Comportamento canino: uma informação que vem do berço

Por Dra. Valeska Rodrigues

Foto: Piotr Wójcik/iStockPhoto

Ao longo dos anos, podemos observar o crescimento do mercado pet, com investimentos de grandes empresas, lojas especializadas, itens de alimentação, saúde e lazer, viagens e tratamentos. Em 2021, o Brasil ficou em terceiro lugar no mundo em número de pets, de acordo com o levantamento de Instituto Pet Brasil (Fonte: Forbes Money, 4 de outubro de 2022), inclusive com aumento de aproximadamente 27% no faturamento do mercado em comparação ao ano anterior. Assim, cada vez mais sabemos a importância dos animais domésticos e a influência no comportamento dos cães e gatos.

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No estudo e padronização das raças, há classificação de acordo com as características físicas e sociais, aptidões e origens. Muitas mudanças não são permitidas de acordo com as entidades responsáveis, como a Federação Internacional de Cinofilia (FCI) e American Kennel Club (AKC). Ao se classificar as raças, muitos pontos são observados, porém quando se comparam cães e gatos de três décadas atrás, percebemos diversas alterações, mudanças nas características físicas e comportamentais e podem ter origem tanto condicionada ao ambiente quanto a atuação humana, que acompanhou a evolução do mercado Pet mundial.

Mas, estudar o comportamento canino não é algo novo. Desde os tempos de Hipócrates e Galeno já se falava em temperamento, porém com o experimento realizado por Pavlov, no início do Século XX, foi possível identificar características inatas do indivíduo e as aprendidas (condicionamento clássico). O condicionamento clássico, para os animais, pode favorecer o aprendizado e respostas aos comandos em situações de adestramento ou treinamento de cães de trabalho, ou gatos em menor escala1. A capacidade de aprendizado dos animais, seja por repetição ou por condicionamento pode ser avaliada em diversos experimentos, algumas raças com maior aptidão ou restrição, além da comprovação que esses aprendizados podem se manter ao longa da vida2.

Quando se avalia o comportamento materno e as respostas dos filhotes, percebe-se que é normalmente inato, com uma sequência de atitudes desde os pródromos do parto até o desmame. A fêmea busca local seguro, longe de possíveis predadores, uma vez que os neonatos são indefesos e se tornam presa fácil. Assim, dias antes as fêmeas já demonstram interesse em procurar o seu ninho. Outro comportamento inato é a lambedura e ingestão de placenta e anexos fetais, mastigar o cordão umbilical. Quando os cães ainda não eram domésticos, esse comportamento auxiliava no estímulo a respiração, aquecimento dos filhotes e era uma forma de esconder fatores que atraíssem predadores, escondendo odores de sangue e placenta3.

Mas o que esse contato materno-neonatal tem de importante no comportamento dos cães que serão adotados? Como o contato de mãe e filhote irá influenciar na vida adulta do cão ou gato. É o que novas pesquisas tem demonstrado.

Em consonância com a pediatria e neonatologia, existe a divisão das fases da vida de um neonato. Os primeiros dias de um neonato são essenciais para sua sobrevivência, que vai de 0 a 13 dias, estágio 1 ou neonatal. Nesse período os cuidados maternos irão garantir a nutrição, aquecimento, proteção, estímulo a eliminação de fezes e urina, limpeza (Figuras 1 e 2). Além disso, a imunidade materna se mantém ativa com a passagem de anticorpos, até a maturidade do filhote. Nesse estágio, cães e gatos estão em fase de desenvolvimento e ativação do sistema nervoso para a relação com o ambiente, audição, visão ainda débeis pelas orelhas e pálpebras fechadas. O olfato e tato são mais atuantes nesta fase do desenvolvimento. Nos primeiros 14 dias de vida, o filhote é mais vulnerável e o contato com a mãe e irmãos irá influenciar na qualidade do conforto do ninho, após amamentação, a ninhada permanece agrupada, a procura de calor. Neste momento, a cadela ou a gata poderá sair para procurar alimento, água, voltando assim que necessário. Neste período, a ninhada é uma, sem individualidades, exceto em situação de problemas. Nesta fase, ocorre a maior chance de óbito dos neonatos4.

