Bloqueio do crânio dorsal para exérese de tumor ósseo extracranial em cão – relato de caso

Por Rodrigo Corrêa Rosa, Dalila Pozzatti e Karem Steffens Brondani

Bloqueio do crânio dorsal para exérese de tumor ósseo extracranial em cão – relato de caso

Introdução

O manejo da dor é um componente crucial do tratamento adequado do paciente. A analgesia multimodal que inclui tanto a administração sistêmica quanto local de medicamentos é geralmente a abordagem mais eficaz para proporcionar alívio da dor.

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Os anestésicos locais são únicos, na medida em que podem bloquear completamente a transmissão da dor (em pacientes conscientes) ou nocicepção (em pacientes anestesiados), proporcionando analgesia intensa. Além disso, a administração local e regional de medicamentos, quando comparada com a administração sistêmica, geralmente resulta em menor incidência de efeitos adversos. ¹

Nos últimos anos, as técnicas de anestesia locorregionais ganharam muito espaço dentro da anestesiologia veterinária. Muitas delas já são consagradas, enquanto outras ainda necessitam de estudos clínicos e experimentação in vivo.

Relato do caso

O presente relato tem o intuito de descrever a utilização da técnica do bloqueio do crânio dorsal, semelhante ao scalp block (bloqueio do couro cabeludo) utilizada na medicina humana, em um cão com neoplasia extracraniana, técnica essa descrita em um estudo cadavérico. ²

Um canino SRD, de 8 anos e 32 kg foi atendido com queixa de aumento de volume na região dorsal do crânio, com evolução de algumas semanas. O paciente apresentava dor à palpação da região. Um raio-x prévio indicava um extenso e desorganizado aumento de volume com densidade óssea na região. Foi solicitada uma tomografia computadorizada para avaliação da extensão da lesão, conforme a figura 1. Após a realização de exames complementares (hemograma, bioquímicos e ecocardiograma), foi optado pela excisão cirúrgica da massa. O protocolo anestésico utilizado está descrito na tabela1.

Figura 1 – imagem de tomografia com formação expansiva e hiperdensa na região caudo-dorsal do crânio, envolvendo grupos musculares e os ossos occipital, parietal e temporal, mais exuberante do lado esquerdo, medindo 8,8 cm X 8,2 cm X 5,4 cm. Arquivo pessoal
Tabela 1 – Protocolo anestésico – arquivo pessoal

Após a indução e intubação, o paciente passou a receber oxigênio 100% e permaneceu em ventilação espontânea ou manual, com o intuito de manter a eucapnia.

Foi realizado o bloqueio unilateral (lado esquerdo) do crânio dorsal, utilizando bupivacaína 0,25%. Como o bloqueio foi realizado apenas em um lado do crânio, optou-se por fazer um volume de 0,08 ml/kg/ponto (o dobro do volume utilizado no estudo em cadáveres), com o intuito de reduzir a chance de falha do bloqueio. Baseado em estudos anatômicos anteriores, para contemplar a área a ser operada, é necessário o bloqueio dos nervos frontal, zigomaticotemporal e occipital maior.

A abordagem dos nervos foi realizada como descrita pelos autores ²: nervo frontal: a injeção foi aplicada onde o nervo sai do aspecto mais dorsal da órbita (margo orbitalis). A agulha foi inserida neste ponto, perpendicular a pele, e avançada cerca de 1,5 cm, caudalmente. Metade do volume foi aplicado na profundidade máxima e o restante foi injetado a medida que a agulha era retirada, totalizando 2,4 ml de anestésico local (figura 2).

Figura 2 – Bloqueio do nervo frontal – esquema retirado de ² e foto de arquivo pessoal

O nervo zigomaticotemporal foi bloqueado introduzindo-se a agulha através da pele caudal ao ligamento orbitário e ventral a sua fixação no processo zigomático do osso frontal. A agulha foi avançada ventralmente, rostral e medialmente em direção ao plano nasal, cerca de 1,5 cm. Metade do volume foi administrado neste local e o restante durante a retirada da agulha. O processo foi repetido, desta vez com a agulha em mesmo plano, porém avançando dorsalmente, totalizando 5 ml de anestésico local neste ponto (figura 3).

Figura 3 – Bloqueio do nervo zigomaticotemporal – esquema retirado de ² e foto de arquivo pessoal

Para maior efetividade do bloqueio do nervo occipital maior, sua abordagem é realizada em dois sítios, um rostral e outro caudal. Ambas as abordagens foram realizadas com a cabeça e pescoço em ventroflexão. Para realizar o bloqueio rostral do nervo occipital maior, a agulha foi inserida cerca de 2,5 cm medialmente a borda caudomedial da cartilagem escutiforme e direcionada para a face cranial do processo espinhoso do axis. As injeções foram realizadas em 3 níveis: no tecido subcutâneo, dentro do músculo cutâneo e profundamente ao músculo cutâneo, totalizando 7,6 ml. Metade do volume foi aplicado com a agulha totalmente inserida e o restante, durante a retirada da agulha (figura 4).

