Injúria renal aguda secundária a leptospirose: relato de caso

Por Karine Kleine Figueiredo dos Santos e Viviane Raposo Fortunato

Injúria renal aguda secundária a leptospirose: relato de caso

Caso de cão, fêmea, American Bully, 10 meses de idade, atendido em um hospital veterinário em Vila Velha, Espírito SantoResumo
Injúria renal aguda (IRA) é uma síndrome resultante da diminuição abrupta e persistente da taxa de filtração glomerular. Existem várias causas descritas de IRA, entre elas a leptospirose, que se multiplica ativamente nos rins, levando a nefrite intersticial. O objetivo desse trabalho foi relatar um caso de IRA secundária a leptospirose. Um cão, fêmea, American Bully, 10 meses de idade, foi atendido em um hospital veterinário em Vila Velha, Espírito Santo, com histórico de oligúria, disquesia, anorexia e êmese, apresentando mucosas ictéricas e sialorreia moderada.
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Foram realizadas análises hematológicas, tendo como resultado uremia, anemia normocitica normocrômica, e soroaglutinação microscópica, que foi positivo para Leptospira canicola, Leptospira icterohaemorragiae e Leptospira pomona. A paciente foi mantida internada para tratamento e em constante reavaliação. Após 48 horas de tratamento, mantinha-se em quadro de uremia e foi iniciada a terapia com hemodiálise. Após 2 sessões de hemodiálise e cinco dias de tratamento a paciente recebeu alta hospitalar, mantendo tratamento domiciliar. Em pacientes com IRA, a leptospirose pode ser investigada e, o uso da hemodiálise em associação a terapia apresenta bons resultados no tratamento em quadro de IRA.
Palavras-chave: Leptospira, lesão renal, canino, hemodiálise.

1 Introdução
1.1 Injúria renal aguda
Injúria renal aguda (IRA), é por definição, uma síndrome resultante da diminuição abrupta e persistente da taxa de filtração glomerular (TFG), cujas manifestações incluem o aumento progressivo das concentrações séricas de ureia e creatinina (Carvalho, 2017), e distúrbios no controle do equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico (SBN, 2007).
A IRA pode ser classificada quanto a sua origem (Quadro 1) em: pré-renal, renal intrínseca e pós-renal (Jericó, 2017).
Quadro 1. Classificação da Injúria Renal Aguda conforme sua origem no sistema orgânico.
Classificação

•-Pré-renal

•Renal Intrínseca

•Pós-renal

Características

•diminuição da TFG por déficit hemodinâmico;
rins morfologicamente normais e funcionais;

•alterações morfológicas e funcionais de ambos os rins;

retenção urinária;
rins morfologicamente normais e funcionais;
_____________________________________________________________________________________________
Fonte: Jericó, 2017.

Para facilitar no diagnóstico e tratamento da IRA, a IRIS – Sociedade Internacional de Interesse Renal (2016), a subdividiu em 5 graus, baseados na dosagem de creatinina e nos sinais clínicos (Quadro 2).
Quadro 2. Critérios de classificação da IRA segundo a IRIS.
Escala

•Grau I

•Grau II

Creatinina
Sanguínea

•<1.6 mg/dL (<140umol/L)

•1.7-2.5 mg/dL
(141-220 umol/L)

Descrição Clínica

•ILRA não-azotêmico:
a.) IRA documentadA: evidência histórica, clínica, laboratorial ou de imagem de IRA;
b.) aumento não-azotêmico progressivo da creatinina no sangue:>/= 0.3mg /dL (>/= 26,4 umol/L) em 48h;
c.) oligúria mensurada (<1 mL/kg/h) ou anúria por 6h.

