CONTER O AVANÇO DO VETOR, MONITORAR O NÚMERO DE INFECTADOS E OBTER UM DIAGNÓSTICO PRECOCE DOS ANIMAIS E HUMANOS DOENTES SÃO OBSTÁCULOS PARA O CONTROLE DA DOENÇA
Por: Samia Malas
Segundo o Ministério da Saúde a leishmaniose visceral (LV) é uma zoonose de evolução crônica, com acometimento sistêmico e, se não tratada, pode levar a óbito até 90% dos casos. É transmitida ao homem e ao cão pela picada de fêmeas do inseto vetor infectado, o flebotomíneo (conhecido popularmente como mosquito palha, tatuquiras, birigui, dentre outros). No Brasil, a principal espécie responsável pela transmissão é a Lutzomyia longipalpis. A LV é uma doença parasitária que afeta órgãos internos, como fígado, baço e medula óssea.
De acordo com Tiago Reis Conceição, médico-veterinário, sócio e diretor do Centro Veterinário Prontovet, referência em atendimento clínico em leishmaniose no Rio Grande do Sul, o desequilíbrio ambiental, a falta de informações de valor e a negligência e diagnósticos tardios em seres humanos colaboram, e muito, para a silenciosa expansão de casos de leishmaniose visceral no Brasil. “Somos um dos países com o maior número de diagnósticos no mundo e, hoje pode-se se dizer que, praticamente, a doença está presente em todos os estados da federação. O próprio serviço de teleatendimento já registrou casos em todos os estados do Brasil e até fora dele como Argentina, Colômbia, Paraguai, Portugal e Panamá”, acrescenta Tiago, que também é sócio-diretor técnico do Virtual Leish, primeiro consultório no mundo especializado em atendimento de leishmaniose canina e felina através da telemedicina.
O médico-veterinário Francisco Edilson Ferreira de Lima Júnior, integrante da Comissão Nacional de Saúde Única do Conselho Federal de Medicina Veterinária, destaca que, conforme última estratificação de risco adotada pelo Ministério da Saúde, dos 51 municípios com intenso e muito intenso risco de transmissão da LV, 65% estão concentrados nos estados do Pará (13), Tocantins (11) e Maranhão (9). Porém, Tiago alerta: “os estados do nordeste são os locais onde a doença está mais firmemente associada, mas nos dias de hoje outros estados como Minas Gerais, Distrito Federal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estão com números descontrolados da doença em sua população”.
Segundo Sandro Antônio Pereira, médico-veterinário com PhD e chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em Dermatozoonoses em Animais Domésticos da Fiocruz, alguns fatores que dificultam o controle dessa doença, como a LV ser uma doença que envolve a transmissão vetorial e não existir tratamento que promova a cura parasitológica nos cães.
Para Dr. Paulo Tabanez, médico-veterinário proprietário da Clínica Veterinária Tabanez, de Brasília-DF, membro fundador do Brasileish (Grupo de Estudos em Leishmaniose Animal) e referência no tratamento de animais com doenças infecciosas, é difícil inferir sobre o crescimento da doença em cães no Brasil, pois não há uma notificação realmente ativa para acompanhar os pacientes infectados, tantos os novos como os antigos. “Na avaliação abstrata realmente parece que há casos se expandido, mas a falta de uma notificação ativa feita pelos veterinários e pela própria vigilância, além de o fato do Brasil ter um histórico de campanhas públicas pautadas na eutanásia de cães soro reagentes, impede que tenhamos números reais”, comenta Dr. Paulo.
