Eletroquimioterapia na Medicina Veterinária

Por Paula Gazé Holguin

Eletroquimioterapia na Medicina Veterinária

Introdução

A eletroquimioterapia é uma modalidade de tratamento oncológico onde através da administração de pulsos elétricos e aplicação de quimioterápicos antineoplásicos, criam-se poros reversíveis e transitórios na membrana plasmática celular, permitindo a entrada desses fármacos dentro das células e potencializando a ação citotóxica dos mesmos. (1,2,3) Dessa forma, induz-se a morte celular por apoptose tumoral e, consequentemente, um maior controle local da doença e aumento da sobrevida dos pacientes. (4,3)

Muitos estudos têm sido publicados e demonstram a eficácia da eletroquimioterapia em tratar tumores cutâneos e superficiais como carcinoma epidermóide, melanoma, plasmocitoma, mastocitoma, sarcoma, TVT e adenomas hepatóides. (5,6,7,8,9)

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Aspectos técnicos da Eletroquimioterapia

A eletroquimioterapia consiste na combinação entre dois processos: a eletroporação e a aplicação de quimioterapia.

Eletroporação é o mecanismo que consiste na aplicação de pulsos elétricos curtos e de alta intensidade que promovem um aumento da permeabilidade das membranas plasmáticas das células. Esse aumento transitório da permeabilidade permite o livre trânsito de moléculas, íons e água entre os dois lados da membrana celular. (2,3,10)

A membrana plasmática da célula é uma estrutura que separa o meio intracelular do meio externo. Ela é constituída por uma bicamada de fosfolipídios e proteínas. Os fosfolipídios possuem uma parte hidrofílica denominada cabeça, ligada a duas caudas hidrofóbicas (figura 1). Essa estrutura da membrana celular atua como barreira fortemente impermeável à penetração de moléculas exógenas no citoplasma, principalmente as não lipídicas. Apenas um limitado número de compostos pode entrar na célula. (2,4,11)

Figura 1: Camada dupla de fosfolipídios com a cauda hidrofóbica e a cabeça hidrofilica Fonte: commons.wikimedia.org/wiki/File:0302_Phospholipid_Bilayer.jpg

Quando as células são expostas a campos elétricos permeabilizantes ocorre um rearranjo das moléculas de fosfolipídios permitindo a formação de pseudotúneistransitórios (figura 2) por onde vão passar substâncias hidrofílicas, como os quimioterápicos, que em situações normais não atravessariam a membrana plasmática. (figura 3) (4,10)

Figura 2: Rearranjo dos fosfolipídios formando poros que facilitam a penetração de substâncias hidrofílicas.
Fonte: en.wikipedia.org/wiki/Electroporation
Figura 3: Após a administração dos pulsos elétricos o medicamento consegue atravessar a membrana plasmática e atingir uma maior concentração intracelular.
Fonte: www.bioelectrochemical-soc.org

A técnica de eletroquimioterapia consiste na aplicação de pulsos elétricos com intensidade variando entre 1000 V/cm e 1500 V/cm, que duram 100 microsegundos. O número de pulsos aplicados costuma ser oito numa frequência de 1 HZ. (7,8)

Modelos de Aparelho de Eletroquimioterapia

Existem vários modelos de aparelho utilizados no Brasil e no mundo (figura 4, 5 e 7). O aparelho de uma forma geral consiste em um gerador de pulsos e vários tipos de eletrodos que serão aplicadas ao tecido tumoral. Os tipos de eletrodos mais comuns são agulhas e placas (figura 6)

Figura 4: Eletroporador Crown Modelo BK 100 -Cromatica LTDA. São Paulo Fonte: Paula Gaze Holguin
Figura 5 Modelo Onkodisruptor® muito utilizado na Itália
Fonte: www.onkodisruptor.com
Figura 6: Eletrodos do modelo Onkodisruptor
Fonte: www.onkodisruptor.com
Figura 7 Modelo ELECTROvet EZ muito utilizado na França Fonte: www.leroybiotech.com/products/electrovet-ez