Figura1- Imagem fotográfica de fêmea canina, da raça Bull Terrier em fase inicial de lactação de neonatos. (Imagem cedida gentilmente – Honorato, R.)
Figura 2- Imagem fotográfica de fêmea canina da raça Spitz Alemão em término de trabalho de parto natural e cuidados com os neonatos (Arquivo Pessoal)

O segundo estágio é o de transição, que vai de 13 a 19 dias, época que ocorrem as aberturas de orelhas e pálpebras (Figura 3). Também começam as erupções dos primeiros dentes, preparando os filhotes para início da troca de dieta que ocorrerá posteriormente. Nesta fase, a ninhada permanece mais tempo acordada e já irá começar a reconhecer o ambiente. O contato com seres humanos poderá, nessa etapa, estimular o desenvolvimento de reações de forma a reagirem a situações estressantes no futuro. Em contrapartida, esse contato também favorece uma maior dependência da espécie, caso o estímulo seja excessivo. Considerando a evolução ou mudanças comportamentais das raças, muitas interferências já começaram nesta fase. Para alguns, cria-se maior segurança, para outros, comportamento defensivo. A etapa de transição prepara o filhote para ter reações, como miados, latidos e abanar a cauda5.

Figura 3- Imagem fotográfica de lactente canino da raça Bulldog Inglês, em momento de amamentação, já em fase de transição (Imagem cedida gentilmente: Faleiros, T.)

O terceiro estágio, chamado de Socialização, vai de 19 dias até 13 semanas. Nesta fase, as mudanças são evidentes, crescimento e desenvolvimento, interação com outros indivíduos além da mãe e irmãos de ninhada, início da ingestão de alimentos sólidos, da desmama. Porém é uma fase que se deve ter maior cuidado em interferências, pois serão as mais assertivas na fase adulta. Os filhotes em fase de socialização são capazes de aprender de forma mais rápida, mas também a desenvolverem comportamentos indesejados. O desmame e mudança de ambiente normalmente ocorrem nesta fase e deve-se ter cuidado com a precocidade da separação. O desmame precoce poderá acarretar em desvios comportamentais como insegurança, síndrome da separação nos primeiros dias e, posteriormente, o não desenvolvimento de características mais aguçadas (animais submissos ou não se reconhecem como individuo), pela falta do convívio com a ninhada de origem por tempo maior6. Considerando os animais órfãos, criados por seres humanos, é muito discrepante a evolução do filhote adotado, geralmente ocorre atraso de desenvolvimento motor e outras características físicas, bem como comportamental7.

A socialização terá impactos uma vez que as características inatas poderão ser aguçadas ou amenizadas. O filhote poderá ter ainda maior aprendizado, se os estímulos forem contínuos e com reforço positivo. O segredo para um bom adestramento no futuro, também é reflexo da fase de socialização adequada (Figuras 4 e 5).

Figura 4- Imagem fotográfica de cão da raça Spitz Alemão e gato adultos, com expressão de submissão do cão após contato com animal de outra espécie, em fase tardia (arquivo pessoal).
Figura 5- Imagem fotográfica de cães da raça Dogue Alemão, em fase de socialização em contato com criança. (Imagem cedida gentilmente Vigarius&Vitruvius).

Mas o que seria uma socialização adequada? Considerando que ela ocorreria de forma natural na natureza, com o reconhecimento olfativo e visual de um ambiente além ninho, sons diversos em diferentes etapas do dia. Novos seres vivos evidentes, a curiosidade e ao mesmo tempo receio do filhote com essas novas situações são normais e saudáveis. Isolar um filhote de reconhecer um ambiente causa atraso no desenvolvimento, pior adaptação a novo habitat (mudanças de casas) e outros contactantes. Filhotes de cães e gatos que tiveram contato com outros filhotes de cães e gatos, ou com crianças, apresentam melhor adaptação a novos ambientes e novos pets em casa. Vale ressaltar que esse contato também precisa ser gradativo, mudanças abruptas de convívio poderão gerar estresse e comportamentos indesejáveis.

O quarto estágio, denominado juvenil ou pré-púbere, vai desde as 13 semanas até a maturidade sexual, sendo seguida pelo estágio adulto (quinto estágio). A puberdade pode variar de acordo com a espécie e raças. Cada um tem seu tempo de evolução e essa etapa irá perpetuar características específicas, como convivência, territorialismo, defesa, ataque, alimentação, regulação de sono. Tais características poderão ser diferentes do cão ou gato original, que tinham hábitos noturnos, caçavam e rondavam por distâncias longas ou ainda serão presentes em momentos da vida adulta8.

Para chegar ao quinto estágio (adulto), os filhotes passarão por diferentes estímulos, determinados por características inatas ou por aprendizado. A cada etapa, estímulo em faixa etária esperada e natural implica em maior chance de estímulos cognitivos que irão influenciar na vida adulta ou avançada (Figura 6).

Figura 6- Imagem fotográfica de cão da raça Cane Corso, adulto, em contato com criança, demonstrando naturalidade e adaptação durante a fase de socialização. (Arquivo pessoal).