SINTOMAS E DIAGNÓSTICO
Gessica Ariane de Melo Cruz, EspecialistaTécnica da Ourofino, aponta que, tanto para cães quanto para gatos, as lesões mais comuns são as cutâneas e mucocutâneas. “Além disso, uveíte e aumento dos linfonodos também são relatados muito frequentemente. Em cães observa-se emagrecimento importante, alterações de apetite, letargia, palidez de mucosas, aumento do baço, febre, vômito, crescimento exagerado de unhas, entre diversos outros sintomas. Em gatos, úlceras e nódulos são as lesões cutâneas e mucocutâneas mais comuns observadas, distribuídas principalmente na cabeça ou nos membros distais e a uveíte, uma lesão ocular frequente em felinos”, lista. Ainda segundo Gessica, para cães, a sorologia (imunocromatografia, ELISA, RIFI) é a técnica mais comum de diagnóstico, porém existem outras técnicas como o diagnóstico parasitológico (por citologia, histologia ou cultura) e o diagnóstico molecular (por PCR convencional ou quantitativa). Gatos têm disponível apenas um teste sorológico (ELISA), mas os demais métodos são os mesmos que os dos cães.
Camila Eckstein, médica-veterinária Especialista de Produtos da Linha Veterinária e Responsável Técnica da Bioclin Vet, aponta que nos protocolos de diagnóstico para a leishmaniose canina, é indicada a triagem do cão utilizado o teste rápido e em caso de resultado positivo, o animal deve ser testado pelo método imunoenzimático (ELISA). “Quando positivo, o acompanhamento da carga parasitária requer o uso da PCR quantitativa em amostras de medula ou aspirado de linfonodos”, explica.
TRATAMENTO
Quando o assunto é tratar os animais com leishmaniose visceral, Tiago alerta: “Pacientes positivos precisam ser estadiados e tratados obrigatoriamente com protocolos estabelecidos pelo Brasileish”, enfatiza.
Gessica explica que, no Brasil, há uma única droga (miltefosina) contra a leishmania que é aprovada somente para o tratamento de cães. “Contudo, no mercado existem outras substâncias que podem compor e auxiliar o protocolo de tratamento (como alopurinol e domperidona). A recomendação dos especialistas no assunto é para que o tratamento dos sintomas seja feito de acordo com o estágio da doença, que pode ser leve, moderado, grave e muito grave. Para os gatos o uso da miltefosina pode causar anemia, sendo usado apenas o alopurinol”, destaca. Além do tratamento, Gessica ainda completa: é recomendado, para todos os animais infectados, o uso de inseticidas tópicos com propriedade repelente a fim de minimizar o risco de transmissão. “No Brasil não é permitido ao médico-veterinário a prescrição de substâncias leishmanicidas utilizadas em seres humanos (antimoniato de meglumina)”, alerta a veterinária.
PREVENÇÃO, SOLUÇÕES E DESAFIOS
Para evitar que cães e gatos sejam picados pelo mosquito-palha é preciso que seja feito o encoleiramento com produtos a base de piretroides (como coleiras à base de deltametrina 4%), explica Gessica. “Além disso, deve-se testar os animais que são doadores de sangue. Medidas de controle ambiental também devem ser instituídas para prevenir a doença. Algumas delas são: telar janelas, evitar passeios no final da tarde (período de maior atividade do mosquito), evitar acúmulo de matéria orgânica no ambiente”, lista.
Para Tiago, o grande desafio para o controle da doença é chegar ao SUS uma priorização na identificação dos casos humanos, haja visto que os sintomas são extremamente inespecíficos e sabe-se que uma pessoa necessita ir e vir ao médico em torno de 10 a 12 vezes com os mesmos sintomas para que um médico desconfie e busque diagnóstico. “Por isso, existe uma mortalidade alta entre humanos, justamente devido ao diagnóstico tardio da doença. No Rio Grande do Sul a doença virou notícia em 2016 e 2017 quando mais de um caso, entre crianças e idosos, de pessoas que acabaram falecendo em grandes hospitais com diagnósticos positivos para LV, mas que já estavam no leito da morte e sendo tratadas e diagnosticadas com leucemias”, compartilha. Tiago, ainda continua: “a falta de interesse médico em doenças transmitidas por animais, e em especial na leishmaniose, desencadeia toda uma falta de políticas públicas para conter vetores em ações ambientais, visto que o controle do vetor e da transmissão é de extrema dificuldade. Todos os mamíferos podem contrair LV, mas no caso dos cães, isso se faz mais verdade porque no cão a leishmania encontra as melhores condições para se manter e se reproduzir, porque o padrão de resposta imunológica favorece essa disseminação do agente, tornando os cães os principais reservatórios da doença e, com certeza, a espécie mais cometida entre todas”.
