Alopecia psicogênica felina: considerações clínicas

Por Camila Domingues

Alopecia psicogênica felina: considerações clínicas

Essa psicodermatose também chamada de tricotilomania, parece ser a mais frequente e importante na espécie, podendo ser confundida com outros quadros dermatológicos primários

A alopecia psicogênica em felinos trata-se de uma psicodermatose, ou seja, distúrbio comportamental no qual fatores psicológicos e emocionais acarretam manifestações cutâneas. A pele, além de ser oriunda do mesmo folheto embrionário que origina o sistema nervoso, guarda com este, uma comunicação direta através de mensageiros neuro-hormonais, de forma que distúrbios psicológicos podem afetar diretamente a pele e vice-versa.

A dermatite psicogênica felina pode se manifestar por comportamentos repetitivos como lambedura excessiva, desencadeando alopecia autoinduzida; ou de comportamentos bizarros, como automordedura, autotraumatismo e até mesmo automutilação de patas, unhas e cauda. Estes comportamentos são decorrentes de um conflito, ou frustração, que fazem com que os animais permaneçam em um estado de contínuo de ansiedade e estresse. Estes comportamentos repetitivos, sem propósito e prejudiciais instalam-se como um mecanismo de alívio da ansiedade e do estresse, provocados pela condição perturbadora que o animal não consegue resolver.

Fatores ambientais como mudança no ambiente, doenças, cirurgias, mudança de rotina, mudança no convívio com outros animais e pessoas, tédio, competição com outros animais, confinamento, aglomeração, estímulos inadequados, são todas situações potencialmente deflagradoras de dermatite psicogênica.
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O comportamento repetitivo, tal qual obsessivo-compulsivo, desencadeia a liberação de opioides endógenos no sistema nervoso central, gerando simultaneamente alívio e uma sensação prazerosa, o que reforça a repetição do comportamento danoso.

As dermatites psicogênicas felinas são condições consideradas raras, compreendendo cerca de 3% das dermatopatias em felinos. Dentre elas, a alopecia psicogênica, também chamada de tricotilomania, parece ser a mais frequente e importante, podendo ser confundida com outros quadros dermatológicos primários que cursam com lambedura excessiva, como a alergopatias e doenças parasitárias, nas quais a lambedura excessiva é uma manifestação de prurido.

Gatos de raça pura, especialmente Siameses e Burmeses, são considerados predispostos, podendo ocorrer em qualquer raça, inclusive em gatos sem raça definida. Felinos com comportamentos nervosos, sensíveis, ansiosos, ciumentos são também mais propensos a psicodermatoses, que podem se manifestar em qualquer fase da vida dos animais. Não há predisposição sexual relatada.

Na alopecia psicogênica felina, os tutores podem ter dificuldade em identificar que o quadro alopécico é auto induzido, isso devido ao comportamento natural de grooming dos felinos e também pelo fato deste comportamento muitas vezes ser realizado em oculto.

A falha de pelo ocorre quando o gato se lambe com intensidade suficiente para remover os pelos, mas não o suficiente para lesionar a pele, que em geral se encontra íntegra, sem sinais de inflamação. A falha de pelo pode ser completa (alopecia flanca), ou um quadro de hipotricose, onde os pelos estão curtos devido à quebra autoinduzida. A alopecia pode ser localizada, multifocal, apenas em uma região corpórea ou generalizada. A alopecia auto induzida pode ocorrer em qualquer parte do corpo em que o gato consiga lamber, sendo mais frequentemente observada na face interna dos membros anteriores e posteriores, flanco, região inguinal, perineal e abdome, podendo apresentar-se de forma simétrica e bilateral. Pode ocorrer mudança na coloração do pelame remanescente decorrente da saliva. Devido a da lambedura excessiva, pode ocorrer aumento da ingestão dos pelos, aumentando a frequencia de vômitos de pelos, e destes nas fezes, podendo gerar constipação.

