Desmistificando a pancreatite felina

Por Carla Santos

Desmistificando a pancreatite felina

Introdução

Os casos de pancreatite estão cada vez mais presentes na rotina de atendimento dos felinos domésticos. As alterações clínicas e laboratoriais presentes na pancreatite são inespecíficas, e não é incomum a presença de comorbidades como enteropatias crônicas e colangite, o que torna o seu diagnóstico desafiador. Nos últimos anos, o desenvolvimento de exames específicos não invasivos para avaliação da função pancreática felina e o aprimoramento das ferramentas de imagem aumentaram a chance do diagnóstico clínico dessa afecção.

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A pancreatite é uma inflamação do pâncreas exócrino. Em gatos é classificada em aguda ou crônica de acordo com avaliação histológica, e não pode ser diferenciada clinicamente. Em gatos, a maioria dos casos de pancreatite são de apresentação subclínica, e na prática é indistinguível um quadro de pancreatite aguda de uma pancreatite crônica agudizada. Um estudo que avaliou a prevalência da pancreatite por meio da avaliação histopatológica do pâncreas, aponta a prevalência de 45% de pancreatite em gatos aparentemente saudáveis.

Figura 1. Diferença na anatomia hepatopancreática em cães e gatos.

O pâncreas do gato apresenta algumas particularidades anatômicas que devem ser conhecidas e são importantes no quadro clínico da pancreatite. No gato, o terço distal do lobo pancreático direito segue a concavidade da alça duodenal, girando sobre si mesmo no sentido cranial. E a extremidade do lobo esquerdo costuma alcançar medialmente o corpo e a cabeça do baço. Essas informações devem ser empregadas durante a realização e avaliação de exames de imagem como a ultrassonografia abdominal, uma importante ferramenta para o auxílio do diagnóstico da pancreatite em gatos. Uma outra diferença anatômica crucial e implicada no processo de fisiopatologia da doença é a presença de um único ducto pancreático na maioria dos gatos e a fusão do ducto pancreático com o ducto biliar comum. Em cães o ducto pancreático e o ducto biliar comum desembocam individualmente no duodeno pela papila duodenal maior. No gato a porção distal do ducto biliar comum fusiona-se com o ducto pancreático formando a ampola de Vater dentro da parede duodenal, e em torno da ampola uma estrutura neuromuscular, chamada de esfíncter de Oddi, controla o fluxo pancreáticobiliar para o duodeno e previne o refluxo do conteúdo duodenal (Figura 1).

Etiologia e fisiopatogenia

A pancreatite aguda está associada à presença de infiltrado neutrofílico e edema intersticial com alterações pancreáticas passíveis de reversão. E ainda pode ser classificada como supurativa ou necrotizante onde ocorre, respectivamente, o predomínio de infiltrado neutrofílico ou predomínio de necrose de células acinares e gordura peri-pancreática. No caso da pancreatite crônica, há presença de um infiltrado inflamatório linfoplasmocitário e o tecido glandular é substituído permanentemente por fibrose e atrofia acinar. A pancreatite idiopática representa a maioria dos casos descritos em gatos.A etiologia e a fisiopatologia da pancreatite ainda não estão totalmente elucidadas na espécie. Não há predisposição quanto à raça, sexo e idade para o desenvolvimento de pancreatite em gatos. Agentes infecciosos como o Toxoplasma gondii, calicivirus, herpesvirus, e o vírus da peritonite infecciosa felina já foram associados à pancreatite aguda. Além de outras causas como neoplasia pancreática, trauma, intoxicação por organofosforados, hipercalcemia e até mesmo isquemia induzida por manipulação cirúrgica e hipotensão transoperatória. Há possibilidade sobre uma possível etiologia imunomediada da pancreatite crônica em gatos como ocorre em humanos.

