Cuidados Paliativos na Medicina Veterinária: é preciso falar sobre a finitude

Por M.V Adriano Baldaia

Cuidados Paliativos na Medicina Veterinária: é preciso falar sobre a finitude

A cada dia, os animais de estimação ganham mais espaço nos lares das famílias brasileiras, ocupando e exercendo um papel importante na composição familiar. Os animais, principalmente nos últimos anos, viraram membros da família, com intensificação dos vínculos, estreitamento das relações e, muitos, com status de filho.

Um levantamento realizado pelo IBGE e o Instituto Pet Brasil revelou que há 54 milhões de cães, 23.9 milhões de gatos, 39.8 milhões de aves, 19.1 milhões de peixes e 2.3 milhões de répteis e pequenos mamíferos, totalizando mais de 139 milhões de animais de estimação no Brasil, sendo o Sudeste a região que concentra aproximadamente metade desses números.

Quando um animal adoece, há uma mudança de perspectiva de suas famílias (tutores). Uma gama de fatores oriundos da doença virá à tona, como sintomas físicos, psíquicos e emocionais, que envolverão todo o núcleo familiar. Os Cuidados Paliativos não significam que não há mais o que ser feito, mas sim, provocar uma mudança ao olharmos a progressão das doenças, eventualmente sem cura, onde o foco do cuidado será o doente, sua família e toda a história que os cerca, e dessa forma, ampliar todo o cuidado, olhando o paciente em toda sua integralidade.

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“O sofrimento só é intolerável quando ninguém cuida”.

Essa frase proferida por Cicely Saunders, a precursora dos Cuidados Paliativos moderno, nos motiva a refletir sobre a multidimensionalidade do cuidado, quando estamos diante de doenças graves, ameaçadoras da vida e condições de fragilidade e/ou sofrimento. O termo Dor Total (figura 1) elaborado por Cicely, descreve que a dor é composta por vários componentes, sendo eles: dor física, dor social, dor espiritual e dor psíquica. Em 2016, a American Animal Hospital Association transpõe para a medicina veterinária esse conceito, segmentando-o em três componentes: o físico, o social e o emocional (figura 2). O papel do paliativista é identificar os sofrimentos e tentar aliviá-los.

Figura 1 – Diagrama evidenciando o conceito de Dor Total. – Fonte: Textbook of Palliative Care
Figura 2 – Pirâmide demonstrativa dos aspectos emocionais, físicos e sociais. – Fonte: End-of-Life Care Guidelines AAHA/IAAHPC


Conceitos e Definições

O termo “Paliar” é derivado do latim pallium, que faz referência ao manto que os cavaleiros usavam para se protegerem das intempéries (chuva, vento etc.) que se deparavam no caminho que percorriam durante as cruzadas. Estender esse manto, esse pallium, é proteger nossos pacientes e suas famílias de sofrimentos de cunho físico, espiritual, social e psicológico, que a doença pode provir.

O conceito mais recente, definido em consenso e publicado no Journal of Pain and Symptom Management, define os Cuidados Paliativos como cuidados integrais ativos aos indivíduos de todas as idades que atravessam graves sofrimentos relacionados à saúde, em virtude de doenças graves e, especialmente, aqueles que estão perto do fim da vida. Tem como objetivo melhorar a qualidade de vida dos pacientes, suas famílias e seus cuidadores.  A Organização Mundial de Saúde, por sua vez, define como “assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação impecável, tratamento da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”.

A estigma de que os Cuidados Paliativos deveriam ser ofertados a pacientes em fim de vida já é defasada. A abordagem deverá ser iniciada o mais precocemente possível, de preferência no momento do diagnóstico de uma doença grave e potencialmente sem cura, e se estenderá durante todo o curso da doença ameaçadora a continuidade da vida, cuidados de fim de vida, processo ativo de morte e acompanhamento e aconselhamento durante o processo do luto.

No gráfico a seguir podemos notar que, ao longo da trajetória da doença, as necessidades do paciente e de suas famílias poderão variar, e conforme o tratamento modificador da doença começar a perder a capacidade de oferecer controle, o paciente apresentará queda da funcionalidade e o declínio de suas funções básicas torna-se progressivo e inexorável. Esse período passa a ser caracterizado como período de terminalidade. Os Cuidados de fim de vida se caracterizam pelo surgimento e intensificação de sintomas, como dispneia, fadiga, dor, anorexia, entre outros que levarão a morte do paciente num período de dias a semanas.

Gráfico demonstrando a relação entre o Tratamento Modificador da Doença e os Cuidados Paliativos. Fonte: Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia

Conhecendo o curso da doença, avaliando periodicamente a funcionalidade e com base no prognóstico da doença que ameaça a continuidade da vida, podemos identificar as fases da doença, e dessa forma, acolher e preparar os tutores para o cenário da finitude.

Quando a morte se aproxima, instala-se o que chamamos de processo ativo de morte. Nessa fase há uma necessidade ímpar de atuação da equipe junto à família e ao paciente, respeitando a luz da bioética a beneficência e a não maleficência, proporcionando alívio no que tange a sofrimento e toda sua dimensionalidade, e prevenindo a morte com sofrimento.