•IRA leve:
a.) IRA documentada e azotemia estática ou progressiva
b.) azotemia progressiva: aumento da creatinina no sangue >/= 0,3mg/dL (26,4umol/L) dentro de 48h; ou capacidade de resposta do volume;
c.) oligúria mensurada (<1mL/kg/h) ou anuria por 6 horas _____________________________________________________________________________________________ Quadro 2. Critérios de classificação da IRA segundo a IRIS. Continuação. Escala

•Grau III

•Grau IV

•Grau V

Creatinina
Sanguínea

•2.6-5.0 mg/dL
(221-439 umol/L)

•15.1-10.0 mg/dL
(440-880 umol/L)

•>10.0 mg/dL
(>880 umol/L)

Descrição Clínica

•IRA moderada a severa
a.) IRA documentada e gravidade crescente da azotemia e insuficiência renal funciona
_____________________________________________________________________________________________
Fonte: IRIS (2016).

Há ainda um subestadiamento quanto à perda urinária de proteína e a presença de hipertensão arterial sistêmica (HAS) (quadro 3), o qual é preconizado para a avaliação de risco de lesão em órgãos alvo (cérebro, olhos, coração e rins) secundariamente ao estado hipertensivo (IRIS, 2016).

Quadro 3. Classificação da pressão sistólica sanguínea em mmHg.
PAS em mmHg

< 150
150-159
160-179
>180
Classificação

Normotenso
Borderline Hipertensivo
Hipertensivo
Severamente Hipertensivo
_____________________________________________________________________________________________
Fonte: IRIS (2016).


1.2 Leptospirose

A leptospirose é uma zoonose de importância mundial, que afeta diversas espécies dentre animais domésticos e silvestres, sendo o cão um importante hospedeiro (Adler; de la Peña, 2010; Knöpfler; et al., 2017; Schuller, 2017). É causada por uma bactéria espiroqueta patogênica do gênero Leptospira spp. da família Leptospiraceae, da espécie Leptospira interrogans. Mais de 250 sorovares de L. interrogans já foram descritos em diversos países, dentre eles o L. icterohaemorrhagiae, L. copenhageni, L. grippotyphosa, L. australise L. pomona, L. autumnalis e L. sejroe são os mais encontrados em cães (Knöpfler; et al., 2017; Schuller, 2017).
As leptospiras colonizam os túbulos renais proximais de animais silvestres e domésticos. A infecção do hospedeiro geralmente ocorre por meio do contato com leptospiras no ambiente por meio de água e alimento contaminados com urina, fômites ou ingestão de carcaça destes animais infectados (Greene; et al. 2006; Jericó, 2017).
Após entrarem em contato com o hospedeiro pelas mucosas nasais, orais ou conjuntivais, estando estas lesionadas ou intactas, ou até mesmo após contato por longos períodos em águas contaminadas, as leptospiras rapidamente provocam uma infecção sistêmica, chegando a corrente sanguínea e replicando-se em diversos tecidos, incluindo rim, fígado, baço, sistema nervoso central, olhos e trato genital. (Hagiwara et al., 2015; Schuller, 2017). A multiplicação em órgãos parenquimatosos, sangue, linfa e líquor, caracteriza o quadro agudo da doença, denominado de leptospiremia (Zhang; et al., 2009). Já a colonização do epitélio tubular renal, subsequente da eliminação das leptospiras na urina, é a fase denominada de leptospirúria (Levett, 2001).
Estudos experimentais têm mostrado que a IRA, secundária à leptospirose, está associada à presença da leptospira no tecido renal, desencadeando um processo de nefrite intersticial aguda (NIA) (Daher; et al., 2004).

1.3 Sinais clínicos
Os sinais clínicos da IRA são geralmente inespecíficos como letargia, depressão, anorexia, vômito, diarreia, desidratação, eventualmente hálito urêmico e úlceras orais (Palumpo; et al., 2011).
São variáveis também, os sinais clínicos iniciais da leptospirose em cães, os quais incluem, anorexia, letargia, depressão, febre e variado grau de envolvimento hepático, pulmonar e renal (Sykes; et al., 2011). O quadro clínico pode variar de forma leve a grave, ou até mesmo levar a morte do hospedeiro (Saleem; et al, 2013).

