Saúde do Coletivo e Medicina Veterinária: aprendizado estendido do conceito de Saúde Única

O conceito de Saúde Única foi estabelecido pelo médico veterinário Calvin Schwabe, na década de 1960, que propôs em sua monografia que os profissionais da saúde humana e veterinárias colaborassem para combater a diversas zoonoses da época, ressaltando o termo “One Medicine” em sua publicação. A saúde única (One Health) visa unificar a saúde animal, humana e ambiental com a atuação interdisciplinar de outros profissionais da saúde (LECCA, ARAÚJO et al., 2019).

O termo foi inserido na comunidade científica com o estabelecimento da One Health Initiative Task Force em 2007. Nesse aspecto, a atuação do médico veterinário abrange além do controle e prevenção de zoonoses, também na prevenção de transmissão de doenças hídricas como: giardíase, hepatite, doenças transmitidas por vetores como a dengue, malária, febre maculosa e na prevenção de fatores de risco epidemiológico relacionado a resíduos sólidos e líquidos (LECCA, ARAÚJO et al., 2019).

Assim sendo, a saúde única estabelece políticas, legislações, pesquisas e implementação de programas que atuam e trabalham de maneira interdisciplinar para diminuição de riscos e manutenção da saúde total do meio ambiente, humanos e animais. Essa integração contribui para redução dos riscos para a saúde global (CFMV, 2015). Nesse contexto, a saúde única deve ser alcançada através de discussões políticas, filosóficas, sociais e econômicas, permitindo ações igualitárias no que tange a medicina humana individual ou coletiva, medicina veterinária e a saúde do ambiente (LOBO, P. M., ROSAR, A. S., MEIRA, J., et. al., 2021)

Figura 1 – Símbolo da Tríade da Saúde Única

No início, a medicina veterinária era tida como a ciência que visava unicamente promover a saúde dos animais. Entretanto, com os avanços científicos e tecnológicos e com a emergência de diversas doenças comuns entre humanos e animais a veterinária passou a ser vista também como importante para a promoção e manutenção da saúde humana. Por essa razão, em 1946 a OMS (Organização Mundial de Saúde) criou o conceito de Saúde Pública Veterinária (MARTINS, 2021). Após esse marco, uma série de programas colaborativos sobre zoonoses, higiene de carne e educação veterinária se iniciaram, e durante décadas médicos humanos e médicos veterinários propagaram a importância da ação interdisciplinar entre eles. (BRESALIER, M., et.al., 2015)

Os princípios consistem em: reconhecer a ligação essencial entre a saúde humana e animal e a ameaça que as zoonoses representam para as pessoas; adotar que as decisões do uso da terra e da água possuem implicações reais para a saúde. Incluir estudos da vida selvagem como componente essencial para prevenção, monitoramento de doenças globais; reconhecer que os programas de saúde humana podem contribuir para a conservação; reduzir a demanda e melhorar a regulamentação do comércio de carne de caça e animais silvestres para preservação dessas espécies e diminuição do risco de transmissão de doenças e por fim, investir na educação ambiental e conscientização da população mundial. (LOBO, P. M., ROSAR, A. S., MEIRA, J., et. al., 2021).

Dessa forma, a atuação do médico veterinário atualmente extrapola para além dos cuidados clínicos e cirúrgicos para animais de produção e de companhia, atuando também na defesa sanitária, inspeção de produtos de origem animal garantindo a qualidade destes, controle e profilaxia de zoonoses, levantamentos epidemiológicos, implementação de tecnologias de produção, manejo de populações de animais domésticos e selvagens, conservação do meio ambiente, supervisão da criação de animais de experimentação, liderança e administração de órgãos de saúde pública e agencias ambiente, dentre outros serviços. (BRANDÃO, 2016).

Figura 2 – Relação estabelecida entre os humanos e os animais não humanos

Além disso, a OMS também permite que o médico veterinário atue em programas voltados a saúde pública. No Brasil, o mais marcante é o NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), criado em 2008 pela Portaria GM/MS nº 124 e revogada em 2011 pela Portaria GM/MS Nº 2.488 tem o intuito de aumentar a capacidade dos profissionais de saúde em lidar, responder e solucionar os problemas da população, sendo composto por diversos profissionais de áreas distintas, agindo de forma interdisciplinar em prol do bem-estar e qualidade de vida da comunidade (SAÚDE-BA).

Como exemplo de ampla importância pode-se usar um caso atípico de pneumonia na cidade chinesa de Wuhan em 2019. Naquele momento, muito discutiu-se sobre a origem da disseminação do vírus e os conceitos da interação da saúde humana/animal. Acredita-se que os primeiros casos do vírus ocorreram com pessoas que tiveram contato com os morcegos do local ou frequentavam o local e que o vírus foi transmitido de animais selvagens para humanos, levando ao que conhecemos como atualmente pandemia de Covid-19 (CAVALCANTI, 2020). A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) buscaram desenvolver diversos trabalhos no intuito de promover conhecimento na educação sanitária, além da produção de imunizantes para tentar controlar a difusão do vírus. Nesse contexto, a Medicina Veterinária teve participação de grande importância nesses programas (CUNHA et al., 2020).

