O manejo cat friendly aos gatos na clínica veterinária

Por Rochana Rodrigues Fett

Introdução

O manejo denominado amigável do gato ou cat friendly é uma metodologia criada em 2012 pela união da Associação Americana de Práticas de Felinos (AAFP) e da Sociedade Internacional de Medicina Felina (ISFM) para melhorar a tranquilidade do proprietário, o conforto do paciente e o sucesso da equipe veterinária. Os objetivos do conceito de uma clínica amigável são: redução da dor e do medo do paciente felino; aproximação e confiança do tutor; detecção, o mais precoce possível, de alterações físicas do paciente e redução das lesões causadas por gatos aos tutores e veterinários (RODAN et al., 2011).

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É importante lembrar que a necessidade de cuidados especiais para o gato começou muito antes quando, em 1958, a itCare – que é, hoje, parte da Associação Internacional de Medicina Felina (ISFM) – foi fundada na Europa como Feline Advisory Bureau (FAB). O objetivo era que a Medicina Felina, pouco representativa na época, se desenvolvesse, bem como os cuidados aos gatos que eram tido como pequenos cães (BESSANT et al., 2022).

Atualmente, as técnicas de manejo cat friendly estão bem difundidas. Nos últimos 5 anos, o número de veterinários dedicados aos felinos está em expansão. Em virtude desse maior número de especialistas, tem sido necessário, mesmo em um sistema como o cat friendly, o aprimoramento de técnica e a busca de melhorias. De acordo com Ellis (2018), é importante respeitar o comportamento natural dos gatos. O manejo cat friendly pode ser organizado em sete princípios, em que todos têm a mesma importância. Destes princípios, três são dedicados ao gato e os demais são relacionados ao manejo do humano para o gato.

Princípios do manejo Cat Friendly

1 – Respeito aos gatos

O primeiro princípio se baseia no respeito aos gatos, entendendo-os como espécie, porém, de forma a respeitar a individualidade de cada um.

Os gatos são carnívoros obrigatórios, portanto, devem receber alimento adequado que satisfaça todas as suas necessidades nutricionais e, assim, preserve a sua saúde (ZORAN, 2002).

É do comportamento natural dessa espécie se comportar como presa e predador, além de apresentar um comportamento social flexível em que pode ou não ter envolvimento com outros de sua espécie ou mesmo de outra espécie (ELLIS, 2018).

Em relação ao temperamento dos gatos, é importante lembrar que é formado pela influência genética, bem como pela saúde mental e física da mãe durante a gestação e pelas experiências do próprio felino até os dois meses de vida (HEATH, 2018).

Não apenas o médico veterinário deve conhecer as técnicas de um manejo amigo do gato, mas toda a equipe, incluindo as recepcionistas, os auxiliares veterinários e a equipe de higiene. Além disso, é importante que a casa dos tutores seja também um ambiente amigo dos gatos, que contenha locais para água, vasilhas de comida e alimento de boa qualidade, que tenha também um local de descanso, seguro, com caixas sanitárias, ou seja, um local em que o animal possa exercer seu comportamento natural de marcação e desenvolva brincadeiras diárias, respeitando as suas preferências (ELLLIS, 2013).

2 – Tratar o gato bem no âmbito de saúde física e mental igualmente

O treinamento da maioria dos veterinários é, frequentemente, direcionado à saúde física dos pacientes, à detecção, ao tratamento e, quando possível, à cura de patologias que acometem o felino. Há uma grande parcela do trabalho médico veterinário direcionado à prevenção de ectoparasitas e endoparasitas, bem como a promoção da saúde física por meio da vacinação. Entretanto, é importante reconhecer também que a saúde mental dos gatos está relacionada a seu bem-estar. Um exemplo disso é a relação de sinais físicos, como a polaciúria em pacientes com síndrome de Pandora, cujo estresse costuma ser gatilho para a sintomatologia da patologia (KARAGIANNIS, 2015).

3 – Não ferir o gato

Há um princípio ético que norteia as escolas de veterinária de todo o mundo, o de praticar o bem e de evitar o mal aos pacientes (MARTELL; MORAN, 2018.)

A medicina felina não é uma ciência estática, está sempre em mudança para melhorias não apenas da saúde física, mas também mental dos gatos. No passado, técnicas de contenção, como a restrição de movimento pelo ato de segurar na região anterior da cabeça, o popular cangote, são, hoje, sabidamente desaconselhadas por especialistas, pois é conhecido que causam danos ao felino em sua saúde mental e física (ELLIS,2018).

O veterinário que deseja ser cat friendly deve sempre colocar o interesse de bem-estar do felino como prioridade. Por exemplo, em alguns locais do mundo, é realizada a cirurgia de onicectomia que pode predispor o felino a ter dor crônica perpetuamente. Procedimentos assim ferem o princípio de não fazer mal ao paciente (MARTELL; MORAN, 2018).