1.4 Diagnóstico

O diagnóstico é baseado em exames laboratoriais como, hemograma, função renal, urinálise e ultrassonografia abdominal. O hemograma por sua vez irá indicar uma linfopenia e uma leucocitose, perfil bioquímico abrangente indicando aumento de ureia, creatinina, hipercalemia, hipocalcemia e hipoglicemia, urinálise indicando presença de células renais e epiteliais dos túbulos renais, bem como proteinúria, densidade e produção de urina reduzida com exame de sedimento e cultura de urina (Rufato; et al, 2011).
Os testes baseados na detecção de anticorpos têm baixa sensibilidade na fase inicial da doença e os anticorpos induzidos pela vacinação não podem ser discriminados daqueles produzidos na infecção natural (Xu; et al., 2014). Na rotina clínica, a confirmação do diagnóstico clínico e epidemiológico é realizado através da pesquisa de anticorpos específicos no soro, por meio do teste de soroaglutinação microscópica (SAM) (Levett, 2001). Outras técnicas como a reação em cadeia de polimerase (PCR) têm sido utilizadas para identificar o material genético de leptospiras na urina (Wilson; et al., 2015).
As dosagens de ureia, creatinina, alanina aminotransferase (ALT), fosfatase alcalina (FA) e bilirrubina constituem-se nos principais exames de monitoramento da evolução do quadro clínico e, consequentemente, do prognóstico de animais com leptospirose (Van De Maele; et al., 2008).
De acordo com a IRIS (2016), o paciente doente renal pode ser classificado de acordo com os níveis séricos de creatinina e dimetilarginina simétrica (SDMA), que é considerado um novo marcador para função renal. SDMA é o biomarcador mais utilizado nas doenças renais por apresentar uma exclusiva eliminação pela urina (KIELSTEIN et al., 2011; SCHWEDHELM; BÖGER, 2011; NABITY et al., 2015).

1.5 Tratamento
É comum em pacientes com IRA a ocorrência de náuseas e êmese, que associados a uremia leva a gastrite e ulcerações gástricas. O controle nesses casos deve ser realizado com drogas antieméticas, como metoclopramida, ondansetrona ou clorpromazina, e protetores da mucosa gástrica, como ranitidina, omeprazol ou sucralfato. (Nelson; Couto, 2010).
Em pacientes com hematócrito menor que 30% ou que apresentem sinais de fadiga, depressão ou desconforto respiratório pode se fazer o uso da eritropoitina e transfusão sanguínea (Rufato; et al, 2011).
Nos cães, a terapia anti-hipertensiva baseia-se em muitos dos casos em uma associação de fármacos anti-hipertensivos com diuréticos, pois, a utilização de apenas um agente, geralmente é ineficiente (BARTGES et al., 1996).
Segundo Cowgill e Elliott (2004), para a IRA já estabelecida, os benefícios potenciais dos diuréticos incluem (1) indução de diurese e conversão do estado oligúrico ou anúrico para estado não oligúrico, (2) potencial para um curso mais benigno, (3) revelação de lesão renal menos grave, (4) regulação mais eficiente do equilíbrio hídrico e eletrolítico e (5) oportunidade de prover nutrição parenteral. Como agente osmótico, o manitol atua aumentando o fluxo tubular e ajuda a prevenir o colapso ou obstrução tubular (FINN, 1990).
A fluidoterapia permanece como o fundamento do tratamento clínico da IRA nos animais (RIESER, 2005), com objetivo terapêutico de normalizar o equilíbrio hídrico, resolver as inadequações hemodinâmicas e promover a formação de urina (Palumbo; et al., 2011).
O volume inicial de reposição deve ser calculado a partir da desidratação clínica estimada, de acordo com a fórmula: Volume de reposição (mL) = [peso corpóreo (Kg)] x [déficit estimado (por cento)] x 1.000 (Cowgill; Elliott, 2004), este deve ser reposto por via intravenosa em 4 a 6 horas, com a finalidade de estabelecer a perfusão renal e promover a produção de urina em um determinado intervalo de tempo (POLZIN et al., 1989; GRAUER, 1991).
Os déficits de fluido devem ser repostos rapidamente (até 90 mL/Kg/hora) nos animais com hipovolemia e hipotensão, a fim de prevenir a isquemia prolongada dos tecidos periféricos e a progressão adicional ou exacerbação da IRA (COWGILL; ELLIOTT, 2004). Após a restauração dos déficits de fluidos, as necessidades de água livre (de 20 a 25 mL/Kg/dia) e as perdas urinárias e gastrintestinais correntes (mensuradas ou estimadas), devem ser providas para se manter o equilíbrio hídrico (LANE et al., 1994; GRAUER, 1998; PLUNKETT, 2006).
O tratamento da leptospirose canina varia de acordo com cada caso específico. Entre as condutas terapêuticas, as que se destacam incluem a hidratação e correção dos distúrbios hidroeletrolíticos, diálise, transfusão sanguínea e antibioticoterapia (Guidugli, 2000).
Estudos recentes têm mostrado o uso da diálise precoce no tratamento da leptospirose, mostrando uma redução significativa nas taxas de mortalidade (Daher; et al., 2004). A decisão de aplicação da hemodiálise nestes casos deve ser tomada o mais rapidamente possível, pois, a intervenção antecipada da hemodiálise aumenta a probabilidade de sucesso (Bloom; Labato, 2011). Nos casos de oligúria ou anúria em que não é possível manter uma diurese eficiente com a fluidoterapia, diuréticos e vasodilatadores renais deve-se iniciar logo que possível a hemodiálise (Cowgill, 2002).
A hemodiálise, promove uma substituição temporária da função renal, extracorpórea, indicada para controlar as alterações bioquímicas, hidroeletrolíticas e acidobásicas decorrentes da uremia. Assim, tendo como principal indicação, os casos de IRA, com azotemia e uremia secundária à lesão em néfrons, como ocorre na leptospirose e, cuja resposta ao tratamento conservador (fluidoterapia) não tenha sido adequada, com evolução do quadro para oligúria (Jericó, 2017).
Atrasos no início da terapêutica hemodialítica podem resultar na deterioração da condição clínica do animal, predispondo-o para níveis de azotemia, hipervolemia, hipercalemia e acidose metabólica que comprometem a sua sobrevivência (Cowgill, 2002).