Funcionalidade e terminalidade

A funcionalidade do paciente está intimamente relacionada a sua capacidade de deambular, atividade e evidência da doença, autocuidado, ingesta de alimentos e/ou água e nível de consciência.  A realização de avaliação correta, é fundamental para acompanharmos a trajetória/evolução da doença, e se torna uma ferramenta importante de prognóstico, tomar decisões junto a família e conjecturar a terminalidade. Alguns instrumentos podem ser utilizados para tal avaliação, como a “Palliative Performance Scale” (Tabela 1). Essa escala foi desenvolvida no Victoria Hospice-Canadá e baseou-se numa outra chamada Karnofsky. Essa escala é validada na Medicina, porém podemos utilizá-la na Veterinária como um instrumento importante ao avaliarmos o status funcional dos animais. É importante que o paciente seja reavaliado a cada encontro e dessa forma acompanharemos e registraremos em prontuário a evolução do paciente, possibilitando avaliarmos o status funcional do paciente, indicando assim em que fase da doença ele se encontra, o que nos permite tomada de decisões éticas e proporcionais. Vale ressaltar que identificar o nível de funcionalidade dos nossos pacientes nos permite adotar medidas que visem a sua qualidade de vida e bem-estar de sua família. Assim, evitar o que chamamos de obstinação terapêutica, que nada mais é do que insistir em medidas de prolongamento da vida a qualquer custo, causando um sofrimento desnecessário, uma vez que o processo de morte é irreversível.

Tabela 1: Escala de Performance Paliativa. – Fonte: Adaptado de Victoria Hospice Society. Palliative Performance Scale (PPSv2) [Internet]. Columbia: VHS; 2004.

 

Quando uma família recorre ao paliativista, a busca pela qualidade de vida dos animais é o fato que mais as aflige. Para nos auxiliar num momento como esse, foi desenvolvida a escala “5H2M”, que nos permite, juntos às famílias, identificar o “nível” de qualidade de vida, conforme observamos na tabela 2.

Tabela 2: Representação da Escala “5H2M”. – Fonte: Adaptado de VILLALOBOS, A.E., 2011.

Entender a trajetória da doença é outro ponto fundamental, pois nos auxilia a entender de que forma ocorrerá o declínio da funcionalidade, em virtude das peculiaridades de cada doença e, dessa forma, esperarmos o surgimento das demandas específicas de cada animal.

Nas figuras abaixo, observaremos as três principais trajetórias, descritas por Murray et al. que demandam cuidados paliativos:

Declínio rápido.
Exemplo: câncer de rápida evolução
– Fonte: Murray,2005
Declínio intermitente.
Exemplo: Falências orgânicas
Declínio gradativo.
Exemplo: Quadros demenciais ou síndrome da fragilidade – Fonte: Murray,2005

O plano de cuidados é individual e dinâmico. É necessário que paciente e família sejam avaliados em toda sua integralidade e multidimensionalidade do sofrimento. O paliativista deverá contar com uma equipe transdisciplinar, como fisioterapeutas, psicólogos e outros.

As doenças são as mesmas, porém a forma como cada ser a manifesta é diferente, e, por isso, o cuidado deve ser individualizado. Não havendo protocolos específicos e, sim, princípios bem estabelecidos e reafirmados pela Organização Mundial da saúde. São eles:

1- Promover alívio da dor e outros sintomas desagradáveis;

2- Reafirmar a vida e considerar a morte como um processo natural;

3- Não pretender antecipar e nem adiar a morte;

4- Integrar aspectos psicológicos e espirituais no cuidado com o paciente;

5- Oferecer um sistema de suporte que possibilite que o paciente viva tão ativamente quanto possível, até o momento da sua morte;

6- Oferecer um sistema de suporte que auxilie a família e entorno afetivo a sentirem-se amparados durante todo o processo da doença;

7- Abordagem interdisciplinar para acessar as necessidades dos pacientes e suas famílias, incluindo um aconselhamento no luto;

8- Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente no curso da vida;

9- Ser iniciado o mais precocemente possível, junto com outras medidas de prolongamento da vida (quimioterapia, radioterapia etc.) e incluir todas as investigações necessárias para melhor compreender e controlar situações clínicas estressantes.

Comunicação de más-notícias

A prática da boa comunicação é conceito basilar na prática dos Cuidados Paliativos. É preciso saber ouvir e enxergar a família como uma unidade de cuidados, entender que há a biografia do animal além-doença, traçar diretivas consoantes a preferência familiar e adaptar nossa comunicação de acordo com as situações. Precisamos ser facilitadores diante dessa DOR TOTAL ocasionada pela doença, estabelecendo em determinados momentos uma relação terapêutica. Na literatura, encontramos alguns protocolos de comunicação como o SPIKES, que nos permite treinar e elaborar uma forma de abordagem. Comunicação é passível de treinamento, mas, independentemente disso, exercer a escuta ativa e compassiva é nosso papel.

Considerações finais

Os Cuidados Paliativos não são sobre morrer, e sim como viver até lá. É sobre ressignificar a vida, valorizando sua biografia e ajudando o paciente a viver até o momento da sua morte, promovendo um exímio controle de sintomas físicos, gerando acolhimento psicológico e espiritual as famílias, inclusive quando se encontrarem enlutados. Paliar um paciente é se colocar ao lado dele e protegê-lo, até o final de sua vida.

Cuidado Paliativo é um direito de todos!

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Adriano Baldaia

Médico veterinário formado pela UNIGRANRIO Especializado em Cuidados Paliativos pelo Hospital Albert Einstein Capacitação em Comunicação Compassiva pela Casa Do Cuidar (SP) Idealizador e fundador do Paliavet-Cuidados Paliativos Veterinários

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