A inflamação concomitante entre pâncreas, intestino delgado e fígado é descrita em gatos e denominada tríade felina. Algumas particularidades anatômicas, fisiológicas e condições de doenças favorecem a esse quadro clínico de inflamação simultânea na espécie. São elas: (1) A presença de um canal hepatopancreático comum; (2) O tamanho do intestino delgado menor que de maneira comparativa é menor que nos cães; (3) A concentração bacteriana duodenal elevada na espécie; (4) Presença de refluxo de conteúdo intestinal para o ducto pancreáticobiliar (esse refluxo é atribuído ao vomito frequente nas enteropatias crônicas que levam ao aumento da pressão intraduodenal).

Atualmente, diversos mecanismos estão implicados na fisiopatogenia da pancreatite em gatos. A ativação prematura das enzimas digestivas dentro das células acinares, levam a ativação de outros zimogênios, e resulta na auto-digestão pancreática. Esse é o mecanismo mais relevante na patogênese da pancreatite. Já o desenvolvimento espontâneo da pancreatite tem sido associado a algumas hipóteses como: a ativação dos zimogênios pela ação da enteroquinase carreada para o sistema de ductos pancreáticos por um refluxo de conteúdo pancreáticobiliar ou duodenal; ativação do tripsinogênio por uma protease lisossomal, a catepsina-b; a co-localização dos grânulos de zimogênios com proteases lisossomais tanto por bloqueio do polo apical da célula acinar como por problemas de sinalização de cálcio leva a ativação dos zimogênios; a ativação dos zimogênios pela trombina em caso de toxemia bacteriana, isquemia ou hipóxia; autoativação do tripsinogênio catiônico na presença de pH maior ou igual a 5.

A cascata inflamatória decorrente da pancreatite ainda não está complemente compreendida em gatos. No entanto, a ativação do fator nuclear Kappa B (NF-kB) envolvido no controle da expressão de diversos genes ligados à resposta inflamatória é enrolado no desenvolvimento da pancreatite independente da ativação do tripsinogênio em gatos. E esse fator é o que sustenta a resposta inflamatória na pancreatite felina.  Assim, há um influxo de neutrófilos, aumento da permeabilidade vascular e danos nas barreiras de proteção do polo apical das células acinares, que leva a injúria celular, pancreática, vascular e sistêmica. A gravidade de cada quadro irá depender da modulação das respostas anti-inflamatórias compensatórias de cada animal. Gatos com pancreatite crônica podem evoluir para insuficiência pancreática exócrina devido a atrofia acinar.

Alterações clínicas e diagnóstico

Os sinais clínicos associados tanto a pancreatite aguda quanto a crônica são inespecíficos. Em ordem de incidência os principais sinais clínicos são letargia, hiporexia/anorexia, vomito, perda de peso, diarreia e dispneia. No exame físico os principais achados são desidratação, hipotermia, icterícia, dor abdominal aparente e febre. A presença dos sinais e achados clínicos estão diretamente relacionados a gravidade de cada caso clínico. A dor abdominal é um sinal clínico comum em cães, já em gatos, talvez pela particularidade de “esconder” a dor pode ser subdiagnosticada. Outras alterações clínicas podem estar presentes, mas geralmente relacionadas a comorbidades.