De acordo com Francisco, pode-se afirmar que a principal novidade para a prevenção e controle da doença no país foi a incorporação das coleiras impregnadas com deltametrina a 4% no escopo das estratégias de prevenção e controle da doença no SUS desde o ano 2020. “O Ministério da Saúde fornece desde então as coleiras para serem utilizadas nos municípios com maior risco de transmissão, conforme estratificação oficial do órgão. Essa ferramenta, quando adotada em estratégias adequadas em populações onde há um alto risco de transmissão, demonstrou ser efetiva para reduzir a incidência e a prevalência da doença nos cães e em seres humanos nessas áreas”, revela.
Paulo avalia como positiva a iniciativa do governo na distribuição de coleiras repelentes ao mosquito transmissor da LV, apontando que há trabalhos científicos publicados que validam este protocolo como sendo eficiente. “Hoje, a intervenção com uso de repelentes inseticidas é a estratégia mais adequada. A eutanásia acaba não tendo, de fato, um impacto importante ou não há nada que comprove cientificamente que matar cães diminuiu a incidência da doença na população humana ou vice-versa. Claro, além disso, é preciso investir em orientação, educação, saúde, manejo ambiental e dos animais, além de identificar a leishmaniose precocemente nos animais para que eles possam ser tratados e acompanhados. Estas são muitas das situações em que se tem uma intervenção adequada”, comenta Dr. Paulo.
LEISHMANIOSE EM NÚMEROS
Segundo dados do Ministério da Saúde, a Leishmaniose Visceral é endêmica em 76 países e, no continente americano, está descrita em pelo menos 12. Dos casos registrados na América Latina, 90% ocorrem no Brasil, país em que a doença afeta mais de 3.500 pessoas anualmente. Para cada humano afetado, a estimativa é que haja 200 cães infectados.
E OS FELINOS?
Os casos da doença em gatos são bem menores do que em cães. Gessica diz que, antes de tudo, é necessário esclarecer que doença difere de infecção, ou seja, o animal pode estar infectado e não manifestar sinais da doença. “Diante deste esclarecimento, cabe ressaltar que os gatos são menos susceptíveis à infecção e, menos ainda, a doença. Não se sabe o exato motivo desta menor susceptibilidade, o que se sabe é que a prevalência de infecção por leishmania em gatos é comumente menor que em cães de áreas endêmicas”, explica Gessica. Ainda segundo ela, recomenda-se que felinos de áreas endêmicas do mosquito transmissor ou que estejam viajando para estas áreas, usem repelentes e que sejam testados caso sejam doadores de sangue ou estejam fazendo tratamento com medicações imunossupressoras (corticoides). “Além destas situações, gatos com lesões de pele que vivem em área endêmica devem ser testados para verificar se são animais positivos para a leishmaniose, pois os felinos também podem ser um reservatório doméstico adicional para estes protozoários”, alerta a médica-veterinária da Ourofino.