Com a pandemia de Covid-19 o Ministério da Saúde (MS) através de uma portaria que entrou em vigor dia 31 de março de 2020, reivindicou a atuação dos médicos veterinários, assim como outros profissionais da saúde, para atuação na linha de frente ao combate a pandemia (BRASIL, 2020). Ainda, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) em 2020, elaborou um trabalho demonstrando que a medicina veterinária é uma das áreas mais completas no que tange a saúde do coletivo, uma vez que foi criada com o intuito de promover e manter a saúde dos animais com a finalidade de prevenir doenças que acometem o homem.

Assim sendo, diversas outras situações aplicadas exemplificam o papel do médico veterinário associado a outros profissionais da saúde em ações interdisciplinares para promover o bem-estar da população humana, animal e do meio ambiente (DOHERTY, 2019).

Em outro aspecto da saúde total pode-se citar um estudo um Associação Médica Britânica (BMA) que apontou diversos aspectos acerca do uso responsável de antibióticos em seres humanos e pets. Essa iniciativa se enquadra no conceito de One Health e foi reconhecida em 2017 pela Antibiotic Guardian Award como maneira efetiva para combater a resistência antimicrobiana (DOHERTY, 2019).

Outro exemplo expressivo onde os princípios da saúde do coletivo foram sobrepostos constituiu nos casos de infecções por mordidas de animais apresentados aos serviços de saúde da Inglaterra. O Departamento de Cirurgia Maxilofacial do Leed Teaching Hospital iniciou parceria com veterinários para coletar dados dos pacientes mordidos e dos tutores de animais a fim de descobrir o histórico veterinário desses cães e correlacionar com a gravidade das lesões decorrentes das mordidas. Essa medida apontava a conscientização dos proprietários sobre a importância de um acompanhamento médico veterinário visando prevenir doenças em animais, mais uma vez evidenciando a importância do trabalho interdisciplinar e da saúde única (DOHERTY, 2019).

Pesquisas recentes sugerem que existem relações entre o abuso de crianças, adultos vulneráveis e animais, nesses casos o animal atua como sentinela. Por meio da Through the Links Veterinary Training Initiative membros de equipes veterinárias e médicos veterinários vem sendo treinados para promover a segurança e bem-estar de crianças, adultos vulneráveis e animais. Os médicos veterinários aprendem a trabalhar em conjunto com a polícia e os profissionais de saúde humana para melhor intervir no ciclo de violência. O grupo relata que, se os veterinários souberem identificar nos animais uma lesão não acidental, é possível prevenir ou oferecer um suporte para pessoas que vivam nesse lar onde ocorre a violência, quebrando o ciclo do abuso (DOHERTY, 2019).

Contudo, apesar das milhares de situações em que a saúde única se mostra eficaz para solucionar problemas que acometem toda população ainda há desafios a serem enfrentados. Entre os desafios destaca-se a dificuldade da mudança de comportamento humano voltada ao pensamento coletivo e as controvérsias causadas pelos interesses políticos, que muitas vezes vão contra aos conhecimentos científicos (DEGELING, 2015).

Além disso, a destinação de recursos também tem sido um problema, pois por vezes o poder publico age de forma não condizente com os valores dos cidadãos no que diz respeito ao que é valioso, o que deve ser protegido e o que deve ser dispensado. Ademais, a universalização do termo também é prejudicada devido ao desordenado processo de urbanização, associado ao aumento populacional exacerbado e a má gestão das ferramentas online que servem como estratégias de disseminação de informações (MARDONES, 2017; DEGELING, 2015; RIBEIRO, et. al., 2019)

Portanto, é urgente e imprescindível o desenvolvimento de políticas públicas que corroborem para a minimizar os desafios que impedem o real crescimento e disseminação do conceito e princípios da saúde única, para que esta, se torne cada vez mais eficaz. (LOBO, P. M., ROSAR, A. S., MEIRA, J., et. al., 2021)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

ATLAS, R. M. One Health: Its Origins and Future. Current Topics in Microbiology and Immunology, v. 395, p. 1-13, 2012.

BRANDÃO, M. V. A. P. D. Saúde Única em articulação com a saúde global: o papel da Medicina Veterinária do coletivo. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP, v.13, n.3, p.77-77, 18 jan. 2016

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 639, de 31 de março de 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt0639_02_04_2020.html>

BRESALIER, M., CASSIDY, A.; WOODS, A. One Health in history. One Health: The Theory and Practice of Integrated Approaches. CABI Publishing, p. 1-15, 2015.