O método de diagnóstico padrão ouro para pancreatite felina é o histopatológico. No entanto trata-se de um procedimento invasivo e pouco realizado na rotina clínica. A avaliação laboratorial das enzimas pancreáticas auxilia no diagnóstico da pancreatite e lesão das células acinares. Fisiologicamente, uma pequena quantidade dessas substâncias é liberada na circulação, e no caso de inflamação pancreática há um aumento na concentração sérica.  Em gatos com suspeita de pancreatite é indicado a avaliação sérica da imunorreatividade à lipase pancreática felina (fPLI – feline pancreatic lipase immunorreactivity). Esse teste possui alta especificidade para lipase pancreática e boa sensibilidade para diagnosticar a doença. A dosagem de fPLI pode ser feita por dois testes disponíveis comercialmente, o Spec fPLI® (realizado em laboratório de referência) e o SNAP fPL® (teste rápido, colorimétrico, realizado no consultório).  A diferença entre os testes diz respeito a capacidade de quantificar a concentração sérica da fPLI. O teste Spec fPLI® é um método quantitativo e traduz concentrações de fPLI superiores ou iguais a 5,4 µg/L em resultado positivo (provável) para pancreatite, valores menores ou iguais a 3,5 µg/L em resultado negativo e valores intermediários a esse como suspeito (zona cinzenta) para pancreatite.  Já o SNAP fPL® é um teste semiquantitativo que traduz apenas concentrações de fPLI menores ou iguais a 3,5 µg/L como resultado “normal” e valores maiores ou superiores a 3,6 µg/L como “anormal” (Figura 2).

Figura 2. Teste semiquantitativo e colorimétrico SNAP fPL®. A marcação circular no lado direito representa o controle e a marcação circular no lado esquerdo representa a concentração sérica de lipase pancreática. O resultado é interpretado como “normal” quando a marcação no lado esquerdo for ausente ou de menor intensidade de cor que o controle, e anormal quando a marcação for mais intensa que a do controle. A) Resultado para concentração sérica “normal” de lipase pancreática felina. B) Resultado para concentração sérica “anormal” de lipase pancreática felina.

Outros exames laboratoriais como hemograma, avaliação de eletrólitos, glicemia, dosagem sérica das enzimas hepáticas (ALT, AST, FA, GGT), creatinina, ureia, cobalamina, folato e urinálise devem ser realizados para avaliar a condição geral do paciente. Além disso, é necessário realizar o diagnóstico diferencial para outras afecções gastrointestinais e avaliar a presença de comorbidades

Apesar do desenvolvimento de testes específicos como SNAP fPL® e Spec fPLI® o diagnóstico da pancreatite ainda é desafiador.  A sensibilidade desses testes é limitada pela gravidade da doença, o que dificulta o diagnóstico em quadros subclínicos. Uma associação entre avaliação clínica e métodos de diagnóstico laboratorial e de imagem é importante para o diagnóstico da pancreatite em gatos. A ultrassonografia é uma ferramenta valiosa na avaliação do pâncreas, apresenta boa sensibilidade, apesar de ser operador dependente (Figura 3). Na avaliação ultrassonográfica de rotina do pâncreas felino deve ser avaliado a espessura do lobo esquerdo (valor de referência: 5 – 9 mm), lobo direito, ducto pancreático, ecogenicidade do parênquima e do mesentério ao redor. Os achados ultrassonográficos de gatos com pancreatite incluem o aumento da espessura do pâncreas, parênquima pancreático hipoecogênico ou ecogenicidade heterogênea, margens pancreáticas irregulares, heperecogenicidade mesentérica peripancreática e presença de efusão abdominal focal.

Figura 3. Imagem ultrassonografia do pâncreas felino sem alteração. A) Lobo pancreático direito com 4,2 mm de espessura (referência: 3 – 6 mm) e ducto pancreático com 1,3 mm (referência: 0,5 a 2,5 mm). B) Lobo pancreático esquerdo com 4,4 mm (referência: 5 – 9 mm)

Em resumo, o diagnóstico definitivo de pancreatite é realizado somente em pacientes com análise histopatológica pancreática. Na rotina clínica, quando o exame histopatológico não for uma opção, podemos diagnosticar um caso de provável pancreatite (gatos com alterações clínicas, laboratoriais e de imagem ultrassonográfica), caso suspeito de pancreatite (gatos com alterações clínicas compatíveis, sem alteração de imagem ultrassonográfica) e de improvável pancreatite (gatos com alterações clínicas compatíveis, sem alteração de imagem ultrassonográfica, com comorbidades de sinais clínicos semelhantes).