Dr. Paulo alerta que, mesmo a doença sendo menos comum em felinos, mais casos de leishmaniose visceral vêm sendo encontrados pelo fato da área de pesquisa da LV na espécie estar crescendo também. “Realmente a leishmaniose visceral em gatos tem uma forma diferente, no sentido de que eles parecem ser um pouco mais resistentes, assim como eles são mais resistentes em doenças transmitidas por vetores de forma geral quando comparamos com o cão. Pouco se fala sobre a transmissão da doença no gato, pois temos apenas um tipo de repelente (à base de flumetrina) para a espécie, já que os demais repelentes do mercado veterinário são tóxicos para os gatos. Mas é importante entendermos que os sinais clínicos em felinos podem ser semelhantes com alguns pontos de diferenças. O clínico precisa estar mais alerta para identificar e entender se a leish está acontecendo nos gatos daquela região. A pesquisa no gato também acaba sendo pouco diferente, pois ele não soroconverte na mesma magnitude que o cão, então as técnicas e abordagens podem ser um pouco distintas. Mas precisamos pesquisar mais sobre a doença em gatos para entender melhor a doença neles e prevenir. Ainda não sabemos o real papel do gato na transmissibilidade da doença, mas sabemos que ele não é um hospedeiro acidental. Ele certamente ocupa um papel na cadeia que precisa ser mais bem elucidado”, finaliza Dr. Paulo.
INICIATIVAS PARA OS VETERINÁRIOS
Para os médicos-veterinários, existem iniciativas que os ajudam a se atualizar e ter acesso à informação. O Brasileish, por exemplo, promove, anualmente, o Simpósio Internacional de Leishmaniose Visceral Canina, onde são oferecidas palestras sobre os mais diversos temas relacionados a doença no Brasil e em outros países do mundo. “Os veterinários devem estar sempre atualizados sobre os aspectos clínicos e epidemiológicos, as formas de diagnóstico disponíveis, os protocolos terapêuticos e devem saber como essas doenças se manifestam clinicamente no ser humano. Precisam conhecer e informar os tutores sobre as formas de prevenção e controle dessas zoonoses. Além disso, devem notificar ou informar os casos suspeitos de leishmaniose e esporotricose às autoridades sanitárias locais e encaminhar os seres humanos que apresentem suspeita clínica dessas doenças para atendimento médico”, alerta Sandro.
Paulo alerta que a leishmaniose deve fazer parte da pesquisa básica do veterinário clínico geral, pois ela pode se manifestar com qualquer sinal clínico. “A leishmania é um protozoário intracelular obrigatório de macrófagos e por estar nesta célula, ela está em qualquer tecido órgão-fluido, logo ela tem qualquer tipo de manifestação clínica e o que é pior, muitas vezes os animais infectados podem demorar anos para manifestar os sinais clínicos, até 22 meses para se soroconverter, ou seja, é uma infecção silenciosa e, por isso, quando se manifesta na forma de doença, deve ser identificada, diferenciada e tratada da forma adequada. A leishmania chegou para ficar e em todos os lugares em que ela chegou nunca foi erradicada e, cada vez mais, ela se expande pelos territórios. Logo, ela tem que fazer parte do dia a dia do veterinário”, enfatiza Dr. Paulo.
Francisco destaca ainda a publicação do “Guia de Bolso da Leishmaniose Visceral” do CFMV. “Essa publicação visa harmonizar, de forma materializada, as informações técnicas, legais e éticas sobre a vigilância, o manejo e o controle da LV com foco nos veterinários e, assim, reduzir uma assimetria de informações que existe entre profissionais de diversas áreas e de diferentes regiões do país, para dar um passo importante para integrá-los em prol de um trabalho conjunto para o controle dessa grave zoonose”, aponta.
Em 2022, após a publicação da resolução 1465/22 do CFMV, que regulamenta o uso da telemedicina veterinária nas atividades médico-veterinárias, Tiago aponta que começou um trabalho de unir o conhecimento que era atualizado e estava em prática constante de atendimento de pacientes com LV com ações em telemedicina, levando esse conhecimento aos veterinários clínicos de todo o Brasil e até de fora dele. “Inicialmente pouco se sabia a respeito, tudo era novidade e a resistência das pessoas era grande. Aos poucos, fomos produzindo conteúdos informativos diários incluindo o LeishCast, primeiro podcast com conteúdo exclusivo em LV”, finaliza.