O médico veterinário deve auxiliar os criadores para evitarem heranças genéticas desfavoráveis nas raças. Além disso, o profissional deve estimular o conhecimento dos cuidadores em relação ao cuidado dos gatos e em relação aos gatos ferais que, por sua vez, devem passar por programas de esterilização, a fim de evitar maiores problemas populacionais e de abandono. Destaca-se que, idealmente, devem ser mantidos nos locais onde foram resgatados e não devem ser forçados a viver em um ambiente com superpopulação (STELLA, 2014).

4 – Tenha soluções dirigidas aos gatos

O objetivo do médico veterinário deve ser sempre, independente da complexidade do problema que o paciente tenha, promover o bem-estar desse felino. É sabido que a administração do medicamento na casa do tutor fica a cargo deste e de sua família. Nesse contexto, é de responsabilidade do veterinário orientar para que essa administração ocorra da melhor forma. A adesão ao tratamento depende do temperamento do gato e também da habilidade do tutor, sendo importante lembrar que esse cliente passa a ter limitações emocionais, físicas e monetárias na manutenção do tratamento do felino, por isso, cabe ao médico veterinário a orientação de todas as opções possíveis, sempre com foco principal no paciente felino (BESSANT et al., 2022).

5 – Comunicação para os gatos

O objetivo de todos os membros da equipe deve ser o bem-estar do felino nas suas mais diversas áreas. Esse cuidado de bem-estar deve ser estendido aos tutores e aos cuidadores de animais, como babás e criadores, que podem receber essas informações durante as visitas à clínica ou também por informativos e, até mesmo, em postagens nas redes sociais.

A escuta empática deve ser empregada para ouvir o ponto de vista dos cuidadores e suas observações da prática do cuidado com os gatos. Cabe ao médico veterinário orientar, baseado em evidências científicas, o que deve ser melhorado (BESSANT, 2022).

6 – Colaboração para os gatos

O princípio de colaboração para os gatos soma as forças de cuidadores, de babás de gatos, de especialistas em comportamento, de pessoas que trabalham em abrigos, incluindo pessoas de culturas diferentes, o que, por sua vez, culmina em um melhor cuidado aos felinos (RODAN, 2022).

7 – Evolua para os gatos

Um médico veterinário deve sempre estar aprendendo, quanto mais se evolui, mais tem a aprender. A constante na vida do médico veterinário deve ser a busca por estar fazendo melhor e por entender de que forma poderia ser inovador. O manejo amigável ao gato deve ser sempre um motivo de inspiração e motivação para toda equipe (RODAN, 2022).

Os princípios do manejo amigo do gato ou cat friendly devem servir para nortear a escolha do médico veterinário, tanto aquele que está aprendendo sobre esse contexto agora quanto aquele que já está habituado a ter um manejo mais adequado. A mentalidade dos tutores também está evoluindo e, com isso, o respeito maior pela espécie e pelas suas individualidades tem crescido (RODAN, 2022).

As interações cat friendly garantem um atendimento mais seguro, eficaz e que traz emoções positivas ao tutor e principalmente ao gato (RODAN, 2011).

O atendimento amigável ao gato

É importante que o profissional entenda as emoções que o gato está expressando para que com isso possa interagir com esse felino da melhor forma possível. Os gatos têm um comportamento social que os coloca na posição de presa e também de predador, por isso estão sempre tão atentos a cada movimento e podem num ambiente novo (por exemplo no consultório) agir de uma forma protetiva. (ELLIS, 2018).

É importante evitar terminologias como bravo, irascível, estressado aos gatos, essas nomenclaturas reforçam um estereótipo negativo do gato. O ideal é usar a designação da emoção que o gato apresenta. (RODAN et al, 2022).

Contato com o gato

Todo contato com o felino deve ser feito da forma cuidadosa, sem encarar o gato olho a olho, voz suave e acariciar o gato na face nas áreas de maior secreção de feromônios.

Essa interação será orientada baseada na experiência prévia do felino com consultas veterinárias que deve ser questionada ao tutor do gato. (HAYWOOD et al, 2021).

O exame físico do gato deve ocorrer onde se sinta confortável (FIGURA 1 A e B) e pode ocorrer com auxílio de toalhas para que ele se sinta confortável e ao mesmo tempo tenha restrição de movimentos que possam ferir a equipe.

FIGURA 1 A gata na balança para exame físico. - Arquivo pessoal, 2014 / FIGURA 1 B Exame físico no lugar que o gato se sinta à vontade. - Arquivo pessoal, 2020
FIGURA 1 A gata na balança para exame físico. – Arquivo pessoal, 2014 / FIGURA 1 B Exame físico no lugar que o gato se sinta à vontade. – Arquivo pessoal, 2020
 
(HAYWOOD et al 2021). O uso de toalhas pode ser usado para colheita de sangue (FIGURA 2).
FIGURA 2 Uso de toalha para contenção e coleta de sangue - Arquivo pessoal, 2022
FIGURA 2 Uso de toalha para contenção e coleta de sangue – Arquivo pessoal, 2022

Atendendo gatos ansiosos ou com comportamento de autoproteção

Os gatos que costumam ter comportamento de autoproteção ( FIGURA 3) e por isso são difíceis de manejar devem idealmente receber uma medicação ansiolítica como trazodona(10mg/kg, via oral) ou gabapentina (20mg/kg, via oral) em média 2 horas antes da consulta médica. É importante lembrar que a gabapentina deve ter sua dose reduzida nos pacientes portadores de doença renal. (KRUZKA et al. 2021).

