INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA MEDICINA VETERINÁRIA: UM CAMINHO SEM VOLTA

NAS DIFERENTES ESPECIALIDADES, A TECNOLOGIA DE IA VEM TRAZENDO DIVERSOS AVANÇOS, MAS TAMBÉM MUITOS DEBATES E CERTA RESISTÊNCIA EM SEU USO

Foto: Alena Butusava/iStock

Por: Samia Malas

Nos últimos meses muito se tem falado sobre o uso da Inteligência Artificial (IA) nas mais diferentes áreas, inclusive na Medicina Veterinária, que vem obtendo ganhos como a maior precisão de diagnósticos e o monitoramento da saúde de animais de estimação. Em nota oficial, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) se pronunciou a respeito do uso de IA no meio veterinário, comunicando que estão “atentos às transformações impulsionadas pela regulamentação da telemedicina e pelo uso da inteligência artificial, ferramentas que prometem aprimorar o manejo e o tratamento dos animais com mais eficiência e precisão. O CFMV seguirá atuando de forma proativa na regulamentação e no aperfeiçoamento dessas novas práticas, garantindo que a inovação caminhe sempre ao lado da ética e da responsabilidade profissional.”
Segundo o Prof. Dr. Rodrigo Rabelo, de Brasília-DF, diretor da Intensivet e CEO da Intensivet Saúde Digital, a IA já é uma realidade na Medicina Veterinária. “Esta tecnologia vem sendo usada de várias formas e, no Grupo Intensivet, isso já faz parte do nosso dia a dia. A IA está ajudando muito no diagnóstico por imagem, analisando raio-x, ultrassom, tomografia. Esses algoritmos conseguem identificar padrões que, muitas vezes, passariam despercebidos no olho humano. Isso acelera o diagnóstico e melhora a tomada de decisão”, aponta Rabelo, que ainda continua: “Na telemedicina, que estamos desenvolvendo com o Intensivet Saúde Digital (ISD) e o Vetias, a IA ajuda a organizar os casos, sugerir condutas baseadas em protocolos e até na triagem inicial, tornando tudo mais rápido e assertivo. Na UTI veterinária, onde o tempo é crucial, a IA já está ajudando a monitorar os pacientes graves, analisando dados em tempo real e alertando quando algo sai do padrão. Isso proporciona um suporte absurdo para a equipe médica e melhora muito o prognóstico dos bichos internados. E tem mais: a IA também já está ajudando na gestão das clínicas, organizando fluxo de atendimento, estoque, agendamento… Isso tudo melhora a experiência do tutor e evita aqueles gargalos operacionais que atrapalham a rotina da equipe.” Dr. Rabelo também diz que a IA tem sido usada, inclusive, na educação. “No Intensivet Play utilizamos a IA para personalizar a jornada de aprendizado dos alunos. A plataforma consegue sugerir conteúdos com base no que cada um precisa melhorar, tornando o ensino mais direcionado e eficiente. Ou seja, a IA não é mais futuro, é presente! E quem não começar a olhar para isso agora, vai ficar para trás. Aqui na Intensivet, já entendemos que essa tecnologia veio para somar e estamos fazendo o possível para aplicá-la onde ela realmente faz a diferença”, completa.

IA NA CARDIOLOGIA
Segundo Renata Répeke, médica-veterinária pós-graduada em Cardiologia e influenciadora digital (@vet_renatarepeke), de São Paulo-SP, a cardiologia veterinária também é uma área que está passando por uma transformação impulsionada pela IA, especialmente na área de eletrocardiografia (ECG). “O uso crescente de IA na interpretação de sinais eletrocardiográficos de cães e gatos tem mostrado avanços notáveis na precisão diagnóstica, redução de erros e detecção precoce de condições cardíacas. Esses avanços estão impactando diretamente o cuidado clínico veterinário, melhorando os resultados para animais de estimação e otimizando o trabalho dos profissionais de saúde animal”, aponta a médica-veterinária. 
Ainda segundo ela, a análise manual de ECGs pode ser demorada e suscetível a erros humanos, especialmente em ambientes com alta demanda.
“A IA, por sua vez, tem a capacidade de processar grandes volumes de dados de ECG de maneira rápida e eficiente, identificando anomalias que podem passar despercebidas em uma análise humana, como arritmias, bloqueios cardíacos e fibrilações. A precisão automatizada não só acelera os diagnósticos, mas também os torna mais confiáveis, fornecendo aos veterinários uma ferramenta robusta para identificar doenças cardíacas em seus pacientes. Isso significa que veterinários podem contar com uma ‘segunda opinião’ automatizada que valida e aprimora seus próprios achados clínicos”, afirma.
Assim, Renata aponta que o monitoramento contínuo é uma das áreas mais promissoras no uso de IA na cardiologia veterinária. “Dispositivos integrados com IA podem monitorar o coração de animais de estimação em tempo real, emitindo alertas automáticos para os veterinários ao detectar irregularidades. Isso é especialmente importante para pacientes de alto risco, que podem ter suas condições acompanhadas sem a necessidade de visitas constantes à clínica.
Com essa tecnologia, intervenções rápidas podem ser realizadas, prevenindo complicações graves e potencialmente fatais”, diz, e ainda continua: “nos Estados Unidos, o uso de IA em eletrocardiografia veterinária já está em crescimento. Empresas e startups têm desenvolvido softwares de análise automática de ECG, bem como plataformas de telemedicina que integram IA para fornecer suporte remoto e imediato aos profissionais veterinários. Dispositivos como os desenvolvidos pela empresa AliveCor, que já são utilizados em humanos, estão sendo adaptados para o monitoramento contínuo de animais de estimação. Essas inovações estão transformando o cuidado cardíaco animal, tornando-o mais acessível e eficiente.”
Além de auxiliar no diagnóstico, Renata diz que a IA também tem grande potencial na pesquisa, possibilitando a identificação de novos padrões em doenças cardíacas e contribuindo para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes. “Ao analisar grandes volumes de dados, os pesquisadores podem fazer descobertas que de outra forma não seriam possíveis, abrindo portas para novas abordagens terapêuticas que beneficiam tanto cães quanto gatos”, explica.