1.6 Objetivos
O objetivo desse trabalho foi relatar um caso de Injúria Renal Aguda secundária a leptospirose.

2. Relato de caso

Foi encaminhado a um Hospital Veterinário 24 horas, na cidade de Vila Velha, Espírito Santo, uma fêmea, canina, da raça American Bully, com 10 meses de idade. Na anamnese o tutor relata que a paciente em questão havia atacado um roedor em sua residência há 3 dias, e que desde então, esta apresentava oligúria, aquesia, anorexia, êmese e icterícia.
Ao exame físico, pôde se observar intensa icterícia nas mucosas e região cutânea abdominal, desidratação de 10%, ausculta cardiopulmonar sem alterações dignas de nota, temperatura 38,6 ºC, sialorreia moderada, pressão arterial sistêmica de 160 mmHg.
Quadro 4: Valores hematológicos e bioquímica sérica de fêmea canina, da raça American Bully, com suspeita de leptospirose, realizado no primeiro atendimento.
Parâmetros
avaliados

Hemácias
Hematócrito
Hemoglobina
VCM
CHCM
Leucócitos totais
Neutrófilos
Monócitos
Plaquetas
Ureia
Creatinina
AST
ALT
FA
GAMA GT
Proteína Sérica Total
Albumina
Globulinas
Relação Albumina/Globulina
Colesterol
Glicose
SORO

