Alimentação natural em clínica veterinária: quando receitar?

Saiba o que é importante na hora de prescrever ou não este tipo de nutrição aos seus pacientes

Cada vez mais, nos preocupamos com o que comemos e os benefícios ou malefícios que os alimentos podem trazer para o nosso organismo e a nossa saúde. Já se sabe que muitas doenças podem ser desenvolvidas ou evitadas com base na alimentação e isso não é diferente para os cães e gatos. Para saber mais sobre o assunto, conversamos com o médico veterinário e nutricionista Luis Fernando de Moraes, um dos pioneiros na área de nutrologia e nutrição funcional de pequenos animais. Ele é professor de pós-graduação em nutrição e medicina funcional e atua na Clínica veterinária PetSafe (Cariacica/ES). Segundo o especialista, nos Estados Unidos, quase 50% dos cães comem algum tipo de dieta caseira. No Brasil, a expectativa é que, nos próximos anos, 10% do mercado de nutrição de cães e gatos esteja concentrado na alimentação natural. Isso porque já existem no país diversas empresas que atuam fornecendo dietas naturais prontas e a tendência é crescer. Leia sobre as recomendações na entrevista!

Revista Medicina Veterinária em Foco: Como avalia a aceitação da AN hoje entre os médicos veterinários?

Luis Fernando de Moraes: Primeiro, gostaria apenas de fazer uma observação sobre o termo “alimentação natural”. O correto não seria alimentação natural, mas sim dieta caseira, pois quando adicionamos vitaminas ou outras substâncias sintéticas ao alimento, ele passa a ser considerado uma dieta caseira. Quando se fala em AN, todos os alimentos devem ser totalmente naturais. É uma modalidade complicada, pois é necessário haver a suplementação que, muitas vezes, é sintética.

Sobre o mercado de dieta caseira no Brasil, posso afirmar que há um crescimento muito grande, uma aceitação maior dos clínicos de uma forma geral. Na verdade, antigamente, os animais eram alimentados com comida, mas tinham muitos problemas porque era uma alimentação desbalanceada, com destaque para o cálcio e fósforo, o que levava ao desenvolvimento de osteodistrofias. Aí entrou a ração no mercado, com toda a sua praticidade e resolveu o problema, que era muito sério na época. Atualmente, existe uma visão de trabalhar com a dieta caseira novamente, mas de forma balanceada. Hoje vejo que os veterinários se preocupam com o tema, buscam cursos de pós-graduação, de curta duração e até palestras, para que possam formular uma dieta balanceada, mas sempre avaliando o que é melhor para a alimentação do seu paciente, seja a ração, a dieta caseira ou a mistura dos dois. Eu defendo que o médico-veterinário tenha conhecimento de nutrição para que possa decidir o que é melhor para cada paciente. Vejo que o mercado tem muito a crescer, mas espero que seja de uma forma responsável, pois ainda vemos muitas dietas sendo oferecidas com desequilíbrio dos nutrientes.

Luis Fernando de Moraes – Foto: divulgação

RMVF: Como o alimento pode influenciar no bem-estar, saúde e ainda na melhora de um paciente?

Luis Fernando: Quando se trabalha com nutrição é preciso entender o conceito da genômica nutricional. Ela se divide em dois braços importantes, que são a nutrigenômica e a nutrigenética. A nutrigenômica seria a atuação que um nutriente pode ter no gene. Ao comer um alimento, ele terá a ação de “ligar” ou “desligar” a expressão de alguns genes, isto é, o nutriente atua nos aspectos dos fatores transcrição, enviando respostas para a célula trabalhar de uma outra forma. Já a  nutrigenética seria o contrário, com a genética atuando na forma como recebemos este nutriente no nosso organismo. Então, cada indivíduo é diferente do outro do ponto de vista nutricional, ou seja, um alimento que faz bem para mim pode não fazer a outra pessoa. O mesmo ocorre com os animais, assim, a alimentação deve ser feita de forma individualizada. Isso é o que mais preconizamos no atendimento, que é individualizar ao máximo o paciente para trazer maiores benefícios para ele. Isso quer dizer que cada um nasceu com uma quantidade ideal a ser ingerida de cada nutriente, como carboidrato, proteínas, lipídios, vitaminas.

Os resultados clínicos de uma dieta natural são excelentes para a prevenção e o tratamento de diversas enfermidades crônicas-degenerativas, em dermatopatias alérgicas, pacientes oncológicos e renais, além de quadros de obesidade, em que vemos os resultados de forma muito rápida.

RMVF:  Quais são os maiores entraves para que este tipo de dieta seja realizada adequadamente?

