Slow Vet Medicine, por que não?

Por Profª Drª Janis R M Gonzalez

Slow Vet Medicine, por que não?

Em 1986, na Piazza de Spagna, em Roma, houve uma manifestação liderada pelo jornalista e ativista Carlo Petrini, contra a abertura de um restaurante fast food naquele local, que afrontava a cultura culinária e gastronômica italiana, que é baseada em alimentos tradicionais e na convivência entre as pessoas desde o preparo dos alimentos no campo até seu consumo ao redor da mesa. Esta mobilização foi a origem do movimento Slow Food, hoje presente em mais de 160 países, que tem como lema um alimento “bom, limpo e justo” valorizando o produtor local, a gastronomia e a tradição alimentar. Em 2002, o cardiologista italiano Alberto Dolara escreveu um editorial para a revista de medicina Italian Heart Journal, hoje descontinuada {PAYWALL_INICIO}. O artigo chamava-se “Um invito ad una slow medicine” – Um convite a Slow Medicine, e nele desenvolvia a interessante ideia de que os princípios da slow food também poderiam ser aplicados na prática médica. No Brasil, sua filosofia chegou pelo Dr Marco Bobbio, autor do livro “O Doente Imaginado”, em 2015 em uma visita como conferencista e  foi batizada como Medicina Sem Pressa, ou simplesmente Slow Medicine como é conhecida no mundo todo. Ali também, iniciava o incrível movimento “Choosing Wisely” (Escolha Sábia),  um vibrante  tópico  para um outro momento. A Slow Medicine, o movimento Choosing Wisely e a Medicina Baseada em Evidências carregam a esperança e os rumos da melhora na prática médica mundial.

A prática médica atual tem se caracterizado pela falta de tempo: consultas rápidas, profissionais apressados, médicos desconhecidos frente a pacientes anônimos. A filosofia da slow medicine caminha na direção contrária: resgata o tempo como parte essencial da abordagem médica, enfatizando o raciocínio clínico planejado e o cuidado focado no paciente, não na doença. A Slow Medicine tem como pilares: tempo de atendimento; relação médico-paciente, compartilhamento de decisões e uso parcimonioso da tecnologia médica. Ela tem como referencial teórico a medicina baseada em evidências, porém, mantem um olhar respeitoso e colaborativo com outros saberes, chamados de integrativos ou complementares.

O uso inapropriado de tecnologias, como exames de imagem excessivos e desnecessários, procedimentos caros e invasivos empregados de forma indiscriminada sem o suporte de um plano diagnóstico elaborado, tem tomado a frente do raciocínio clínico.  Este tipo de medicina defensiva dá origem a exames minuciosos para descobrir problemas menores ou que já estavam evidentes em exames mais simples e menos dispendiosos”. Atualmente, é assim que vejo o exercício da medicina veterinária clínica, um emaranhado de exames laboratoriais e de imagem onde o clínico se debate como num labirinto do qual a saída é o sonhado diagnóstico, a resposta final desejada,  o qual ele acredita que irá ser revelado por algum destes mágicos recursos. Muitos colegas, nesta expedição pouco planejada em busca de um diagnóstico, não consideram o aspecto invasivo e não livre de riscos de algumas técnicas e o extinguir dos recursos financeiros do tutor.

Após 30 anos no ensino superior e na formação de alunos e residentes, já não encontro vestígios do que um dia era ensinado como propedêutica clínica: perfil do paciente, anamnese detalhada, exame clinico, lista de hipóteses e seleção de exames com o objetivo de incluir ou refutar diagnósticos. Atualmente tudo é processado de forma desorganizada, sem anotações lógicas apontando prioridades e achados relevantes e com muita pressa, residentes chegam agitados ao serviço de imagem escolhendo em qual aparelho irão repousar a esperança de um (sim, sempre buscam um diagnóstico que a tudo explique) rápido diagnóstico. Adoro repetir a frase da Drª Audrey Cook (Texas A&M) em 2018: “exames fornecem resultados, não respostas“.

O emprego excessivo de exames laboratoriais, exame de imagem, procedimentos diagnósticos caros e invasivos e procedimentos terapêuticos que podem causar mais danos do que a própria doença, preconizados a pacientes em fim de vida (chamados de medidas fúteis) são comumente vistos na prática veterinária. Alguns colegas, assim como médicos, prometem resultados que não podem entregar, vendem esperança prejudicando o paciente e seu tutor ou familiares. Outro dia, presenciei um colega recomendando tomografia abdominal para uma paciente caquética com câncer de mama e um incontável número de nódulos pulmonares e me lembrei do instigante título de uma palestra sobre limites éticos da oncologia veterinária que assisti nos EUA: “Não é porque posso, que eu devo”, se referindo a realização não justificável de procedimentos invasivos e terapias heroicas  em oncologia.

Sinto um mal-estar melancólico e saudosista ao recordar a época e meus estudos de graduação, há 34 anos, quando frente a escassez de recursos tecnológicos tínhamos que extrair o máximo daquele instrumento de aproximadamente 1,300g que mora entre nossas orelhas. Hoje vejo residentes se debatendo entre resultados e exames, pensando na próxima bala mágica que irão usar para atingir o diagnóstico e sorrateiramente abro o prontuário e vejo que ali não há dados organizados ou listas de prioridades a serem investigadas, os resultados são grampeados sem qualquer cronologia. Tenho um mantra o qual  repito diariamente ao entrar no serviço de imagem do HV-UEL. “Qual a reposta mais difícil de se obter de um residente ou pós-graduando?: “O que o paciente tem! Quando faço esta pergunta as respostas são resultados de exames. O raciocínio não mais se inicia com o histórico e sinais clínicos.  E nem pergunto o nome do paciente…seria demais!