Quimioterápicos Utilizados

O princípio básico da eletroquimioterapia consiste na potencialização da ação dos quimioterápicos através da eletroporação. Portanto, drogas como a bleomicina e a cisplatina que apresentam baixa permeabilidade pela membrana plasmática devido a hidrossolubilidade são utilizadas durante o processo de eletroquimioterapia. (2,12,13)

O mecanismo de ação da bleomicina é a fragmentação do DNA da célula tumoral. Em condições normais isso resulta na interrupção da fase G2-M do ciclo celular. Quando usada em combinação com a eletroquimioterapia o número de lesões do DNA aumenta drasticamente, levando a apoptose da célula tumoral. (1,6)

Já a cisplatina interage com as células tumorais se ligando às bases nitrogenadas do DNA e causando a morte celular. A eletroporação aumenta o transporte transmembranar dessa droga de 4 a 8 vezes, aumentando assim o número de ligações cruzadas e provocando a morte celular da célula devido a interrupção do ciclo celular. (14,15)

A cisplatina tem seu uso contraindicado na espécie felina devido a possibilidade causar edema pulmonar agudo, e apresenta nefrotoxicidade tanto nos gatos como em cães, tendo seu uso um pouco mais restrito quando comparado com a bleomicina. (14)

A doxorrubicina é outro agente utilizado principalmente em gatos com carcinoma espinocelular em conjunto com a bleomicina. (7)

A aplicação dos quimioterápicos pode ser feita através da via intravenosa ou através da via intratumoral. (8,9)

Mecanismo de ação da Eletroquimioterapia

O principal mecanismo de ação da eletroquimioterapia consiste no aumento da permeabilidade da membrana plasmática e maior acúmulo do quimioterápico dentro da célula tumoral. Ela também atua nas células endoteliais dos vasos sanguíneos do tumor, induzindo a apoptose das mesmas e a supressão do fluxo sanguíneo tumoral, causando  vasoconstrição. Esse efeito de bloqueio vascular promove a permanência do fármaco no interior do tumor por tempo prolongado, proporcionando melhor ação do quimioterápico. (2,12,14,16)

Outro efeito importante é estimulação da resposta imune para combater os resquícios de células tumorais residuais. O papel do sistema imune no combate ao câncer tem sido estabelecido através de vários estudos. É bem sabido que uma parcela de células tumorais residuais que não são combatidas totalmente pela eletroquimioterapia são removidas pela ativação de células do sistema imune como as células dendríticas e as células apresentadoras de antígenos. Estudos realizados com camundongos mostraram que os animais imunocompetentes tiveram uma resposta mais efetiva de combate ao câncer, quando comparado com os animais imunocomprometidos. (1,12,16)

Indicações

A eletroquimioterapia tem indicação para tratar qualquer tumor cutâneo, pequeno e superficial independente do tipo histológico. A sua eficácia vai depender da concentração extracelular do quimioterápico e da distribuição do campo elétrico do tumor. Tumores menores do que 3 cm costumam responder de maneira mais satisfatória a eletroquimioterapia. Já tumores maiores, mesmo que superficiais, sem acometimento de tecido ósseo, não costumam ter uma boa resposta pois requerem um tempo maior que 28 minutos para uma eletroporação completa. (1,5,6)

Essa técnica pode ser usada tanto como terapia única como adjuvante juntamente com o procedimento cirúrgico. Por exemplo na remoção cirúrgica de tumores extensos ou em uma localização anatômica complexa como carpo, focinho, bochecha, comumente tem se empregado esta técnica. Após a ressecção cirúrgica da neoplasia, a bleomicina é aplicada por via endovenosa e cinco minutos depois a eletroporação é realizada no leito cirúrgico. Comumente a eletroquimioterapia tem sido muito empregada em associação coma cirurgia para retirada de mastocitomas cutâneos e sarcoma de tecidos moles desde que não haja acometimento de tecido ósseo. (1,6,8,19). Além disso tem sido associada a cirurgia para retirada de carcinoma de células transicionais de bexiga. (1)