FIGURA 2 Uso de toalha para contenção e coleta de sangue - Arquivo pessoal, 2022
FIGURA 2 Uso de toalha para contenção e coleta de sangue – Arquivo pessoal, 2022

Caso o gato não tenha recebido nenhuma dessas medicações, se demonstrar ansioso e precisar de um procedimento que não pode ser adiado é possível usar um sedativo que ofereça mínimos riscos cardiovasculares como o butorfanol. Essa medicação utilizada na dose de 0,2 a 0,4 mg/kg, por via intramuscular, promove sedação adequada para a maior parte dos procedimentos necessários a uma primeira intervenção (exame físico, coleta de sangue e exames complementares de imagem como a realização de radiografias e ultrassonografias). (ROBERTSON, et al. 2018).

Benefícios do manejo amigável

Os benefícios de um manejo amigável ao gato incluem uma economia de tempo, desgaste físico e emocional por parte do médico veterinário e de sua equipe. Além disso, gera bem-estar emocional e de segurança ao tutor e ao gato. (RODAN et al, 2022).

Considerações

Nos últimos anos, o número de felinos aumentou consideravelmente no país e com isso a necessidade de profissionais especializados no atendimento dessa espécie tão peculiar. Apesar dos inúmeros artigos e guias de conduta norteadores para os médicos veterinários é importante que cada um mantenha sempre em mente que cada gato é único e muito importante ao seu tutor, devendo ser respeitado e cuidado na sua individualidade e promoção do bem-estar de acordo com sua espécie e comportamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Claire Bessant, Nathalie Dowgray, Sarah Lh Ellis, Samantha Taylor, Sarah Collins, Linda Ryan And Vicky Halls. Isfm’s Cat Friendly Principles For Veterinary Professionals.Journal Of Feline Medicine And Surgery (2022) 24, 1087–1092.

Ellis Slh. Recognising And Assessing Feline Emotions During The Consultation: History, Body Language And Behaviour. J Feline Med Surg 2018; 20: 445–456.

Heath S. Understanding Feline Emotions: … And Their Role In ProblemBehaviors. J Feline Med Surg 2018; 20: 437–444.

Zoran Dl. The Carnivore Connection To Nutrition In Cats. J Am Vet Med Assoc. 2002;221(11):1559–1567.Doi:10.2460/Javma.2002.221.1559.

Karagiannis C. Stress As A Risk Factor. For Disease. In: Rodan I And Heath S (Eds). Feline Behavioral Health And Welfare. St Louis, Mo: Elsevier, 2015, Pp 138–147. 385–394.

Martell-Moran Nk, Solano M And. Townsend Hgg. Pain And Adverse Behavior In Declawed Cats. J Feline Med Surg 2018; 20: 280–288.

Rodan I, Dowgray N, Carney Hc, Et Al. 2022 Aafp/Isfm Cat Friendly Veterinary Interaction Guidelines: Approach And Handling Techniques. J Feline Med Surg 2022; 24: 1093–1132.

Kruszka M, Graff E, Medam T, Et Al. Clinical Evaluation Of The Effects Of A Single Oral Dose Of Gabapentin On Fear-Based Aggressive Behaviors In Cats During Veterinary Examinations. J Am Vet Med Assoc 2021; 259: 1285–1291.

Robertson Sa, Gogolski Sm, Pascoe P, Et Al. Aafp Feline Anes – Thesia Guidelines.J Feline Med Surg 2018; 20: 602–634.

Haywood C, Ripari L, Puzzo J, Et Al. Providing Humans With Practical, Best Practice Handling Guidelines During Human–Cat Interactions Increases Cats’ Affiliative Behaviour And Reduces Aggression And Signs Of Conflict. Front Vet Sci 2021; 8. Doi: 10.3389/Fvets.2021.714143.

Stella J, Croney C And Buffington T. Environmental Factors That Affect

The Behavior And Welfare Of Domestic Cats (Felis Silvestris Catus) Housed In Cages. Appl AnimBehav Sci 2014; 160: 94–105.

Rodan, I. Et Al. Aafp AndIsfm Feline-Friendly Handling Guidelines. JournalOfFeline Medicine AndSurgery, V. 13, N. 5, P. 364–375, 2011.

Rochana Rodrigues Fett

Médica veterinária graduada na UFRGS, Mestre e Doutora em ciências veterinárias. Especialista em medicina de felinos. Membro da diretoria da Academia Brasileira de Clínicos de Felinos - Abfel, da International Cat Care - ISFM e da American Association of Feline Practitioners - AAFP Professora e coordenadora do pos em medicina de felinos do IBM VET. Sócia e idealizadora da Chatterie Centro de Saúde do Gato.

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