Tratamento

O tratamento da pancreatite aguda e crônica é sintomático, quando identificada a causa primária esta deve ser removida, no entanto, ainda não há um tratamento específico. O quadro clínico da pancreatite aguda requer uma intervenção clínica rápida e intensiva devido as alterações de desiquilíbrio hidroeletrolítico, gastrointestinais, dor e o déficit nutricional devido a anorexia. A fluidoterapia para correção da desidratação e manutenção da volemia é de crucial importância no manejo da pancreatite, uma vez que auxilia na perfusão pancreática. O cristalóide Ringer com lactato é o fluido de escolha, e além de corrigir a desidratação, auxilia controle da acidose metabólica presente no quadro clínico da pancreatite. O citrato de maropitant (antagonista do receptor NK1) é o antiemético de eleição para o controle da náusea e do vomito em gatos com pancreatite. Em algumas ocasiões a associação de mais de um agente antiemético se faz necessário, como o cloridrato de ondansetrona (antagonista dos receptores 5-HT3), com objetivo de melhor controle sintomático gastrointestinal.

Em particular, a espécie felina apresenta a característica de “esconder” a dor, o que faz desse sinal clínico não tão evidente. No entanto, na pancreatite em humanos e cães, a dor abdominal é um sinal clínico marcante. Assim, a analgesia no paciente felino com pancreatite não deve negligenciada e o uso de um opioide é recomendado. Em humanos com pancreatite aguda, o suporte nutricional precoce melhora a motilidade gastrointestinal, previne a atrofia das vilosidades intestinais, melhora o fluxo sanguíneo intestinal e auxilia na manutenção da microbiota intestinal. Já em felinos, ainda há limitação quanto a informação de qual o manejo nutricional adequado, mas há o consenso que o suporte nutricional precoce fornece os mesmos benefícios. O uso de estimulante de apetite, em particular a mitarzapina que também apresenta ação antiemética, é recomendado no manejo da anorexia de gatos com pancreatite.  O uso de sonda esofágica para suporte nutricional se faz necessário nos animais que não respondem ao estimulante de apetite. Vale a pena ressaltar, que a anorexia prolongada está relacionada ao desenvolvimento da lipidose hepática felina.

O uso de antibióticos não é recomendado, a não ser na presença de forte suspeita ou confirmação de infecção bacteriana. No geral, a indicação está presente frente a abscesso e necrose pancreática, alterações laboratoriais compatíveis com infecção bacteriana e risco de sepse. Em gatos, a estreita relação entre a pancreatite e as enteropatias crônicas e colangite aumenta a necessidade do uso de antibiótico e o uso de glicocorticoide. Na pancreatite crônica, onde há inflamação e posterior fibrose do tecido glandular, o uso da prednisolona como agente anti-inflamatório e imunossupressor tem potencial ação antifibrótica. Gatos com pancreatite que fazem uso de glicocorticoide precisam ter monitorização da glicemia, porque tanto a doença pancreática quanto o uso desse fármaco, são fatores de risco para o desenvolvimento da Diabetes mellitus. Em caso de hiperglicemia, a ciclosporina é uma opção terapêutica devido a sua ação imunossupressora. O paciente que apresenta o resultado sérico de fPLI alterado no início do tratamento pode ser monitorado a cada duas ou três semanas quanto a evolução laboratorial desse parâmetro. Em resumo, a pancreatite felina é uma afecção comum na rotina clínica e que exige grande dedicação para seu diagnóstico bem como manejo clínico.

Referências:

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Carla Regina G. R. Santos

Graduada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense. Pós Graduada em cirurgia de pequenos animais pela Universidade Castelo Branco. Mestre em Medicina Veterinária com ênfase em Felinos pela Universidade Federal Rural do rio de Janeiro (UFRRJ). Aluna de doutorado do Programa de Pós Graduação em Medicina Veterinária com ênfase em Felinos pela UFRRJ. Preceptora do Programa de Residência de Clínica Médica dos Gatos Domésticos da UFRRJ.

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