendo muitas vezes, dificuldade em diferenciar se a HAS trata-se de um sinal clínico ou fator causador da doença renal. Alterações renais devem ser investigadas não só por meio da elevação de níveis séricos de ureia e creatinina, mas também pela presença de proteinúria, sendo a relação proteína:creatinina urinária um importante marcador de lesão hipertensiva, associado também à progressão da lesão renal e mortalidade em decorrência dela.

Enfermidades causadoras de injúria renal são frequentes na rotina de atendimento veterinário, dentre as quais podemos destacar a leishmaniose visceral e erliquiose canina e, nos gatos, a leucemia e imunodeficiência felina; além de outras patologias que levam a formação de imunocomplexos. No entanto, apesar de serem diagnósticos rotineiros que levam a preocupação com azotemia; por vezes,  o monitoramento da pressão arterial destes pacientes, infelizmente, não é realizado.

Por fim, a HAS também pode ser responsável por alterações cardiovasculares. O aumento da resistência vascular periférica, associada ao aumento da pós carga, gera esforço muscular cardíaco, o qual se manifesta na forma de hipertrofia concêntrica ventricular esquerda. Este remodelamento concêntrico não pode ser visualizado em exames radiográficos do tórax; assim sendo, o ecodopplercardiograma faz-se essencial na busca de LOA, além de agregar informações a respeito do comprometimento da função diastólica do órgão. Ao exame físico do paciente com lesão cardiovascular hipertensiva, nem sempre haverá alteração a ausculta, porém, sopros sistólicos ou ritmo de galope podem ser percebidos.

Se por um lado, os sinais de hipertensão arterial sistêmica são muitas vezes imperceptíveis ao exame físico; por outro as manifestações clínicas das doenças causadoras de hipertensão arterial secundária são evidentes aos tutores e médicos veterinários.

Dentre as principais causas de HAS secundária em cães e gatos está a doença renal crônica, caracterizada por manifestações clínicas de poliúria e polidipsia, bem como pelas manifestações de uremia: hiporexia, apatia, náusea, vômito e diarreia.

Endocrinopatias podem ser responsáveis por elevação da pressão arterial sistólica nas espécies canina e felina. Dentre os cães, destaca-se o hiperadrenocorticismo como causa corriqueira de HAS; sendo os sinais clínicos mais comuns: polifagia, poliúria, polidipsia, ofegação, distensão abdominal, alopecia, hepatomegalia e fraqueza muscular, além da marcada elevação de fosfatase alcalina na avaliação bioquímica, linfopenia e neutrofilia no leucograma.

Na espécie felina, o hipertireoidismo aparece como principal doença endócrina causadora da HAS secundária. Nesta enfermidade, o diagnóstico precoce pode ser difícil, uma vez que o aumento do apetite e a agitação do felino podem ser interpretados erroneamente como sinais de boa saúde pelo tutor, atrasando a investigação diagnóstica. Por isso, recomenda-se como parte dos exames de rotina de avaliação do gato idoso, a inclusão da dosagem sérica de hormônio tireoidiano (T4 total ou T4 total associado a T4 livre por diálise de equilíbrio). Já em estágios mais avançados do hipertireoidismo felino, sinais clínicos como perda peso, vômito, diarreia, taquipneia e pelos eriçados são geralmente notados pelo tutor e o fazem buscar auxílio veterinário.

Outras endocrinopatias de menor ocorrência também são relatadas como causas de HAS, são elas: hiperaldosteronismo e feocromocitoma. Por outro lado, a diabetes mellitus, apesar de não ser incomum em cães e gatos, não costuma causar elevação da pressão arterial sistêmica com tanta frequência, sobretudo na espécie felina.

Diante do exposto, nota-se que apesar da dificuldade no diagnóstico clínico de hipertensão arterial sistêmica, a associação da busca por LOA e por doenças sistêmicas causadoras de elevação da pressão arterial sistólica promovem um diagnóstico mais preciso de hipertensão arterial sistêmica secundária.

Em contrapartida, o diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica idiopática pode ser ainda mais desafiador na medicina veterinária. Trata-se de um diagnóstico de exclusão que requer associação de testes diagnósticos dispendiosos, e de difícil acesso em algumas regiões do país. Além disso, a HAS pode ser uma manifestação subclínica da doença renal, dificultando ainda mais a distinção entre hipertensão arterial primária e secundária na veterinária.

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Nathália Lopes Fontoura Mateus

Graduada em Medicina Veterinária (UFMS- 2014) Mestre em Ciências Veterinárias (UFMS- 2018) Pós-graduada em Cardiologia Veterinária (Qualittas – 2019) Doutoranda em Ciências Veterinárias (UFMS- em andamento) Pós-graduanda em Pneumologia Veterinária (Qualittas- em andamento) Sócia-proprietária do consultório de especialidades veterinárias Vet Experts Atendimento especializado em Cardiologia Veterinária de cães e gatos (volante) em Campo Grande e Dourados/MS Professora de clínica médica e terapêutica de pequenos animais (Centro Universitário da Grande Dourados) Preceptora do Programa de Aprimoramento em Clínica Médica de Pequenos Animais (UNIGRAN)

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