Diferenciação

A alopecia psicogênica deve ser diferenciada de outras dermatopatias que causam coceira e que também  desencadeiam alopecia auto induzida, como as alergopatias: dermatite alérgica à picada de pulgas, hipersensibilidade alimentar, dermatite atópica-símile;  as dermatites parasitárias: sarna notoédrica, queiletielose, linxacariose, demodicidose, otocariose, pediculose, puliciose e por fim, as dermatofitoses. Possíveis condições que geram dor, também devem ser investigadas e descartadas em animais com dermatites psicogênicas, pois além do prurido, a dor também pode ser responsável por um comportamento repetitivo ou bizarro, ex: animais com problema na coluna podem vir a lamber excessivamente a região dorsocaudal, animais com neuropatia que mutilam a cauda.

Diagnóstico

O diagnóstico da dermatite psicogênica é estabelecido mediante o histórico clínico, pela presença de situações estressantes potencialmente deflagradoras de psicodermatoses, associado à exclusão das dermatopatias descritas acima, que resultam em falhas de pelo autoinduzidas. Além disso, deve-se avaliar a possibilidade da existência de alguma condição física dolorosa com potencial para desencadear o comportamento repetitivo. Para a consecução do diagnóstico, além de um exame físico detalhado, também deve ser empregados exames complementares como: o tricograma, exame parasitológico, cultivo micológico e exames de imagem, para descartar possíveis condições primárias.

Antes: Felino diagnosticado com alopecia psicogênica com alopecia simétrica bilateral de estendendo da região desde região abdominal e flanco para face externa e interna de membros posteriores – Fotos: Dra. Camila Domingues
Depois: Mesmo animal com alopecia psicogênica após 60 dias de tratamento com amitriptilina – Fotos: Dra. Camila Domingues
 

Tratamento

O tratamento da dermatite psicogênica é difícil e contempla a alteração do ambiente, do comportamento e o emprego de fármacos psicotrópicos. A modificação do ambiente passa pela identificação, e se possível, correção e eliminação dos fatores geradores do conflito/frustração/ ansiedade do animal. A modificação comportamental visa ensinar o animal a lidar com a situação conflitante de forma apropriada, o que pode ser feito por técnicas de alteração de comportamento como: dessensibilização sistemática, contracondicionamento, reforços de comportamento apropriados e desestimulação de comportamentos inadequados, técnicas estas utilizadas conforme a particularidade de cada caso. Por fim, o emprego de fármacos psicotrópicos visa interromper o comportamento obsessivo-compulsivo, e deve ser considerado como coadjuvante, sendo prescritos por período temporário, até que as modificações do ambiente e/ou comportamentais possam ser realizadas. Os fármacos normalmente utilizados na diminuição da ansiedade, são os antidepressivos tricíclicos, como a: clomipramina, amitriptilina, doxepina, e aqueles inibidores da recaptação da serotonina, como a: fluoxetina e paroxetina. Em alguns animais, o tratamento pode ser interrompido após 3 a 6 meses o início do tratamento sem recidivas do quadro, em outros animais, porém, o tratamento precisa sem mantido por tempo indeterminado. Além dos fármacos psicotrópicos, a utilização do feromônio facial sintético felino no ambiente em que o animal está inserido também auxilia na diminuição da ansiedade.

Animal com alopecia psicogênica apresentando alopecia autoinduzida simétrica bilateral em face medial de membros anteriores que se estende para região abdominal, inguinal e face caudal de membros posteriores – Fotos: Dra. Camila Domingues

Para o sucesso do tratamento da dermatite psicogênica felina, é essencial comprometimento do tutor na correção dos fatores ambientais e comportamentais dos felinos, caso contrário, o problema pode persistir mesmo com manipulação farmacológica, ou pode recidivar e até mesmo evoluir para novos comportamentos inadequados após a suspensão dos fármacos psicotrópicos.

O conhecimento e o respeito as características e peculiaridades do comportamento da espécie felina por parte dos tutores, podem evitar o aparecimento de muitos dos distúrbios psicológicos. Desta forma, os médicos veterinários assumem um papel importante, no que tange à orientação quanto as características psicocossociais dos felinos aos tutores, de forma que as interações e o ambiente de convivência entre eles sejam harmoniosas.

Dra. Camila Domingues

Especialização em Dermatologia Veterinária FMVZ/USP. Mestre em Ciência Animal FMVZ/USP. Doutora em Ciência Animal FMVZ/Unesp Botucatu. Sócia-Fundadora da UniCare Vet Especialidades Veterinárias. Membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia Veterinária.

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