Valores obtidos na análise
5,54 M/uL
35,3%
13,2 g/dL
64,9 F1
37,4 g/Dl
22.910/uL
19.660/uL
1.210 K/uL
136.000/uL
172 mg/dL
7,12 mg/dL
87,2 U/I
146 U/I
2639 U/I
8 U/I
6,39 g/dL
2,88 g/dL
3,51
0,82
266 mg/dL
90,77 mg/dL
Ictérico ++
Achados ultrassonográficos:
Rins: Levemente aumentados medindo 7,1 cm (RE) e 7,7 cm (RD) de comprimento. Relação corticomedular mantida. Ecogenicidade da cortical renal aumentada bilateralmente. Cápsula regular. Adequada definição da arquitetura renal interna bilateralmente. Ausência de dilatação da pelve renal bilateral. Ausência de litíase
Bexiga: Distendida, apresentando conteúdo anecogênico. Parede espessada (0,45 cm) e aspecto irregular. Ausência de sedimentos e de litíase.
Os achados, como aumento de Ureia, Creatinina e RPCU e a presença de hipercalemia podem ser observadas no quadro 6. Na urinálise foram encontrados presença de proteína e cilindros granulosos, e o teste de soroaglutinação microscópica foi reagente para Leptospira canícola, Leptospira icterohaemorragiae e Leptospira pomona, sendo assim diagnosticado IRA secundária à Leptospirose.
Quadro 5. Valores de bioquímica sérica e RPCU de fêmea canina, da raça American Bully, com suspeita de leptospirose, realizado no segundo atendimento.
Parâmetros
avaliados

Ureia
Creatinina
Potássio
RPCU
Valores obtidos
312,8 mg/dL
9,4 mg/dL
6,8 md/dL
1,93
A paciente foi internada, e submetida em seguida à fluidoterapia de reposição com Ringer com Lactato em velocidade de infusão de 10 mL/kg/hora durante 6 horas, seguido de 50 mL/kg/dia para manutenção.
Tratamento: Omeprazol 0,7 mg/kg, intravenoso (IV), a cada 24 horas (SID); Doxiciclina 10 mg/kg por via oral (VO), a cada 12 horas (BID), Sucralfato 1 g/animal, VO, BID; Dipirona 25 mg/kg IV, BID; Anlodipino 0,1 mg/kg VO, BID; Hidróxido de alumínio 30 mg/kg VO, BID; Hemolitan Gold® 0,1 mL/kg VO, BID; Same (S-Adenosil-Metionina) 20 mg/kg VO, SID e Silimarina 30 mg/kg VO, SID.
Realizou-se o monitoramento da produção urinária da paciente, constatando-se oligúria. O débito urinário era controlado através da pesagem do tapete higiênico, sendo estimado um volume de 15mL/Kg nas primeiras 24 horas, com a utilização de hidratação intensiva.
Após dois dias de internação, apesar da intervenção por meio de fluidoterapia e do uso de diuréticos, a paciente ainda apresentava quadro urêmico e oligúria importante. Portando, foi submetida a colocação de cateter venoso central para a realização de hemodiálise. Foram realizadas duas sessões em dias consecutivos, com base nos resultados dos exames coletados após cada sessão.
Para o acompanhamento do quadro clínico e da terapia, foram coletados exames hematológicos antes das sessões de hemodiálise e após 6 horas de cada sessão, eram coletados novamente (Quadro 6), estes demonstraram redução da ureia, creatinina, potássio, e da leucocitose.

Quadro 6: Valores dos exames hematológicos e bioquímica sérica realizados para acompanhamento de paciente canina, da raça American Bully, com IRA secundária a leptospirose, imediatamente antes e, após 6 horas da 1ª e 2ª sessões de hemodiálise.
Parâmetros hematológicos

Hemácias
Hemoglobina
Hematócrito
VCM
HGM
CHCM
Leucócitos totais
Segmentados
Bastonetes
Linfócitos
Monócitos
Eosinófilos
Plaquetas
Ureia
Creatinina
Potássio

Antes da 1ª sessão














312,0 mg/dL
9,6 mg/dL
6,5 mg/dL
Após 1ª sessão

3,620 uL
8,9 g/dL
24,7%
68,2 fL
24,6 pq
36,0 g/dL
34,500 uL
29,670 uL
0 uL
1,380 uL
3,105 uL
345 uL
152,000 g/dL
168 mg/dL
6,4 mg/dL
6,5 mg/dL
Após 2ª sessão