Disse o Dr. Bernard Lown: “Em minha opinião, a maioria dos erros se deve a médicos bem treinados que não se dedicam à coleta de dados para a história médica, esbaldam-se em delirante tecnologia e dessa forma prejudicam muito mais pacientes do que os incompetentes”.

Muitos métodos já foram criados para melhorar o raciocínio clinico, reduzir vieses, melhorar a organização de dados clínicos segundo a relevância e prioridades, listar suspeitas e selecionar exames de forma lógica, melhorar a busca de informações na literatura, capacitação para leitura criteriosa de artigos científicos, etc.  Desde a Segunda Grande Guerra e mesmo antes, já haviam regras mnemônicas para diagnósticos diferenciais, métodos como o SOAP (sistema médico orientado para o problema), o acrônimo DAMN IT, e ensino por PBL.. e até o mais simples de todos, o meu favorito, trazido das técnicas militares americanas para a medicina: o acrônimo STOP (Stop, Think, Observe and Plan). Tudo isto e muitos outros, visando proteger o paciente e facilitar nosso trabalho. A grande inimiga da medicina moderna é a PRESSA, que nos impede de pensar com calma e ponderação. Faz-se uma medicina focada na doença e não no paciente, queremos diagnosticar a doença e tratar a doença e nos esquecemos da complexidade do paciente. Nossas aulas de graduação são voltadas para a doença, não para os doentes. Os programas de graduação não têm horas disponíveis para o exercício do raciocínio clínico e os jovens não são treinados para pensar e solucionar problemas durante a formação básica.

Para que eu não pareça crítica demais com os colegas clínicos, os radiologistas (ou imaginologistas) também padecem sob a tirania da pressa. Imagens lidas em segundos nas telas de smartphones, imagens radiográficas sofrendo a tortura do inquieto mouse que de forma descontrolada submete a imagem a ampliações, mudanças frenéticas no aspecto da imagem que impossibilitam qualquer qualidade minuciosa de interpretação. Diariamente eu desafio meus residentes a interpretar uma radiografia sem tocar no mouse. Parece impossível. E as mensurações? A cada novo artigo uma nova medida, um novo valor de corte, mais uma fatia de nosso raciocínio se perde a cada nova medida “de corte”…tamanho, espessura, índice resistivo,  velocidade de fluxo, VHS, LAS, índice de distração, DBP, e dezenas de outras mensurações e índices … qual era mesmo a queixa do Scooby?

O que foi feito da leitura subjetiva e metodicada imagem? Da interpretação semiológica dos achados radiográficos e ultrassonográficos? Estão até desenvolvendo uma inteligência artificial para ajudar radiologistas. Quase me sinto ofendida. A pressa para atender, examinar, laudar, interpretar, diagnosticar, tratar e determinar o desfecho é, a meu ver, uma inimiga a ser combatida. Vejo colegas apressarem tutores para decidirem logo entre o tratamento sugerido ou a eutanásia. Que os paliativistas tragam calma a esta geração de colegas aflitos.

Enfim, a Slow Medicine pode carregar em sua filosofia o tratamento para a pressa que tanto compromete nosso bom julgamento e a qualidade da medicina ofertada a nossos pacientes. Os princípios da Slow Medicine são:

1- Tempo: para ouvir, refletir, consultar e tomar decisões sem pressa.

2- Individualização: cuidado particularizado àquele paciente, o paciente e a família (tutor) são os focos da atenção.

3- Autonomia: decisões devem ser cuidadosamente compartilhadas com o tutor, custos do tratamento e decisões difíceis acerca da gravidade e desfecho.

4- Conceito Positivo de Saúde: o foco é a ênfase na saúde e bem-estar geral, e não na doença e abrange cuidados gerais de saúde, prevenção de doenças, manutenção da qualidade de vida e acesso aos cuidados.

5- Prevenção: alimentação saudável, exercícios físicos, bem-estar e ambiente adequado

6- Qualidade de vida: deve ser preservada sobre intervenções a qualquer preço, aceitando o inevitável e evitando exames caros e procedimentos dolorosos e fúteis frente a desfechos já entendidos como desfavoráveis. Fazer mais, nem sempre significa fazer melhor.

7- Medicina Integrativa: o melhor de dois mundos – a medicina tradicional sempre que indicada e a medicina complementar, se possível, de preferência, baseada em evidências.

8- Segurança em primeiro lugar: como disse Hipócrates Primun non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir.

9- Paixão e compaixão: resgatar a paixão pelo cuidar e o sentimento de compaixão na atenção médica. Buscar incansavelmente a humanização nos cuidados à saúde.

10- A tecnologia deve servir ao Homem: as novas tecnologias devem cumprir seus objetivos de auxiliar o paciente e auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente.

Todos estes princípios podem ser facilmente empregados na medicina veterinária, almejando a competência, compaixão e cortesia no exercício da profissão. Convido a darmos boas vindas a uma medicina veterinária sem pressa!

Profª Drª Janis R M Gonzalez

Diagnóstico por imagem Departamento de Clínicas Veterinárias Universidade Estadual de Londrina [email protected]

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