Foto: Divulgação
“O impacto da IA na Medicina Veterinária não deve ser visto como uma ameaça, mas como uma evolução que exige
atualização e aprimoramento dos profissionais” diz Renata Répeke, especializada em Cardiologia

IA VAI ACABAR COM FUNÇÕES?
O medo da substituição do médico-veterinário é outro ponto crítico do uso de IA, diz Rabelo “Muitos veterinários ainda veem a IA como uma ameaça, quando, na real, ela é só um suporte para que tomemos decisões melhores e mais rápidas. Mas essa falta de conhecimento gera resistência. Primeiro, porque ninguém ensinou isso na graduação, então os profissionais saem da faculdade sem saber nem por onde começar; o que aprendem estão vendo na rede social sem qualquer estrutura acadêmica. Assim, muitos chegam no mercado sem uma base mínima em IA, sistemas digitais e gestão de dados. O que acontece? Eles veem a IA como um obstáculo, e não como uma ferramenta para facilitar a vida. Depois, o dia a dia é corrido, e se a tecnologia não for intuitiva e integrada na rotina, ninguém vai parar para usar”, lista Dr. Rabelo.
Para o especialista, nenhuma área da Medicina Veterinária está ameaçada pela IA a ponto de acabar com uma função. “Mas existe sim algumas funções sendo transformadas. Por exemplo, a área de laudos, que muitas pessoas acham que está em risco. Hoje a IA já consegue analisar exames de imagem – como Raio-X, Ultrassom, Tomografia e Ressonância Magnética com uma precisão impressionante (assim como nos exames de cito e histopatologias), identificando padrões e lesões que poderiam passar despercebidas ao olho humano. Mas a IA não vai substituir o raciocínio clínico, pois sem o humano fica perigoso demais. Ela te fornece informações e análises técnicas, mas quem interpreta o contexto geral e toma a decisão final ainda é o médico-veterinário. O que vai acontecer, na verdade, é que a função de quem emite laudos vai mudar. Aquele trabalho manual e repetitivo de analisar centenas de imagens pode ser automatizado, mas o profissional vai se tornar um especialista em avaliação crítica e validação, agregando o contexto clínico, histórico do paciente e outras variáveis que a IA não consegue interpretar. Ou seja, a IA vai deixar o trabalho mais ágil, mas a responsabilidade continua sendo do médico-veterinário. No geral, vejo que a IA está tirando tarefas operacionais e permitindo que os profissionais foquem no que realmente importa: o raciocínio clínico e o contato humano com o paciente e o tutor do animal de estimação. Quem entender essa mudança e se adaptar, vai surfar nessa onda. Quem resistir e tentar trabalhar como fazia há 10 anos, pode sim se sentir ameaçado, porque o mercado está mudando rápido”, explica.
Renata, que é especializada em cardiologia e, há algum tempo, também atua na análise de eletrocardiograma e Holter em medicina humana, aponta que, mesmo nessa área, onde os equipamentos são altamente avançados, a IA desempenha um papel importante, especialmente na realização de mensurações automáticas. “No entanto, ainda é essencial o olhar atento do analista para validar ou corrigir informações antes da emissão do laudo. Esse cenário mostra que, apesar dos avanços, a supervisão humana continua indispensável para garantir a precisão e a confiabilidade dos diagnósticos. Em outras áreas, como atendimento clínico, cirurgia e anestesiologia, a IA tem sido usada como suporte, mas não substitui o fator humano, que é essencial para a tomada de decisão, sensibilidade ao paciente e comunicação com os tutores. Assim, o impacto da IA na Medicina Veterinária não deve ser visto como uma ameaça, mas como uma evolução que exige atualização e aprimoramento dos profissionais”, opina Renata.
Outro fator que contribui para essa hesitação dos profissionais é a falta de regulamentação específica, o que gera insegurança sobre a real aplicabilidade dessas ferramentas, diz Renata.
“No entanto, à medida que a IA se consolida como um auxílio valioso, cresce a percepção de que a tecnologia pode otimizar processos, aumentar a precisão diagnóstica e permitir que os veterinários se concentrem em atividades mais estratégicas e no atendimento individualizado dos pacientes”, acrescenta.