Luis Fernando: Os maiores entraves estão relacionados à praticidade. Isso porque exige do tutor comprar uma balança, pesar os alimentos, fazer a suplementação adequada, seja com suplementos prontos do mercado ou fórmulas manipuladas. Sempre exijo que o tutor assine um termo de responsabilidade, se comprometendo a realizar a suplementação recomendada e, para que leve a sério, a fim de evitar o desenvolvimento de problemas de saúde no animal. Por isso, um dos entraves é justamente ter que fazer a suplementação para ter o balanceamento desta dieta. Outro ponto é que o alimento precisa ser congelado ou preparado no dia. Isso vai depender da preferência de cada tutor. Existem empresas que fazem as dietas personalizadas, que entregam congeladas, trazendo mais praticidade para o tutor. O alimento deve ser consumido rapidamente pelo animal, não deve permanecer por mais de uma hora no pote. Por ser um alimento úmido, tem uma deterioração maior do que a ração. Outro entrave ainda ocorre com animais de grande porte, pois a quantidade de alimento a ser fornecido é muito grande para atender a necessidade energética deles. Assim, se o tutor quiser fazer, vai precisar de um freezer em casa somente para o pet. Fica um pouco complicado, ao contrário dos animais de pequeno e médio porte.

Hoje temos opções de dietas prontas, feitas por empresas e as opções formuladas por veterinários. Eu aconselho utilizar as empresas para fazer a dieta quando são prescritas pelo veterinário, pela facilidade de receber tudo congelado em casa. Isso reduz o trabalho do tutor em cozinhar e congelar os alimentos, uma praticidade, mas com custo maior.

RMVF: Quais os maiores erros que o veterinário pode cometer ao preparar uma dieta caseira para um paciente?

Luis Fernando: O maior erro que pode acontecer, com certeza, é o veterinário oferecer uma dieta desbalanceada. Dieta caseira não é simplesmente pegar arroz, carne e um legume e oferecer ao pet. Isso tem que ser bem feito, com critério, utilizar softwares e programas que ajudem o profissional a avaliar a dieta como um todo e somente indicar ao tutor uma dieta com níveis nutricionais adequados e de acordo com a individualidade de cada paciente. Também é um erro do veterinário não focar com o tutor a necessidade de fazer a suplementação adequada sempre. É preciso reforçar sempre que, para aderir a uma dieta caseira, é preciso realizar a suplementação. O veterinário tem a obrigação de indicar e ser muito incisivo quanto à importância de suplementar a dieta, seguir o cardápio recomendado, retornar para a avaliação do animal justamente para fazer um acompanhamento adequado.

RMVF: Quais doenças crônicas têm maior resultado com a mudança da dieta para a caseira?

Luis Fernando: Os casos de câncer, doenças renais – em que o animal tem mais dificuldade para comer, hipersensibilidade alimentar – para fazer uma dieta de exclusão, para alterações digestivas – em que o animal não tem respostas satisfatórias ao tratamento convencional e casos de obesidade. Assim, a dieta caseira entra como parte do tratamento, uma possibilidade terapêutica que o clínico deve saber utilizar em situações específicas. Isso vale para todas as doenças que o paciente não responde às terapias convencionais. Normalmente, traz resultados muito positivos para os pacientes feitos desta forma: com suplementação e dieta específica para cada condição. Mas desde que o tutor se comprometa com o tratamento correto.

RMVF: Pode nos relatar alguns casos que melhoraram após mudança nutricional?

Luis Fernando: Tenho um relato de caso de uma Shih Tzu, com diagnóstico de atopia e que foi feita dieta de exclusão, com fonte de proteína nova (rã) e novas fontes de carboidratos. Também sugeri uma suplementação para fazer a hidratação da pele desta paciente e contribuir para a formação das ceramidas de uma forma muito importante. Assim, ficou comprovado que ela tinha uma hipersensibilidade alimentar e não atopia. Vejo muitos casos assim, tanto de alunos como de colegas que trabalham com este tipo de terapia.