Diversos estudos tem sido publicados com o uso de eletroquimioterapia no tratamento de melanoma oral, adenoma e carcinoma perianais, mastocitoma cutâneo, epulisacantomatoso, hemangioma, hemangiossarcoma cutâneo, carcinoma de células escamosas e sarcoma. (1,5,6,8,9,18,19)

Relato de Caso

Em 2017, um felino fêmea, SRD, de 6 anos, castrado, foi atendido na clínica veterinária Vetclinic, localizada na cidade do Rio de Janeiro com a queixa de apresentar uma lesão em nariz (figura 8). No exame físico foi detectado que o animal apresentava um nódulo cutâneo externo ulcerado localizado no focinho. Foi feita uma punção não aspirativa do tumor que evidenciou presença de inúmeros mastócitos na lesão, com grande quantidade de grânulos no citoplasma, o que levou a um diagnóstico de mastocitoma cutâneo. O paciente então foi submetido a exames de imagem como raio X de tórax e ultrassonografia abdominal para descartar qualquer evidência de metástase e quaisquer outras comorbidades. Além disso foi realizado, radiografia de face, ecocardiograma e exame de sangue completo tais como hemograma, ureia, creatinina, ALT, fosfatase alcalina, albumina e glicemia. Todos os exames estavam dentro da normalidade.

Figura 8: Felino SRD com mastocitoma em focinho – Fonte: Paula Gazé Holguin

Devido a localização do tumor foi proposto ao tutor a realização de uma biopsia incisional para confirmação histopatológica do tipo de neoplasia e eletroquimioterapia, de forma a evitar uma cirurgia de focinhectomia.

Os procedimentos de biópsia e de eletroquimioterapia foram realizados com o paciente anestesiado e intubado. Para evitar a degranulação do tumor foi administrado previamente 0,2 mg por kg prometazina por via intramuscular e 0,1 mg por kg de dexametasona por via endovenosa.

Para a realização da biopsia utilizou-se um punch, e após a retirada de um fragmento iniciou-se o procedimento de eletroquimioterapia com o aparelho BK 100 – cromática LTDA São Paulo SP. Para tal utilizou-se o quimioterápico sulfato de bleomicina na dose de 15 mg por m2 com aplicação por via endovenosa cinco minutos antes do início da administração dos pulsos elétricos. 

Os pulsos elétricos, com tensão de 1000 volts e duração de 100 microsegundos, foram administrados por toda a extensão do tumor.

No pós-operatório evidenciou -se um edema importante na região nasal, além de dor e desconforto. Foi prescrito prednisolona 1 mg por kg, dipirona 20 mg por kg uma vez ao dia, além de cloridrato de tramadol 1 mg por kg a cada 12 horas durante cinco dias. O animal teve que usar colar elizabetano e a cicatrização total da região demorou em torno de 30 dias.

Figura 9: Felino 15 dias após o procedimento. Fonte: Paula Gazé Holguin

O paciente continuou sendo acompanhado a cada 30 dias durante um período de 6 meses. Depois o acompanhamento passou a ser feito anualmente. Até hoje a neoplasia não recidivou e nem fez metástase em nenhum linfonodo da região cervical.

O mastocitoma cutâneo em gatos costuma ter um comportamento benigno na maioria das vezes, contudo quando não retirado com margem cirúrgica livre costuma recidivar. Nesse caso, a eletroquimioterapia demonstrou ser um tratamento eficaz e alternativo para uma cirurgia um tanto radical como a focinhectomia.

Figura 10: felino três anos após o tratamento livre do tumor – Fonte: Paula Gazé Holguin

REFERÊNCIAS

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Paula Gazé Holguins

Médica veterinária graduada pela Universidade Federal Fluminense em 2006. mestrado em clínica de pequenos animais pela Universidade Federal Fluminense em 2009
Intership no Álamo Feline Health Center. San Antonio. Texas USA 2009
Pós-graduação em oncologia veterinária pelo Instituto Bioethicus 2012 a 2014

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