Foto: Divulgação
“A IA não é mais futuro, é presente! E quem não começar a olhar para isso agora, vai ficar para trás. Aqui na Intensivet, a gente já entendeu que
essa tecnologia veio para somar e está fazendo o possível para aplicá-la onde ela realmente faz a diferença” diz Prof. Dr. Rodrigo Rabelo, da Intensivet

OUTROS DESAFIOS E INCERTEZAS
A incorporação da inteligência artificial na Medicina Veterinária traz benefícios, mas também gera incertezas e desafios importantes. “A necessidade de mais estudos de validação e a adaptação dos algoritmos para a diversidade de raças, tamanhos e condições de saúde são questões importantes. No entanto, à medida que mais pesquisas são realizadas e mais dados são coletados, esses obstáculos certamente serão superados”, acrescenta a médica-veterinária.
A dependência excessiva da IA é outro fator que deve ser considerado, segundo Rabelo. “A automação pode reduzir a necessidade das novas gerações de veterinários de treinar habilidades fundamentais de interpretação, tornando os profissionais menos preparados para situações complexas ou atípicas”, alerta. Dr. Rabelo reforça que a IA já está funcionando bem em várias áreas e o problema não é onde ela poderia estar sendo eficiente, e sim onde ela ainda não está porque esbarra na aceitação dos médicos-veterinários.
“Os clínicos plantonistas, por exemplo, estão sobrecarregados e, no meio do caos de um plantão, pedir para eles pararem para preencher mais dados ou consultar uma IA parece um peso extra, não uma ajuda. A tecnologia existe, mas a rotina corrida faz com que muita gente não consiga ou não queira usar. Então, a IA está avançando onde a aceitação é natural – diagnóstico por imagem, automação de processos e telemedicina estruturada.
Mas ainda temos resistência no chão de hospital e na rotina clínica por falta de educação básica na faculdade e porque o dia a dia já é puxado o suficiente”, opina Rabelo.

DILEMAS ÉTICOS DA IA
“Se a IA sugere um diagnóstico errado ou uma conduta inadequada, quem responde?”, provoca Dr. Rabelo. “O médico-veterinário que seguiu a recomendação ou a empresa que desenvolveu o sistema? No final, a decisão ainda é nossa, mas essa influência da tecnologia levanta dúvidas.
Porém, se os profissionais confiarem cegamente nas análises automatizadas sem questioná-las, podem ocorrer erros que comprometam o diagnóstico e o tratamento. Errar faz parte do nosso aprendizado, mas errar confiando numa IA que deu um palpite errado é algo que preocupa”, aponta médico-veterinário.
“Um dos principais desafios é definir até que ponto a IA pode atuar sem comprometer a responsabilidade do profissional. Assim, a decisão clínica final deve ser do veterinário, garantindo que a tecnologia funcione como suporte e não como uma substituição do olhar crítico humano”, ressalta Renata.
Outro ponto levantado por Dr. Rabelo é a preocupação com a desumanização do atendimento. “A veterinária tem um lado emocional muito forte, tanto para os tutores quanto para nós, e muitos temem que, se tudo ficar automatizado, essa conexão se perca. Existe também a questão da privacidade dos dados. Para a IA funcionar bem, ela precisa de uma base gigante de informações clínicas. Mas até onde podemos compartilhar isso? Como garantir que esses dados não serão usados para outros fins?”, indaga Dr. Rabelo.

IA VEIO PARA FICAR
“A revolução da inteligência artificial na cardiologia veterinária já está em curso, e os impactos positivos são inegáveis. Com a IA, o diagnóstico de doenças cardíacas em animais de estimação se torna mais rápido, preciso e acessível, permitindo que os veterinários ofereçam cuidados ainda melhores. O futuro da cardiologia veterinária promete ser mais tecnológico, e essa transformação, além de otimizar o trabalho dos profissionais, oferece aos nossos pacientes a chance de viverem mais saudáveis e com maior qualidade de vida”, finaliza Renata.
Para Dr. Rabelo, o caminho para quebrar essa barreira de aceitação da IA na Medicina Veterinária é o treinamento e a mudança de cultura.
“Quando o veterinário entender que a IA não vai aumentar nem roubar o trabalho dele, mas sim dar um suporte e otimizar tempo, a aceitação vai aumentar. Mas, para isso, precisamos integrar essa formação desde a base e tornar o uso da tecnologia algo natural no dia a dia da profissão”, encerra Dr. Rabelo.
E você? Saberia identificar se esta reportagem foi escrita com o uso de IA? Ou se a entrevista foi dada pelos próprios profissionais ou por algum assistente carregado com tudo o que pediram para falar?