Isso porque existem dois tipos de atopia, a primária – que o animal nasce com ela – ou secundária – que ele desenvolve devido à uma hipersensibilidade alimentar. Nos casos de atopia secundária, que são mais comuns, quando você entra com uma dieta de exclusão, você reduz o processo inflamatório cutâneo e o corpo começa a produzir as ceramidas. Para isso, é necessário incluir na alimentação alguns nutrientes importantes como a biotina, o ácido pantotênico, o magnésio, as vitaminas do Complexo B, vitamina A e zinco, que são elementos fundamentais que suplementamos de forma otimizada – com valores um pouco acima do mínimo recomendado para a espécie, para facilitar a produção de ceramidas. O óleo de borragem também é importante nestes casos, apesar de ser um ômega-6, ele tem uma ação anti-inflamatória e também é precursor importante da ceramida.  Fica claro que tudo no corpo depende dos nutrientes. Já os casos de pacientes atópicos primários, com a dieta e suplementação, há uma resposta muito boa também, melhorando a prurido e a barreira cutânea, modulando o processo inflamatório, reduzindo o uso de corticoides e com isso obtendo os resultados clínicos.   

Outras condições comuns são com pacientes renais, que ficam sem apetite. Com uma dieta balanceada e mais palatável, com a quantidade de fósforo extremamente baixa e com suplementação adequada. Estes pacientes ficam bem melhor, tem uma vida com muito mais qualidade, independentemente da fase de estadiamento da doença, conseguem melhorar muito.

Também tenho casos de animais com disfunção cognitiva, que andavam em círculos pela casa. Com dieta e suplementação, têm uma melhora muito boa na parte de cognição. São inúmeros casos que podem ser relatados.

Os resultados clínicos são excelentes para a prevenção e o tratamento de diversas enfermidades crônicas-degenerativas, além de quadros de obesidade – Foto: iStock.com/Fly_dragonfly

RMVF:  Quais cuidados ter ao orientar o tutor para a troca de alimentação?

Luis Fernando: A troca da alimentação deve ser gradativa, com a utilização concomitante de prebióticos e probióticos para regular o intestino e normalmente não ocasiona nenhum problema. A exceção são para casos de animais que descobre-se uma sensibilidade a algum alimento. Nestes casos, os animais podem apresentar episódios de vômito ou diarreia e é necessário mexer na dieta. No entanto, não é a realidade da maioria dos casos.

RMVF: Qual a necessidade da suplementação? O que você indica aos seus pacientes?

Luis Fernando: A suplementação é extremamente necessária. Existe uma modalidade da dieta caseira em que é possível trabalhar com multidietas, o que reduz a necessidade de suplementação devido à variedade de vitaminas e minerais oferecidos. Mesmo assim, há a necessidade de suplementar. Isso porque alguns nutrientes vão naturalmente faltar e, para se adequar às diretrizes e guidelines da nutrição veterinária, é necessária a suplementação. Até porque muitos destes alimentos são congelados e não temos estudos que nos informem o quanto de nutrientes são perdidos pela ação do cozimento e do congelamento dos alimentos. A suplementação garante que os nutrientes estejam nas quantidade necessárias no organismo. Isso porque uma célula, para sobreviver e não ter uma doença, necessita dos nutrientes essenciais.

RMVF: Quais casos você não recomenda a dieta caseira?

Luis Fernando: Não recomendo para os tutores que não têm o perfil ou por questões financeiras, que não têm como preparar o alimento ou pagar uma empresa para entregar a refeição pronta para ele. Também não recomendo para tutores que não oferecem tantos cuidados ao pet, pois a dieta caseira é indicada para uma pessoa mais preocupada com o animal, que quer sempre o melhor para o pet, que está disposto a gastar o tempo e perder um pouco da praticidade na hora de alimentar o animal. Por isso, converso muito com eles sobre as dificuldades de colocar no freezer, de fazer o animal comer na hora, de preparar a quantidade certa e levar quando for viajar com o pet. Se o tutor tiver o perfil, partimos para a mudança para a dieta caseira. Também não indico para animais de porte grande e gigante, que comem uma quantidade muito grande de alimentos. Nestes casos, podemos fazer um mix de ração com a dieta caseira. A escolha é sempre do tutor, mas vai depender desta conversa com o veterinário para verificar a melhor estratégia de tratamento para o paciente, de forma individualizada.

RMVF: Para o médico veterinário que deseja se especializar na área, quais são os seus conselhos?

Luis Fernando: Recomendo que procure cursos na área. Sou palestrante e professor de cursos. No primeiro semestre vou ministrar o curso “Alimentação Natural e Medicina Nutracêutica em Felinos” e o “Alimentação Natural e Medicina Nutracêutica em Cães” no segundo semestre. Existem cursos de pós-graduação de Nutrição e Nutrologia, focado para o médico veterinário. Este último auxilia muito o veterinário a interpretar as condições clínicas e indicar o tratamento com a nutrição clínica. Além de diversos cursos de curta e longa duração. Recomendo começar pelos mais básicos e depois, se gostar, partir para uma pós-graduação em nutrologia.

 

Por Bárbara Freire