Os desvios de comportamento vistos por diversos tutores podem ser causados desde o período neonatal, ou de transição, porém a fase de socialização é a que mais impacta no desenvolvimento cognitivo, social e temperamental. O desenvolvimento do sistema nervoso central e as conexões que ocorrem nesta fase serão responsáveis pelo aprendizado, memória e repetição de ações. Vários estudos demonstraram a capacidade dos animais ainda jovens associarem boas experiências a odor, sons ou visuais, bem como associar a experiências desagradáveis, além dessa idade determinar comportamento de dominância em uma matilha, fato bem desenvolvido nos canídeos em geral7. Cães não socializados adequadamente antes das 14 semanas de idade poderão tornar-se adultos críticos e não sociáveis tanto com humanos ou outros animais9.

Considerando os principais problemas encontrados em cães e gatos, relacionados à fase de socialização, é possível listar as principais consequências.

1- Desmame precoce: a separação do filhote de sua genitora, antecipada, poderá criar ansiedade de separação, insegurança, respostas agressivas não esperadas para a idade. Vocalização exagerada, aprendizado mais lento relacionado a micção e defecação em locais não apropriados, dificuldade de adaptação a alimentação. Manter a cria unida por mais tempo, ou pelo menos até completar a fase de mudança completa da dieta permitirá o aprendizado de socialização, dominância, relacionamento com outros cães e outras espécies, que na vida adulta irá gerar um animal mais seguro, com maior facilidade de aprendizado e com menores déficits cognitivos.

2- Quebra do contato com mãe ou outros adultos em fase de socialização: falta de reconhecimento da espécie, comportamento humanizado ou interespécie, dificuldade de socialização futura, dificuldade de adaptar-se a fases como acasalamento, amamentação, cuidar da cria, busca de alimento e adaptação a novas dietas, maior atraso cognitivo ou alteração de comportamento em animais senis8, 10.

3- Introdução alimentar precoce: maior risco de desenvolvimento de intolerâncias/alergias alimentares, imunidade prejudicada, resposta a tratamento ou vacinações com menor eficiência, maior risco de óbito antes de chegar a vida adulta.

Quando as consequências de mudanças nas fases de desenvolvimento canino aparecem, geram uma cadeia de efeitos indiretos. A agressividade reativa, medo social (que poderá ainda acarretar em medo não social secundariamente), distúrbios alimentares podem ser os mais notados, porém algumas raças que se conhece o perfil poderão mudar suas características. Além desses fatores, as fêmeas que poderiam ter o desenvolvimento completo, futuramente podem ter déficit de aceitação a maternidade, desvios de comportamento e baixa aptidão maternal, quando se compara a fêmeas que conviveram com a mãe e irmãos por mais tempo.

Embora a adequada adaptação ao meio durante a fase de socialização seja de suma importância, vale ainda ressaltar que outras interferências podem acontecer, principalmente frente a ambientes estranhos, ruídos que poderão desencadear reações indesejadas. Cães bem adaptados no momento correto se sentirão mais seguros frente a trovões, tempestades ou fogos de artifício, ainda um desafio para quem trabalha com comportamento canino. A dessensibilização ou adaptação precisa ocorrer em idade apropriada e em situação de controle para que resultados positivos possam ser obtidos 9.

E para nós, médicos veterinários, qual o papel relacionado a comportamento canino e sanidade? Muitas vezes, os pacientes irão chegar por alterações comportamentais, mutilação, reações exageradas, distúrbios alimentares que precisarão ser avaliadas, uma vez que existem outras origens que não apenas comportamentais. Avaliar déficits ou sinais clínicos para o diagnóstico, poderá direcionar para o melhor tratamento de cada paciente. É bem provável que a identificação de possíveis pontos relacionados ao manejo de cães ainda filhotes, das ninhadas antes mesmo de nascerem, será demorado, principalmente quando o paciente já chegou à vida adulta com várias marcas de uma socialização inadequada. O veterinário precisará determinar se a agressividade de um cão é patológica ou comportamental e determinar o tratamento adequado, mesmo em casos em que se recomendou a eutanásia (o que não é incomum). Em medicina, a prevenção sempre é mais efetiva e barata que a medicina curativa, e repensar em manejo de neonatos, conhecendo cada vez mais as espécies poderá evitar danos na vida adulta dos animais domésticos.

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Dra. Valeska Rodrigues

Possui graduação em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003), mestrado em Cirurgia Veterinária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2006) e doutorado em Cirurgia Veterinária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009). Atualmente é docente da Universidade de Franca, no curso de Medicina Veterinária, atuando principalmente nos seguintes temas: Diagnóstico por Imagem, Fisiopatologia da Reprodução, Reprodução Animal, Anatomia Veterinária, Ginecologia e Obstetrícia Veterinária, além do Curso de Biomedicina na mesma Instituição. (Fonte: Currículo Lattes, modificado). Presta serviço de ultrassonografia veterinária de pequenos animais desde 2009 até os dias atuais. Professora convidada nos cursos de Pós Graduação Latu Sensu da FATESA.

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