4,240 uL
10,7 g/dL
30,0 %
70,8 fl
25,2 pq
35,6 g/dL
34,200 uL
29,070 uL
1,026 uL
2,736 uL
1,368 uL
120,000 uL
120,000 uL
120 mg/dL
4,5 mg/dL
4,5 mg/dL
Após 15 dias, paciente retornou ao hospital mais ativa, com grau de consciência sem alterações, e melhora do quadro ictérico. Foram coletados, hemograma completo e perfil renal (ureia e creatinina), onde os resultados obtidos demonstraram uma anemia regenerativa (Quadro 7).

Quadro 7. Valores dos exames hematológicos e bioquímica sérica realizados 15 dias após a alta médica de paciente canina, da raça American Bully, com IRA secundária a leptospirose.
Parâmetros
avaliados

Hemácias
Hemoglobina
Hematócrito
VCM
HGM
CHCM
Leucócitos totais
Segmentados
Bastonetes
Linfócitos
Monócitos
Eosinófilos
Plaquetas
Ureia
Creatinina
Valores obtidos
3,140 uL
8,4 g/dL
24,4%;
78,7 fL
26,8 pq
34,0 g/dL
13,100 uL
7,598 uL
0 uL
2,751 uL
655 uL
2,096 uL
500,000 uL
54,2 mg/dL
1,6 mg/dL
Após um ano do ocorrido, a paciente retornou para nova avaliação, na qual foram realizados a RPCU, urinálise (sem alteração digna de nota), bioquímica sérica (Quadro 8) e ultrassonografia

Quadro 8: Resultados dos exames realizados 1 ano após a alta médica de paciente canina, da raça American Bully, com IRA secundária a leptospirose.
Parâmetros
avaliados

RPCU

Creatinina
Ureia
Fósforo
Potássio
Sódio
Cálcio
Cálcio Iônico
Cloro
Valores obtidos
0,19

1,20 mg/dL
37,5mg/dL
3,70 mg/dL
4,43 mEq/L
136,42 mEq/L
2,41 mmol/L
1,23 mmol/L
102,46 mEq/LValores referências
Menor que 0,20: ausência de proteinúria
0,5-1,5
21,4-60,0
2,6-6,2
3,7-5,8
141,1-152,3
2,0-3,0
1,3-1,5
105,0-115,0