Figura 4 – bloqueio rostral do nervo occipital maior (A,B,C). Esquema retirado de ² e foto de arquivo pessoal

Para realizar o bloqueio caudal do nervo occipital maior, a agulha foi inserida cerca de 1 cm lateral a borda caudal do processo espinhoso do axis. A agulha foi inserida cerca de 0,5 cm em um ângulo de 20º, e avançada cranialmente, paralela ao processo espinhoso, até a borda cranial do processo espinhoso do axis. Metade do volume foi injetado neste ponto e o restante, durante a retirada da agulha, totalizando 1,3 ml (figura 5)

Figura 5 – bloqueio caudal do nervo occipital maior (D1,D2). Esquema retirado de ² e foto de arquivo pessoal

A figura 6 mostra a área insensibilizada pelo bloqueio de cada nervo. Sobrepondo as três imagens, podemos perceber que todo do dorso do crânio é contemplado, unilateralmente.

Figura 6 – Área de insensibilização do bloqueio do crânio dorsal (https://veteriankey.com/cranial-nerves)

Para fins de comparação, a figura 7 mostra a localização anatômica dos principais nervos bloqueados para a realização do scalp block na medicina humana.

No total, foi utilizado 15 ml de bupivacaína a 0,25%, o que representou uma dose de 1,17 mg/kg de bupivacaína. O bloqueio foi realizado em 5 minutos.

A cirurgia foi bastante cruenta. Teve uma duração de 70 minutos. Durante todo o período transoperatório o paciente teve uma excelente estabilidade hemodinâmica, mantendo a pressão arterial sistólica entre 120 e 130 mmHg e a frequência cardíaca sempre ao redor dos 90 bpm, sendo interpretadas como bom controle da nocicepção.

Cerca de 15 minutos antes do término do procedimento, a infusão de fentanil foi interrompida, com o intuito de evitar demasiada depressão respiratória e recuperação prolongada após o término do procedimento. Os demais fármacos foram interrompidos ao final da cirurgia, com exceção do propofol, que foi interrompido após o curativo. O pós-operatório imediato constitui-se na administração de meloxicam 0,2 mg/kg e dipirona 25 mg/kg, ambos por via intravenosa. O paciente apresentou uma recuperação tranquila, aparentemente sem dor. No leito, já acordado, permitiu manipulação a palpação da cabeça, sem demonstrar desconforto. O resgate analgésico foi realizado 6 horas após a cirurgia, com tramadol 4 mg/kg, quando o paciente ficou inquieto e demonstrou desconforto à palpação.

Figura 7- Scalp block em humanos ³

Discussão e conclusão

A técnica é relativamente fácil de ser realizada, porém, requer tempo razoável para execução (principalmente se for realizada bilateral). Além de vários pontos de agulhamento, necessitamos estar familiarizados com os pontos anatômicos de referência. É uma técnica barata de ser realizada, pois dispensa o uso de equipamentos como neuroestimulador e ultrassom. Dentro da medicina veterinária, teria espaço em cirurgias como craniotomia para remoção de neoplasias intracranianas, hemorragia subdural, traumatismo cranioencefálico  e introdução do shunt para tratamento de hidrocefalia (derivação ventrículo-peritoneal). É evidente que não podemos inferir que toda a analgesia trans e pós-operatória foi resultado do bloqueio locorregional, afinal, foram utilizados outras fármacos com importante ação analgésica no protocolo anestésico, porém, a estabilidade hemodinâmica trans e o conforto pós-operatório são bons indicativos de que a técnica promoveu, pelo menos, um efeito sinérgico dentro deste protocolo analgésico. Um estudo com grupo controle seria necessário para afirmarmos o quanto o bloqueio do crânio dorsal contribui para analgesia e redução de outros fármacos. Nossa casuística é baixa para um trabalho como esse. Enquanto isso, podemos pensar em utilizar a técnica como parte do protocolo de analgesia multimodal, respeitando as doses dos fármacos utilizados, assim como possíveis alterações anatômicas dos pacientes.

Referências bibliográficas

1- GRUBB, TAMARA. e LOBPRISE, HEIDI. Local and regional anaesthesia in dogs and cats: Overview of concepts and drugs (Part 1). Veterinary Medicine and Science. 2020;00:1-9.

2- KUSHNIR, YISHAI. et. al. Description of a regional anesthesia technique for the dorsal cranium in the dog: a cadaveric study. Veterinary Anaesthesia and Analgesia. 2018, 45. p. 684-694.

3- LUBRANO, M. C., COSTELLOE, C.C. e YONG, R.J. Anesthesia and scalp blocks. In: LEE, L.N. Hair Transplant Surgery and Platelet Rich Plasma. Springer, 2020.

Rodrigo Corrêa Rosa

Médico Veterinário Anestesista autônomo; Formado na Universidade Federal de Santa Maria; Residência com ênfase em Clínica Médica pela Ulbra-Canoas; Pós-graduação em Anestesiologia pela Faculdade Qualittas.

Dalila Pozzatti

Formada no Centro Universitário Ritter dos Reis em 2021; Médica Veterinária Autônoma.

Karem Steffens Brondani

Formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2021 Médica Veterinária Autônoma

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