CAVALCANTI, R. V. D.. A medicina veterinária na saúde pública: abordagem em saúde única diante da pandemia do covid-19. Scire Salutis, v.11, n.1, p.127-133, 2021. DOI: http://doi.org/10.6008/CBPC2236-9600.2021.001.0014

CFMV. Conselho Federal de Medicina Veterinária. O que é saúde única? Brasília: CFMV, 2015

CFMV. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Saúde Única. 2020.

DEGELING, C. et al. Implementing a one health approach to emerging infectious disease: reflections on the socio-political, 54 ethical and legal dimensions. BioMed Central Public Health, v.15, p. 1307, 2015.

DOHERTY, S. One Health in Action Report. British Veterinary Association. 2019.

LECCA, L. O., de L. ARAÚJO, et al. O núcleo de apoio à saúde da família (NASF) e a inserção e atuação do médico veterinário na saúde pública. Conexão Ciência (Online), 14, 73-82. 2019

LOBO, P. M., ROSAR, A. S., MEIRA, J., et. al. Saúde Única: uma visão sistêmica, v. 1, p. 1-54, 2021)

MARDONES, F. O. et al. Veterinary epidemiology: Forging a path toward one health. Preventive Veterinary Medicine, v. 137, p. 147-150, 2017

MARTINS, Debora Silvestre et al. A Importância do médico veterinário na saúde única. Anais da Semana Universitária e Encontro de Iniciação Científica (ISSN: 2316-8226), v. 1, n. 1, 2021.

SAÚDE-BA. NÚCLEO DE APOIO A SAÚDE DA FAMÍLIA, Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab)

RIBEIRO, S. C.; BURGWAL, V. L. H. M.; REGEER, B. J. Overcoming challenges for designing and implementing the One Health approach: A systematic review of the literature. One Health, v. 7, n. February, p. 100085, 2019

Por:  Lilian Stefanoni Ferreira Blumer

Graduação em Medicina Veterinária pela Unesp – Campus Araçatuba
Residência em Clínica Médica de Pequenos Animais pela Unesp – Campus de Jaboticabal
Mestrado em Medicina Veterinária com ênfase em Nefrologia e Urologia de cães e gatos pela Unesp – Campus de Jaboticabal
Membro do Colégio Brasileiro de Nefrologia e Urologia Veterinárias – CBNUV
Professora de graduação e pós-graduação em Faculdades de Medicina Veterinária
Atendimento em Nefrologia de cães e gatos.

Ana Carolina de Araújo Martins da Silva

Graduanda do 8º semestre de Medicina Veterinária pela Universidade Paulista (UNIP). Residente em Campinas- SP.

 

 

Ana Laura Frazão Laguna

Graduanda do 8° semestre de Medicina Veterinária pela Universidade Paulista (UNIP Swift). Realiza revisão sistemática comparando resíduos de enrofloxacina em ovos e resíduos de clorpirifós em leite em diferentes países. Residente no município de Jundiaí, interior de São Paulo.

 

 

Bianca Anholon Da Silveira

Graduanda do 8º semestre de Medicina Veterinária pela Universidade Paulista (UNIP Swift). Realiza Iniciação científica avaliando a ocorrência, fatores de risco e possíveis impactos do isolamento social, derivado da pandemia de Covid-19, na síndrome da ansiedade por separação em cães. Integrante do grupo de estudos de animais silvestres (GEAS – UNIP Campinas-SP). Residente no município de Jundiaí, interior de São Paulo.

 

Catarina Dias Lima

Graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Paulista (UNIP). Atualmente participa do Grupo de Estudos de Medicina Felina (GEMFEL – UNIP Campinas). É monitora da matéria Histologia dos Sistemas e realiza Iniciação Científica na área de Vigilância Epidemiológica, traçando perfis de tutores que participam de campanhas de castração no município de Campinas-SP, correlacionando com controle populacional de animais de companhia e controle de zoonoses.

 

Isabela Leite Santos

Graduanda do 8º semestre de Medicina Veterinária pela Universidade Paulista (UNIP Swift). Técnica em Química pelo Colégio Técnico Bento Quirino (2018), com experiência em monitoria de laboratório. Realiza Iniciação científica avaliando a ocorrência, fatores de risco e possíveis impactos do isolamento social, derivado da pandemia de Covid-19, na síndrome da ansiedade por separação em cães. Integrante do grupo de estudos de pequenos animais (GEPETS – UNIP Campinas). Residente no município de Monte Mor, interior de São Paulo.

 

Verônica Giopatto Catalani

Graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Paulista – UNIP (8º Semestre). Estagiária no Centro Veterinário Hermínia Sanchez, atuando na rotina clínica e cirúrgica de pequenos animais e monitora na matéria de Histologia dos Sistemas (atual). Realiza iniciação científica na área de vigilância epidemiológica, traçando perfis de tutores que participam de campanhas de castração no município de Campinas-SP e correlacionando com controle populacional de animais de companhia e controle de zoonoses. Participa do Grupo de Estudo de Pequenos Animais da Unicamp.