3. Discussão
Segundo Jericó (2017), qualquer tipo de agente ou condição clínica grave que tenha potencial para causar lesão renal extensa e grave pode, em poucas horas ou dias, dar início a condição denominada IRA, podendo ser classificada conforme sua origem em pré-renal, renal intrínseca e pós-renal. Existem várias causas descritas de IRA, entre elas a leptospirose, que se multiplica ativamente nos rins, levando a nefrite intersticial, multiplicando-se também em outros órgãos (Lima, 2008). A paciente deste relato, portanto, foi classificada em IRA renal intrínseca, por apresentar alterações funcionais em ambos os rins, secundária a leptospirose.
A leptospirose canina parece ocorrer com mais incidência em cães jovens, com idade entre 1 e 4 anos (Hagiwara; e. al., 2015; Collantes; et al., 2016), semelhante ao caso relatado, se tratando de uma cadela jovem. Apesar de alguns autores, não encontrarem relação direta entre idade, sexo, raça e peso com a infecção por leptospiras (Knöpfler; et al., 2017). Em cães, a enfermidade é caracterizada por diversos sinais clínicos, podendo os animais infectados apresentarem desde um quadro assintomático até a forma superaguda, aguda, subaguda ou crônica da doença (Freire; et al., 2008).
Ao leucograma observou-se uma leucopenia, esta trata-se de um sinal transitório, o qual ocorre na fase inicial da doença (1-2 dias), alterando em seguida para uma leucocitose, observada na fase aguda. Já nos primeiros exames, pôde se constatar uma leucocitose (Greene; et al., 2006; Jericó, 2017; Knopfler; et al., 2017). Hagiwara; et al. (2015), relatam que a ocorrência de leucocitose e febre em animais com leptospirose ocorre devido à síndrome da resposta inflamatória sistêmica associada à sepse.
A anemia normocítica normocrômica não regenerativa, observada no hemograma da paciente, pode decorrer de hemólise aguda, secundário a infecção por leptospira ou por deficiência em uns dos precursores da eritropoiese como por exemplo a eritropoietina (Gonçalves; et al., 2008).
A trombocitopenia no paciente com leptospirose ocorre devido a destruição imuno-mediada, sequestro esplênico, coagulação intravascular disseminada (CID) ou ativação de plaquetas no endotélio pelo organismo, havendo, portanto, o consumo destas (Schuller, 2017), fazendo com que seja um achado comum em cães com leptospirose (Hagiwara et al. 2015), como observado neste animal.
A paciente, de acordo com os exames realizados, apresentou alterações significativas em rins e fígado, corroborado com Jericó (2017), que relata a possibilidade do comprometimento hepático e renal concomitantemente, caracterizando a síndrome hepatonefrotíca da leptospirose, apresentando manifestações clínicas do comprometimento hepático e renal, como ocorreu neste caso. Nessa afecção, é possível observar o aumento das transaminases hepáticas e fosfatase alcalina (Silva; et al., 2002), assim como descrito nesse relato.
Segundo Langston (2013); Nally; et al. (2004) e Andrade; et al. (2007), na urinálise de cães com Leptospirose observa-se geralmente densidade baixa, glicosúria, proteinúria e bilirrubinúria, acompanhada das elevações de cilindros granulosos, sendo que, na paciente relatada, foi possível observar a presença de proteinúria e cilindros granulosos. Além disso, a RPCU encontrada, pode ser classificada como bem elevada, estando muito acima do valor de referência para cães, o qual se encontra entre 0,2 a 0,5 (Grauer, 2011). O objetivo de se avaliar a RPCU, é o de se obter a magnitude de eliminação de proteína pela urina, detectando assim a gravidade das lesões renais, a resposta ao tratamento ou a progressão da doença (Gregory, 2003), concluindo, a presença significativa de proteinúria e consequentemente lesão renal grave desta paciente.
A reposição de fluido em pacientes com IRA pode ser administrada de maneira intravenosa, durante as primeiras 4 – 6 horas de tratamento. (Nelson e Couto, 2010). Sendo assim, após a internação, o paciente foi submetido a terapia de re-hidratação, com fluidoterapia intensa durante as 6 primeiras horas, para reposição volêmica, seguida de manutenção hídrica nos demais dias.


4. Conclusão

A leptospirose é uma das causas de injúria renal aguda. O diagnóstico precoce aumenta a chance de sucesso no tratamento.
A utilização da hemodiálise como terapia adjuvante no tratamento de IRA pode ser um diferencial no tratamento da leptospirose.


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Profa. Karine Kleine Figueiredo dos Santos

Mestrado em Medicina Veterinária de Pequenos Animais pela UNIFRAN 2011. Pós-graduação em Nefrologia pela UNIFESP 2003. Graduação em Medicina Veterinária pela UNIPLI 1999.
Vice-presidente do Colégio Brasileiro de Nefrologia e Urologia Veterinárias (2016-2020). Membro da American Society of Veterinary Nefrology and Urology e da Sociedade Brasileira de Cardiologia Veterinária.
Professora de Nefrologia e Cardiologia da Faculdade Qualittas de Pós-graduação e CDMV Brasil; Professora de Nefrologia e Cardiologia Pós-graduação Universidade de Salta Argentina.
Coordenadora da Nefrologia e Cardiologia do DOK Hospital Veterinário.
Autora do livro Guia Prático de Nefrologia em Cães e Gatos, Editora LF Livros, Rio de Janeiro, Brasil.

Viviane Raposo Fortunato

Médica-veterinária mestre em Ciência Animal com ênfase em Terapia Celular.
Pós-graduanda em Nefrologia e Urologia Veterinária pela Anclivepa-SP.

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